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É de extremo louvor popular e legítima manifestação democrática a expressão coletiva em prol de reivindicações sociais que questionam a incompetência política a partir da revolta do vintém, que pôs na ordem do dia a necessidade premente de haver no Brasil uma nova nação baseada na voz do povo, mas não mais nas consequências do lulopetismo e do fisiologismo que rola o destino nacional como moeda corrente da vida pública nacional. O povo foi às ruas em busca de uma nova nação, indignado com tudo, uma vez que teve certeza absoluta de ter sido o Congresso Nacional se transformado pelos políticos num mero "balcão de negócios, silenciando a discussão das grandes questões políticas do país com a generosa distribuição de toda sorte de vantagens pessoais, inclusive de nacos de poder", como diz um editorial de O Estado de S. Paulo (em 30/06/13). As manifestações questionaram o pão & circo em que se transformaram as políticas públicas nacionais, de coalização e cumplicidade, de favorecimentos e de poder pelo poder, de representação de grupos de interesse, de lobismo e de silenciamentos, de exclusão da diversidade e da falta de solução para demandas sociais emergentes, do sistema de conveniências e de temores, do distanciamento das massas e do fechamento dos canais de comunicação entre o povo e o poder. Tudo isso — e muito mais — levou o povo a sopitar, à exaustão, a passar a régua no nível de paciência contra a camarilha instalada nos Três Poderes, confortavelmente roubando, sem resolver nenhum problema público e descaradamente mentindo todo o tempo para o país sobre tudo concernente a problemas crônicos em todos os quadrantes.

O que questiono nas manifestações populares é o uso da máscara por vândalos que violentam os atos públicos com destruições de patrimônio inclusive privado. Como escreve Augusto Bernardo, do Sefaz, usar máscaras e capuzes para produzir violência para arrombar entradas de prédios públicos históricos, para incendiar e destruir ônibus, viaturas policiais, ambulâncias e carros particulares foge completamente do objetivo do movimento e cai na vala dos crimes e do banditismo. E isso também merece punição exemplar.

Por causa do excesso, foi aprovada em julho, no Canadá, mediante projeto do senador conservador Blake Richards, lei que dá 10 anos de cadeia pelo uso de máscaras em manifestações e outros materiais usados para esconder a identidade durante reuniões ilícitas. Que o exemplo seja seguido pelo Brasil. É inconcebível reivindicar direitos democráticos de máscaras. À exceção de num contexto como no carnaval, em que o cai-n'água honra a tradição profana de séculos, por exemplo, máscara é coisa de bandido. Em todo local e ocasião em que se faz uso de máscara, há sempre uma situação beligerante ou ilegal envolvida. Os manifestantes mascarados são quase sempre arruaceiros, depredadores, inconsequentes, irresponsáveis, e fingem desconhecer que todo bem público é patrimônio coletivo, cuja destruição tem um prejuízo também coletivo, que será cobrado dos contribuintes. Seja a máscara do personagem do filme V de Vingança, de Guy Fawkes, ou da máscara improvisada com a camiseta-ninja-maloqueiro, cujo estilo caracteriza inclusive o uso generalizado em favelas e prisões, o fato é que a suposta imputabilidade que a não-identidade concede o anonimato, nas manifestações públicas, torna os manifestantes contraventores, invasivos, abusivos, portanto, ilegais, passíveis de prisões, acareações, julgamentos e sentenciamentos, em vista de seus abusos. Quem se mascara, fora do contexto cultural, está mal intencionado. Esconder a própria identidade pressupõe fazer prevalecer um ardil para determinado fim. A Ku Klux Klan não se esconde por ser um primor de exemplo racial. Quem se mascara não está orgulhoso do que está fazendo em sã consciência. No Brasil as manifestações com máscaras são caracterizadas como legais, ilegais e culturais, mas já houve projetos de lei, como do deputado Marcelo Ortiz, que pretendia criminalizar a utilização de capuzes, gorros, máscaras, capacetes, toucas ou qualquer espécie de equipamento ou artifício que impedisse ou dificultasse a identificação e o reconhecimento de indivíduos em eventos sociais e políticos de massa. Infelizmente, não passou. Enquanto isso, os vândalos mascarados depredam como querem o patrimônio público e privado, são presos, imediatamente soltos e tudo fica por isso mesmo. As máscaras do vandalismo são filmadas e expostas no exterior. Expõem a ética de nossas Forças de Segurança Pública, a complacência dos Poderes, a educação e o oportunismo dos manifestantes infiltrados para depredar, o peso da anarquia em meio à democracia, a solução pela violência.

 

 

 

 

Vivendo há meses clandestinamente na Rússia de Putin numa situação muito delicada por não poder voltar ao seu país, e criando diversos constrangimentos em países aos quais pede asilo, o ex-técnico da CIA, Edward Snowden, vazou informações de espionagem da Agência Nacional de Segurança (NSA), revelando que o governo Barack Obama as obtém dos cidadãos mediante utilização de dados de servidores de empresas como Google, Facebook e Apple. Até aí, nada de novo, uma vez que, segundo Stephen Walt, professor da Harvard e um dos maiores críticos de mídia dos Estados Unidos, em recente entrevista concedida à Folha de São Paulo, não há um código de conduta para grandes corporações, governos e indivíduos a respeito do que fazer com as bases de dados, não há consenso nem leis. Mesmo porque por duas vezes pelo menos o governo brasileiro já reconheceu que os Estados Unidos fazem espionagem dos serviços de comunicações do país, a primeira em 2001 e a segunda em 2008, desta feita quando o diretor do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento para Segurança das Informações da ABIN (Agência Brasileira de Inteligência), Otávio Cunha da Silva, confirmou que "toda comunicação que está no ar pode ser interceptada pelo projeto Echelon, controlado pela Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos, a mesma que, segundo Snowden, tem vigiado o mundo todo através da internet".

Isso, porém, não é tudo. De fato, e sem direito, ninguém está seguro. Hoje, além de os serviços exigirem que os usuários exponham suas informações pessoais como garantia para terem visibilidade nas redes, expondo-se desse modo a uma clara forma de vigilância, é preciso relevar outros fatores. Como afirma o experiente Richard Stallman, que é da área, os dados podem ser assustadores, quando "vigiados", se levarmos em conta que a web cresceu sua base de usuários em cerca de 566% e que atualmente 2,4 bilhões de pessoas, aproximadamente 34,3% da população mundial — estão conectadas à internet. Informações como estas levaram Stallman a admitir que as tecnologias da informação são muito mais inimigas, armadilhas, estúpidas e monstruosas do que propriamente benefícios para usuários. E o Brasil que se cuide. Segundo o jornalista norte-americano Glen Greenwald, em entrevista ao Fantástico, o Brasil, de acordo com os documentos divulgados pelo ex-técnico da CIA, é um dos países mais vigiados pelo programa PRISM, que coleta dados telefônicos e de tráfego na internet. Isto porque o Brasil é rota para se ficar sabendo o que alguém na China está falando com alguém do Irá, por exemplo.

Importante que os leitores saibam que o governo Obama mostra-se sempre mais agressivo e punitivo contra jornalistas, porque são eles responsáveis pelos furos de reportagem em nome da segurança nacional. Assim como, no Brasil, foi a imprensa que mostrou a fragilidade do sistema de segurança da tecnologia da informação utilizada com atraso de décadas e de pífio investimento no setor. A verdade, contudo, é que o Brasil está inserido numa "sociedade da vigilância", que põe em discussão a questão da privacidade: há espaço para a privacidade na era da informação? Como definir o que é privativo ante o poder invasivo das tecnologias informacionais das câmeras de vigilância, GPS, identificadores biométricos, cartões de crédito, smartphones, chips de identificação, espiões digitais, entre outras cuja sofisticação e eficácia não temos nem conhecimento, destinadas a criar transparência na privacidade?

Como os projetos de "fusão de dados" — que é a tentativa do governo norte-americano de desenvolver dossiê digital dos indivíduos a partir da reunião de banco de dados com grande quantidade de informações sobre todos os cidadãos têm tendência de invasão e uma inapelável interferência na liberdade de cada pessoa em prol dos interesses escusos do Estado — todo cuidado é pouco, doravante. Isso para que o mundo não se transforme no regime totalitário semelhante (ou muito pior) ao de 1984, de George Orwell. Nele, a teletela controla todo o sistema de produção e divulgação da informação para o Ministério da Verdade, monitorado pelo Grande Irmão (Big Brother) 24 horas, cujos atos de violência parecerão mais legítimos se os fins são enfatizados, pois, como diz o personagem O'Brien durante a tortura de Winston: "Poder é deteriorar a mente". O domínio da informação virtual pelos Estados Unidos tem esse poder. E enquanto não houver repressão ao abuso, como no filme V de Vingança, todo o mundo é refém da hegemonia de Barack Obama.

 

 

 

— E aí, vô, tudo bem? Quais são as novidades?

— Não se pergunta, João, a um velho por coisas novas, a priori. A única novidade para um velho, inédita, é morrer. Hoje, porém, coincidentemente, tenho, sim, uma coisa nova para apresentar a vocês. A partir de hoje, mesmo reconhecendo a intenção carinhosa de vocês, não quero mais ser chamado de Super-Homem.

— Pô, vô! Qual é! Vai cortar a nossa assim na maior? Desde que eu me entendo por gente que você é o nosso Super-Homem! Sua vida é a vida de um Super-Homem. Poucos homens no mundo fizeram o que você já fez. Você lutou numa Grande Guerra, matou muitos inimigos da paz, sobreviveu à fome, ao frio e à miséria, aprendeu ofícios como autodidata, criou nossos pais, ganhou a vida dando o duro e fez jus a todas as medalhas por seus exemplos, serve de espelho pra nós uma longa vida inteira. Não pode simplesmente cortar de nós o motivo de orgulho e de respeito que sempre tivemos por você com o maior carinho do mundo.

— Decisão tomada, gente. Se vocês me respeitam, então passarão a me chamar doravante de vô, vovô, ou, simplesmente, pelo meu próprio nome José.

— Sacanagem, não é justo, vô.

— Envelhecer também não é justo, Frida, no entanto...

— Mas você tem que dar um motivo muito grande pra tomar essa decisão. Chamar você de Super-Homem é quase como chamá-lo de Deus.

— Não sou imortal. Deus é.

— Não é justo, vô.

— Saibam todos que mesmo o Super-Homem um dia aposenta seus poderes. Um dia desses li num site: "O que acontece quando as teias do Homem-Aranha não puderem mais mantê-lo pendurado nos prédios por aí; quando a armadura do Homem de Ferro enferrujar com suas articulações; quando o Batman descobrir que aquela voz estranha que ele tinha era na verdade uma doença de garganta que ele deveria ter tratado ainda na juventude? Provavelmente irão para um canto da sala, em um asilo ou uma casa de parentes, virar um artigo de zoológico, visto uma vez por ano, nas feiras da escola dos netos."

— Mas você é Super-Homem, e o Super-Homem tem casa, amparo, uma família que o adora, que nunca vai deixá-lo na mão por nada desse mundo. Você é o nosso velho, o nosso velho inteligente.

— Velho algum é tão inteligente, tão vivido, tão experiente ou tão exemplar, porque, se assim o fosse, daria um jeito de não envelhecer. Ficar velho é a prova do seu limite. Procurem no dicionário, se a preguiça deixar: velho é aporia. Beco sem saída.

— Você está forte que nem um leão. Inteiraço. Chegou até aqui cheio de vida. Quantos poderiam dizer o mesmo?

— O maior mérito etário da minha vida foi ter atingido a velhice. Não morri antes do tempo, não fui antes da hora, cumpri o ciclo. Ou seja: depois de viver todas as etapas, do deslumbramento, da descoberta, do sonho, das porradas, da desilusão, da maturidade da existência, da certeza absoluta de um limite, a morte não vai chegar pra mim como um arroubo, uma assaltante equivocada, uma surpresa em porta errada. Ela não será mais a arrebatadora do privilégio de quem altruisticamente vai querer mais só por querer. Deve-se querer, na velhice, quando os sentidos dão conta de conscientemente sentir as escolhas que ainda podem ser feitas. Para isso a existência dá um prêmio sábio para os sensatos: a certeza de que não se pode erradicar a velhice da vida. Agora eu posso olhar para todos os lados, e escolher para onde não querer olhar nunca mais. É uma espécie de limpeza visual que a longevidade permite fazer tanto no passado como no futuro. Porque as escolhas põem pedras ou flores nos caminhos. Por isso, não existe um ser velho, pronto para nada, mas um ser em envelhecimento, sem retorno. Com todas as etapas anteriores bem vividas e vívidas no resto que falta. Humanamente vividas. Tirem o super. O que houve em excesso foi a vida que acrescentou por contingência. E não fui o único a vivenciar o excesso. Os fatos que me faziam super nada mais são do que as oportunidades que tive para provar que estava apto a vencer desafios para os quais nem me sabia capaz de enfrentar. Eu os enfrentei por questão de sobrevivência, por isso venci. O super sempre foi um aprendizado com o desconhecido. Agora, penso e sinto, só tenho que aprender a morrer com dignidade. Sem medo. Sem remorso. Sem lamentação. Sem risco.

— E além do mais, vô, o que é bacana, você ensina a gente a pensar como gente. Na sua boca as palavras são como alimento, só faz o bem. Por isso a gente sempre foi super ligada no seu papo. Ele faz pensar. Ajuda a tomar decisão.

— Vocês são boa gente. Foram bem educados. Aproveitaram as lições da vida, tiraram proveito das experiências. Por isso são pessoas especiais. Vocês, sim, são super bacanas. E agradeço muito por tê-los por netos e bisnetos. Vocês são na verdade a minha vida que continua feliz. Porque vocês, justo por serem jovens, ensinam que velho não é um jovem que durou a vida inteira, mas um ser que se impôs humano durante toda a existência. Uma coisa não ensinei a vocês: sexo. Porque sexo é o que ficou em mim da memória do prazer. É o amor quando amava a si mesmo no outro. Vocês são o tesão da minha vida, pois possuem o que me realiza onde já fui pleno.

— Você um dia falou que o desejo não tem idade.

— Falou também que os olhos copulam com a alma.

— E falou que cada noite de fazer amor faz amanhecer uma semana mais de vida.

— Mantenho o que disse e acrescento: só comecei a envelhecer quando a avó de vocês morreu. Pra ser bem lugar-comum, fiquei sem chão e me desnorteei no céu. Hoje, pra tudo, olho onde piso, porque o abismo pode ser o primeiro passo, e não invoco o nome Stella em vão. Porque pode ser longe demais pro meu olhar chegar sozinho.

— Putz, vô. Nem vinho é melhor. A sua safra de gente é receita de Deus.

— A gente aprende a pensar certo pra dizer mais com menos, Frida. Coisa de velho.

— Coisa de velho super.

— Se vocês insistirem, vão me deixar muito chateado. Vô Zé é tão simpático...

— Ninguém, acredito, quer deixá-lo chateado com nada, você, que só nos deu muita alegria e a quem devemos tanto da vida. É que fomos pegos de surpresa. O apelido é como uma marca registrada, uma identificação.

— Super-Homem é uma palavra sem identidade para um pobre mortal. Quando se fica velho, e este é o meu caso, ao contrário da imortalidade do Super-Homem, a gente pensa como Cícero: sabe que, simplesmente, é preciso que haja um fim.

— Você, vô, não está levando a gente a sério nessa decisão de chamá-lo de Super-Homem. Afinal, foi assim até hoje, por que mudar agora?

— Nesse ponto, Mateus, eu penso como Nelson Rodrigues: acho que o jovem só pode ser levado a sério depois que fica velho.

— Você está brincando, né, vô?!

— Tô, Frida. O Super-Homem, contudo, acabou. Por trás dele tem um Clark Kent cuja kriptonita é o tempo. O tempo que o torna falível ao saber que vai morrer sem saber quando, o que é "guiness da crueldade". O tempo que vai tornar sua pele enrugada, seus músculos flácidos, cheio de dores no corpo, com falhas na memória, com dificuldade para respirar, locomover-se, de viver, em suma, e cada vez mais próximo da morte.

— O que é isso, vô?!

— Realismo, minha neta. A idade sem a máscara dos eufemismos como terceira idade, melhor idade e outros nomes que esticam a pele da velhice em um corpo rabugento. Para quem não tem consciência de si mesmo, a velhice consegue ser mais dolorosa e angustiante do que a própria morte. Por isso é que se vê tanta mágoa entre os da velhice. Como diz um amigo meu: "uma amargura que turva os olhos e os sentidos e faz com que o velho seja apenas um chato esperando a morte". Vivemos numa cultura em que a velhice é assumida como um problema. O Super-Homem não é um problema. É sempre uma solução. Viram agora, finalmente, porque o apelido não cola?

— Mas até hoje você não estrilou por a gente te chamar de Super-Homem...

— Talvez, Mateus, fosse porque eu tivesse poderes para ensinar a vocês as coisas que são importantes, como Guimarães Rosa fez. Agora posso começar a ratear, a dar pra trás.

— Você ensinou que os valores são eternos.

— E são. Não fica bem um velho ser chamado de Super-Homem, mesmo na intimidade da família. Como não ficaria se eu chamasse vocês de dinossauros. Cada coisa tem seu tempo.

— Por que chamá-lo de Super-Homem passou a incomodá-lo tanto?

— É ridículo para um velho ser chamado de Super-Homem. Retorno a pergunta a vocês mesmos. Pensem bem: na história de cada um, por que o Super-Homem?

— Porque você sempre fez alguma coisa de bom para todos nós.

— Porque você sempre nos serviu de exemplo.

— Porque você sempre nos amou como filhos e ajudou nossos pais a nos criar com êxito.

— Tudo bem que eu tenha feito alguma coisa por vocês, tudo por amor, é claro, mas nada que justificasse o super. Super, tomei ciência, me lembra coisa de milagreiro, de mágico em tempo integral, político poderoso, herói de quadrinhos, guru iluminado, oportunista religioso, e por aí vai. Nada disso tem a ver comigo. Vocês me conhecem. Então é bom parar com isso antes de eu falhar feio e decepcioná-los. Porque vocês, que sempre esperaram algo de mim e sempre tiveram respostas convincentes para suas necessidades, poderão um dia sentir que como todo ser humano também eu tenho limites e, em meio a uma decrepitude natural, nada poderei fazer para mudar situação alguma. Enfim: vocês poderão concluir que não sou o Super-Homem.

— Acho que você já nos convenceu a todos. Mas fica no tempo essa história que a gente não pode simplesmente apagar de uma hora pra outra, porque por várias décadas você sempre foi o Super-Homem. É como se de repente você tirasse a fantasia e dissesse não quero mais brincar, mesmo consciente de que só você sabe o mapa do tesouro, a receita do pó que faz voar, a varinha de condão, o que faz a boneca falante. Em outras palavras, você era o Super-Homem porque você fazia diferença. A sua sabedoria não pode se perder na vaidade de deixar de ter um apelido. Quando nós começamos a chamá-lo de Super-Homem, éramos crianças e ouvimos este apelido de nossos pais. Quem nos conhece sabe que temos um avô Super-Homem. Um avô não capaz de milagres, mas de infundir em nós realidades perenes. De histórias que abrem caminhos certos. De exemplos que foram vivenciados pela própria vida. De atitudes que plasmam consciências mais seguras de seus atos. De um ser humano humano  por uma vida inteira. Acho, vô, que no seu caso, o Super-Homem é mais superlativo de um homem super em tudo. Daí o apelido. Mas respeito sua reivindicação. É um direito seu. Os esquimós dividem o homem em três partes: corpo, alma e nome. Chamá-lo agora de vô Zé integrará seu mundo nominal e pessoal à história de uma família que sempre o teve com um nome estranho muito querido. Acho que é isso.

— É isso em nível de análise, Frida. Você pensou bonito e profundo uma coisa muito simples: o Super-Homem não existe. O avô de vocês existe. Ainda é palpável. Em carne e osso. E memórias.

— Sabe, vô? Você é mesmo Super-Homem, porque só alguém com muita vida especial e com tanta doação de si foi e é capaz de nos mostrar tantos valores e contrastes, como o fez quando falou do velho Santiago de O velho e o mar, de Ernest Hemingway. Ali você nos falou sobre um velho desafiando conflitos internos entre o sentir sofrimentos e prazer, entre o sonho e o fracasso, o limite e a superação, entre matar ou morrer. Você nos mostr­ou a vontade de o velho incorporar a criança que havia nele. Você nos fez ver como em O velho e o mar, que em qualquer idade existe um desejo de vencer, sobretudo quando mesmo existindo uma oportunidade as vicissitudes são maiores, mais difíceis. É quando, maior o desafio, é preciso ceder no controle da direção, mormente se a natureza, como no caso o mar, é imensa demais para se tomar qualquer decisão. Você mostrou, quando nos fez ler o livro, que vir ao mundo é uma luta individual de sobrevivência, tal como o momento de solidão da morte, ainda que a gente esteja cercado de pessoas que amamos. Você fez ver que há um pouco de Santiago em cada ser humano que luta no mar dos seus desejos para ser melhor, vô. E isso não está nem nos livros nem nos outdoors.

— Valeu, Mateus.

— Para mim, vô, nada é mais realisticamente sublime, mais lição de vida para todo o sempre do que o resumo da vida que você nos apresentou, quando falou o poema "Relógio", de Cassiano Ricardo. Ele vale por todas as filosofias, todos os tratados de religião, todas as especulações quânticas, por ser a síntese da finitude que nós somos. E o texto conforta por sua grandeza minimalista, que você, vô, nos passou com a devoção de um imortal:

 

Diante de coisa tão doída

Conservemo-nos serenos,

cada minuto da vida

nunca é mais, é sempre menos.

Ser é apenas uma parte

do não ser.

Desde o instante em que se nasce

já se começa a morrer.

 

— Acho muito legal, Frida, você sempre se lembrar desse poema emblemático. Você deve se lembrar também que certa vez "apliquei", como era o termo da época, uma comparação desse poema com uma canção dos Beatles que diz que a vida é muito curta para se perder tempo com futilidades. "O "Relógio" tem muito a ver com isso, concorda?

— Somos feitos do que provavelmente nem exista. Limitados entre ser e não-ser. Você nos passou isso também. Na sua fase filosófica, você "aplicou" também a canção "Avôhai", do Zé Ramalho, que fala de um "velho e indivisível que é meio sabido" cuja companheira "nunca dormia só" e tinha "pares de olhos tão profundos" que são como "as asas" e que tem "a palavra certa pra doutor não reclamar". Você era o avôhai avô e pai. Como me lembro de quando nos falou sobre o pessimsmo e pôs na roda o velho do Restelo, de Camões. Foi aí que entendi melhor que você, como diz o poema lusitano, é "c'um saber só de experiências feito". E que a um homem pessimista deve-se perguntar "que famas lhe prometerás? Que histórias? Que trunfos, que palmas, que vitórias?". 

— Bravo, Frida! O que me engrandece a velhice é saber que o aprendizado de vocês , feito de papos, histórias, livros, aconselhamentos, informações sobre vivências pessoais, dicas, coisas à toa, e mesmo por coisas do imaginário, foi posto em prática com seriedade e leveza, sem a obrigação didática de eu ser pra vocês uma escola de vida, mas apenas uma referência. Sabendo agora de tudo isso, sinto que fui útil e que os ajudei em alguma coisa. Já me dou por satisfeito por vocês terem um papo legal. Uau!

— Você sempre foi profundo, vô. Mesmo fazendo mil brincadeiras. Sempre gostava quando contava casos muito antigos de povos que serviram de exemplo pra humanidade.

— Lembra algum, João?

— Muitos. Um deles, para o qual você deu muita ênfase, é sobre a sociedade inca antes do século 12, quando os indígenas matavam e comiam os velhos. Com a conquista de Manco Capac e o estabelecimento de uma nova sociedade, passou-se a oferecer toda segurança aos velhos que foram, conforme você havia contado, recenseados a partir dos 50 anos de idade como os que andavam com facilidade, os desdentados, os que só queriam comer e dormir, os que fumavam, bebiam e tinham uma surpreendente atividade sexual. Os velhos desempenhavam a função de arquivos vivos naquela sociedade sem escrita. Eram conselheiros dos reis. As mulheres mais velhas tinham o papel de médicas, parteiras e enfermeiras. Os velhos recebiam alimentos dos lavradores, além de um tributo especial chamado corveia, um trabalho obrigatório para os mais jovens, que consistia em fabricar roupas e calçados para as pessoas mais velhas da tribo. Sempre admirei essa história pelo que ela tem de dignidade em relação à velhice. O exemplo devia ser seguido hoje.

— Puxa, João, boa memória. Há um bocado de tempo que lhes contei essa história dos velhos na sociedade inca. E essa me recorda a lenda maia do Velho Antonio, que também lhes passei, que tinha íntima relação com a natureza, com o vento, a chuva, a escuridão, o prenúncio de um novo dia, enfim, com um tempo em  que os deuses estavam às voltas com a criação de um novo mundo, de um tempo em que não havia tempo, nem antes nem depois. Falei sobre o Velho Antonio para chamar a atenção de vocês sobre a persistência da sabedoria da observação da contemplação, da tradição oral, do valor do discurso como palavra como poder da força tribal, de um povo reunido em torno do fogo ou debaixo de um Sol ou de uma Lua. Já houve um tempo, meninos, em que a palavra valia uma vida. Falei também sobre Durito, um personagem politizado e revolucionário, lembram-se? Idealista como Dom Quixote.

— E é aí que eu entro, vô!  Lembro-me que você caracterizou Durito como arrogante, presunçoso e mentiroso que se impôs na selva Lacandona zapatista, acompanhando o subcomandante Marcos e que, como Dom Quixote, tinha mania de grandeza, se imaginando um cavaleiro andante, tendo por montaria uma tartaruga chamada Pegaso. Durito mostra-se conhecedor das revoluções, mas não abre mão do romantismo de Dom Quixote, do idealismo de combater pelos fracos, de ser um combatente de esquerda. Tem gente pra tudo nesse mundo! E, às vezes os mais loucos são os mais interessantes.

— Você, Mateus, sempre teve preferência pelos personagens digamos, anômalos, com um parafuso a mais ou de menos. Que o digam Sherlock Holmes, Peter Pan, Saci Pererê, alguns de Tolkien. Durito e Dom Quixote, por certo, além de todos os voadores. Você leu muito gibi, ficção-científica, libertou cedo seu imaginário e hoje, felizmente, é um autor muito apreciado. Por isso deve ter de viva memória o que falei sobre Durito.

— Tenho sim. A teoria da pós-graduação do esquecimento, por exemplo, em que o neoliberalismo procura destruir a história, na medida em que precisa demonstrar coerência em suas ações, pois a essa teoria só interessa perpetuar a associação do poder com o dinheiro. O neoliberalismo, que Durito chama de macro maquiagem para ocultar a realidade, mostra o artificialismo de mais um regime político instalado na América Latina com a finalidade de salvar seus países através do capitalismo, cujos políticos juniores estudaram no estrangeiro para por em prática em suas nações que o que vale é "aparentar que sabe o que faz", pois dado o fato de que o neoliberalismo vem a ser uma "caótica teoria do caos econômico" ele cria uma "realidade virtual" apoiado em números descolados da "realidade real" que os políticos desprezam. Faz sentido.

— Aliás, em um de seus livros pra jovens você revive os mitos de Dom Quixote e de Durito criando uma alegoria ao modo de Brecht com homens-tubarões para mais uma vez mostrar aos leitores que no mundo os mais espertos engolem os mais fracos num embate interminável entre poderosos e subjugados. Essa dicotomia nunca mudou no mundo. E, creio, nunca mudará. Ela é própria da condição humana. O mesmo Dom Quixote que disse que a liberdade não é um pedaço de pão, disse também que a vida sempre nos surpreende. No desejo de combater as injustiças do mundo, Cervantes satiriza as histórias fantasiosas dos heróis de fancaria, mas eles fazem falta para se entender o realismo da vida, para se discernir o real do sonho, o ideal do social, o desafio e a coragem com o discernimento da realidade. Você faz a mesma coisa em seu Dom Caixote e sua prancha, que ensina toda uma geração jovem a surfar responsabilidade montando o quebra-cabeça das dúvidas da adolescência.

— Esse livro não teria existido sem você, vô.

— Posso ter lhe dado uma centelha, mas o incêndio é seu.