OSVALDO ANDRÉ DE MELLO: POETA-POETA SÓ EXEMPLO

 

O divinopolitanuniversal Osvaldo André de Mello, desde o início de sua produção, nos anos 60, é lúcido, coerente, responsável por sua própria liricidade barrotelúrica, criativo, condutor de uma linguagem muito sensível, poeta-poeta do mesmo modo que, à feição de Augusto de Campos, a poesia poesia.

         Osvaldo André de Mello assumiu, em tenra idade, viver a poesia e pela poesia, seja como ator shakespeareano em incursões poéticas frequentes com esquetes de Emily Dickson, Walt Whitman, Adélia Prado, Lázaro Barreto, seja de sua própria lavra transparente, extraída da própria poesia sem as adiposidades experimentais, o que o tornou caso típico reverenciado em teses e outras modalidades de trabalhos acadêmicos.

         Traduzido em várias línguas, o poeta, que lançou em 2012 o primoroso — em todos os sentidos — As mesmas palavras, na coleção Obras e Dobras, da Editora Veredas & Cenários, com ilustrações e contracapa do mestre guignardiano Petrônio Bax, putérrimos projeto gráfico e diagramação supimpa, livro acrescido de uma antologia que reúne a seleta de sua produção e textos críticos de Melânia Silva Aguiar e Alba Valéria Niza Silva — corrobora a lucidez lírica, a inventiva cometida sem excessos, a religiosidade edênica, a imensa força do saber-dizer com palavras simplesmente palavras em estado quase inaugural sob o viço dos minérios das veias poéticas, que se nascem em Minas, vão se estender com refinamento incomum pelo mundo grego de Maria Callas, que cantava tão convicta de celebrar o infinito que "guardou só para si a voz" como "muda" para "a fuga da excelência necessária a um louvor exigente e justo"; das flores da relva de Walt Whitman, que "ensinou o procedimento para uma nova linguagem" e (pasme pela imagem!) a "celebrar o corpo como ritual de passagem para a alma";  dos ardores rubros de Libertad Lamarque, que "cantava como se mastigasse a letra"; de Emily Dickson, cujas "insignificantes notações" tomou "a partitura dos hinos — com seu espanto que acordara um ritmo jamais ouvido."

         Osvaldo André de Mello não desdenha sentido com metáforas inúteis. O que ele diz, diz, e fica dito. E fica dito de modo bonito, definitivo, que inclui sentimentos nobres nessa orgia de nada que voçoroca a linguagem em busca de repetições que não acrescentam à poesia que poesia.

         É incrivelmente ótimo poder ler neste livro que árvores ciliares no rio das Ostras "ostentam cachos de garças imaculadas"; que em Salvador há ruazinhas tortas que "ninguém sabe onde vão ter" porque brincam de se esconder de si mesmas; onde do mercado se percebe "namoros à antiga — quase presumindo escadas de seda e sabiás na varanda".  E onde, por ossos do ofício, "o padre Vieira espreita" como quem confere no cheiro azinhavre do tempo que não corrói achados, o relicário de antigas sabedorias.

         As mesmas palavras são um orgasmo poético. O livro traz de volta a "camélia que freme no poema de Henriqueta Lisboa" — "o melodioso  chamado que se multiplica para as orações no silêncio e na penumbra das mesquitas", lá na igreja de Santa Sofia, Istambul. O poeta viaja, literalmente, seja porque "uma pessoa vira pensamento", porque "as teias da eternidade se tecem muito longe de nós" (valendo aí a ambigüidade polissêmica), seja pela impossibilidade  de "não responder aos olhos que vasculham a sua alma", sobretudo alguém que "soube ser desenho na minha pele".  

         A fina percepção do poeta leva o leitor a perceber emoções raras como a de "cigarras [que] acabaram de enlouquecer", a noite "com seu cobertor de brumas", "a visão preparada para ver o que não se vê", um "silêncio cauteloso", a "condição imaginária" ou que "a poesia ganhou sangue." Ou, então, da reflexão de que "a palavra nasce da meditação", que o poema é "roca invisível que fia a manhã", e de que "tempo algum bebe o orvalho das palavras".

         Osvaldo André de Mello fala por si mesmo. Sem aspas. Sua principal referência é a própria poesia. A que está aí per si. Pronta para quem a busca pela poesia. Para quem tem um lado de dentro receptivo.

         O poeta quer dizer à conturbada época das anulações de tudo, que a poesia perdura e vige porque experimenta a linguagem sem meios radicais, mas por insistir e reler a sua própria essência, que é ser poesia.        

         A poesia de Osvaldo André de Mello é "um piscar de espírito", como enfatizou Leminski. Poesia sem manipulação de regras, de ideologias, poesia necessária como o ar, a poesia poesia porque é assim que ela existe. Em busca do aspecto temporal do poema, o poeta encontra a sua própria poesia. "A poesia [como] esse existir selvagem, rebelde aos códigos resistentes aos apriorismos e [que] se revela onde não é posta, e recusa-se a aparecer onde querem pô-la." A poesia com "o gosto de sentir a existência verbal", como afirmou, sapiente, Drummond.

         As mesmas palavras fazem a diferença não apenas na produção de Osvaldo André de Mello, mas na poesia que insiste em ser só poesia. Porque, ele o diz, ao poeta "cabe chegar ao arquétipo, ao difícil reflexo da beleza."  Porque isto requer, com décadas de experiência e vivência, "a linguagem incorporada de correta perfeição". Osvaldo André de Mello está a caminho disso. E, para quem já traçou "régua e compasso", chegar à poesia plena é questão de ser mais lido, mais reconhecido, mais emocionado aos olhos fundos dos leitores.

 

 

 

POESIA DA VIDA NA POESIA DO VIVER

 

        O que caracteriza o livrestreia de Alcéa Romano são elementos poéticos raros na poética, porquanto é preciso um bocado de coragem para escrever simples, com despojamento, assumir o que faz da forma que faz, de ser romântica em plena pós-modernidade, de insistir com uma linguagem franciscana quando o discurso fragmentário mergulha no não-sentido, de abrir mão até mesmo de metáforas mínimas, que são o brilho garimpado da poesia, de fazer impor-se pelo que na trajetória da existência é simultaneamente lógico e místico, non sense, imaginário, mas também atávico, telúrico, passional, onírico.

         Por isso, que não se leia a poesia de Alcéa Romano tomando-se a priori o aforisma de que de tão simples é ingênua. A poeta, assim como Hilda Hilst, quer realizar um sonho muito seu: "Que as barcaças do Tempo me devolvam / a primitiva urna das palavras".

         Após a leitura desse Poesia do viver, o leitor mais exigente ou o mais laico poderá afirmar, como o fez Cristina César em seu Inéditos e dispersos: "Ela vivia atrás do despojamento mais inteiro / da simplicidade mais erma / da palavra mais recém-nascida / do inteiro mais despojado / do ermo mais simples / do nascimento a mais da palavra".

         E, para os leitores mais gulosos de poesia, os que têm convivência poética como uma necessidade até orgânica, poder-se-á, então, comparar este livro também com o "Despojamento" de Ivo Barroso quando diz: "Eliminei o excesso de paisagem / simplifiquei toda a decoração / retirei quadros flores ornamentos / apaguei velas copos guardanapos / e a música / bani a inutilidade do discurso / na mesa de madeira / nua / apenas dois pratos / brancos / sem talheres / o banquete será tua presença".

         Simplicitude e despojamento esbanjam um charme muito próprio da dicção desta poeta que realmente não se dá ao trabalho de trabalhar o poema com a ferramentaria da linguagem, não cria efeitos especiais, não filosofa o sentido oculto das palavras, tampouco inunda os olhos do(a) leitor(a) com proezas de que o coração vai mais tarde se arrepender.

         Alcéa Romano ainda acredita em adjetivos, em cheiros e formas entranhadas nos sentidos, em lições advindas das origens cosmológicas, em lembranças perenes, em construções primevas que remetem à comoção que fica como referência, tal como o nicaragüense Ernesto Cardenal pontua em seu Prólogo a la antología de la poesía primitiva: "El verso es el primer linguaje de la humanidade. Siempre há aparecido primeiro el verso, y después la prosa: y ésta es uma espécie de currupción del verso. En la antigua Grécia todo estaba escrito em verso, aun las leyes: y en muchos pueblos primitivos no existe más que el verso. El verso parece que es La forma más natural del lenguaje". O verso de Alcéa é como uma fala de Alcéa.

         Poesia do viver é o que fica de um "inusitado encontro", dos "ouvidos atentos à batida do coração", do "prazer de menina", do "que sacia e rejuvenesce" e que "modifique desconhecidos", "que contagie amigos", do "pássaro mostrando rumo", das "coisas da mente", do "jeito doce de aprender", do "descuido ou desatenção", da "incerteza do porvir", da "hora que não faz sentido", das "lágrimas escorrendo pelo rosto", da "luz refletida pelo olhar", de uma "nova consciência", do "merecer estar perto quando a hora chegar", porque tudo "vale a vida".

         A Poesia do viver, por isso, dá graças à vida em cada amanhecer: "Agradeço o azul do céu / a lua minguante / o brilho das estrelas / a lua crescente / a lua cheia / a luz do luar / o novo acordar" — numa gradação das mutações cósmicas do satélite terrestre que tanta influencia exerce sobre o ser humano e toda a natureza, cuja síntese está no poema "Magia".

         Porque quem vive intensamente os desafios da vida nos sentidos pode, enfim, declarar: "Hiberno em mim / sonhos abissais". Alcéa sabe, porque deve ter aprendido com Guimarães Rosa, que viver é muito perigoso. Então, mais uma vez despojada, afirma: "Vida é desapego". E ela sabe também que "poesia abre caminho", e por tanta embriaguez de vida, outra confissão da poeta, "não sei o caminho de volta".

         Os leitores deverão observar nos poemas o atavismo referencial à família, locais, tradições, memórias da infância, de que se destacam a mãe épica de uma prole inteligentíssima e exemplar, Morro do Ferro, Morro do Ferro quando era S. João Batista, Oliveira de muitos sonhos, homenagens significativas a pessoas do coração e da mente. Há que deter-se, também, no personalismo da poeta, mormente no poema "Mulher" e em declarações como "quero alimento para a alma" (Querência), "quero minha parte / quero minha arte / no refrão da vida"; "caminho em direção a mim mesma". Além da passionalidade, que é resumida no verso "continuarei apaixonada pelo amor", porque a poeta nasceu para amar e não faz dessa confissão nenhum empecilho para aprender com as surpresar do desamor, que se renova como aprendizado vital. E o misticismo, de que ela é militante convicta pela via gnóstica, de cuja tópica "Poema místico" é a referência no qual roga que o Ser Supremo "embale nosso caminho de volta ao Absoluto".

         Tudo isso não é pouco para uma poeta que se estreia. E ao ler nas entrelinhas, todos terão certeza de que Alcéa Romano é uma poeta que falta em profusão no mundo de hoje, porque ela é humana.

 

 

POESIA NECESSÁRIA

 

PAPAI NOEL DESCE NA SERRA DO CIPÓ

[ADÃO VENTURA]

 

E se encontra com Juquinha das Flores, já petrificado pelas mãos

De Virgínia Clementino.

E como se fosse ainda nos tempos das jardineiras e das missas do galo

Celebradas pelo padre Joviano, em Santo Antônio do Itambé,

Ele deposita no chão seu saco costurado de nuvens.

E ao lado de Juquinha, que se desencanta, e, num interminável

exercício de paciência, ele vai apanhando ao longo dos acampamentos

plastificados, a ferrugem de alguma paixão recolhida.

 

(24/12/91)

 

 

 

 

O ORVALHO E A LÁGRIMA

[PEDRO ANDRÉ DE SOUSA JÚNIOR]

 

Da natureza o sono a noite vela,

Com maternal amor lhe embala o berço,

E quando a hora fatal lhe aponta a estrela,

Desperta a filha com seu beijo terso.

É o orvalho!... Esse gesto que revela

o amor a regular todo o universo,

da forma mais perfeita, da mais bela,

que nunca há de caber dentro de um verso...

E como o orvalho que desperta a planta,

e lhe alimenta e fortalece o ser,

assim, a lágrima o mortal levanta!

Benção dos céus que faz o homem ver

O que ele nega com insistência tanta,

Porque perdido na ilusão do ter...

 

 

 

 

SUSPEITA

[MÁRCIO CATUNDA]

 

E se eu pensasse que fulano é um canalha

e beltrano um sacana discreto?

(Ainda bem que a minha ingenuidade nem suspeita disso...)

 

 

 

 

A MENTE VENTRÍLOCA

[JACKSON CORRÊA]

 

A loucura de um homem sóbrio

vive na alma de uma cigana loura

que dança a música dos anjos

no jardim onde as flores murcham na primavera.

 

Cada espelho reflete o que queremos ver

e as respostas se tornam novas perguntas

que retrocedem ao nada.

Você vê o sol nascer rapidamente no leste

mas daqui ele se põe lentamente.

 

Sei que o amor existe onde não há razão,

mas eu exijo uma certeza além da emoção.

 

O tempo é obviamente um buraco negro

que consome tudo pouco a pouco

de forma sutil e persuasiva

onde seu sussurrar insinua um encanto psicológico

sobre os que ficam a esperar.

 

As asas são resistentes para iniciar o voo

mas de nada adianta uma alma nômade

quando o coração permanece fixo no mesmo lugar

e então nos vemos prisioneiros de nós mesmos.

 

 

 

 

TEMPESTADE DE IDEIAS

[EDISON VEIGA]

 

Poeta lavra palavras

Deus semeia vento

eu colho letras revoltas.

 

Poetrix da vida vã

Eis a nossa sorte:

Viver contra a morte

e morrer amanhã.

 

Apocalipse

Ah, mundo imundo

o pior do seu fim chegar

é que não viverei pra contar.

 

 

 

abril, 2013

 

 

CORRESPONDÊNCIA PARA ESTA SEÇÃO

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