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Como na "lógica da vertigem" de Octavio Paz, e também na esteira de Maria Esther Maciel (1995), o embate entre os contrários no texto Caminantes de Cristiane Grando, não se fundamenta na lógica excludente do isto ou aquilo, tampouco "se resolve numa síntese unificadora e diluidora das diferenças entre os termos opostos". A experiência do partir subentende, para o poeta, o ato primaz de sua própria razão de ser enquanto poeta e, por extensão, enquanto ser humano, portanto, enquanto agente participativo e iniciador de um processo de coexistência com o outro. O seu ser está em sintonia com o seu fazer: partir é ter um objetivo. Por isso Octavio Paz diz que "cada palavra (em Mallarmé) é vertiginosa, tal a sua claridade". Grando evoca partir para buscar "flores do bem e do mal", reunindo nesse ato uma série de motivos subentendidos que vão desde a edênica expulsão do paraíso à própria decadência humana: à busca/perda do tempo à densidade narrativa dos signos que agregam valor às vivências. A síntese dos poemas de Cristiane Grando geralmente explodem sentidos e fazem pensar muito além das aparências. Como em Éluard, "o poeta se vê na mesma medida em que se mostra. E reciprocamente". Há nos poemas condensados a leitura nítida da visão instantânea do vivido e do pensado. Sua vocação introspectiva e lírica detona no universal relações que são imediatamente associadas ao imaginário, mas também a imagens de verdades práticas.

Se é certo que "partir é morrer um pouco", como diz o fado de Alcindo de Carvalgo/Ricardo Ribeiro, Grando faz viver o presente emblemático com suas viagens poéticas. Seu livro Caminantes, em três línguas, é feito sobretudo de asas e é nelas que vou me deter. Já no primeiro poema, "O poeta tem um único dever sagrado: partir", Grando alude a "anjos sem asas". E assim remete, realisticamente, encontrável na internet como em vídeo, ao pivete anônimo, sem casa, sem identidade, faminto, filho do mundo, pedinte de tudo, criado próximo às drogas, em meio à violência, buscando atenção para não se tornar mais um bandido ou ser apagado como tantos que vivem (pouco), non sense, sem alma, numa vida provisória. A propósito, dada sua profusão hodierna, "anjos sem asa" é expressão ativa no contexto urbano contemporâneo.

Logo em seguida, em "O anjo e suas asas", Grando compara as mãos dos poetas Leo Lobos, Neruda, Rimbaud e Whitman a "asas que cantam e voam fora do tempo"; o mundo a "um barco de palavras e folhas ébrias" e de novo cada poeta a um "anjo elétrico que o conduz." É latente, agora, a homenagem/recorrência ao Bateau ivre, de Rimbaud; ao poeta/artista plástico Leo Lobos de "barcos — casas navegantes — papeles de levarán letra muerta impresa sobre si" e também seu colega de residência criativa em CAMAC – Centre d'Art Marnay Art Center Sur-Seine – France, 2002/2003; como menciona o Walt Whitman "Do inquieto oceano da multidão", que saúda "o ar, a terra e o oceano — todos os dias ao pôr do sol — por tua amada causa" — o amor. Além de Neruda, que registrou em Port-Said "os aspectos dilacerados de partir ou chegar", "as ricas misérias" nos portos africanos; o que em Madras observou os pescadores "ressuscitando sonhos cósmicos e heroicos", buscando "caminho para o esquecimento, nutrição para a esperança"; o que percebe no "inverno nos portos" uma "visível desordem moral! Na "hospitaleira e confortável Xangai com seus cabarés internacionais"; o que chama a atenção do mundo para o poema El rio, de Gómez Morel, onde "a barcarola mais amarga começa "cantada de um rio amargo e um homem que não foi vencido pelo mal nem pelo sofrimento"; o que convida a "navegar no fumo" "andar no rumo das lembranças quanto estas se fizeram fumo é navegar no fumo"; o que escreveu um livro de nome La barcarola, onde "o mar com seus silêncios e seus ribombos"; o que afirmou: "sou rico de pátria, de terra, de gentes que amo e que me amam"; e que "o mundo se oxigena junto à higiene azul das ondas". Neruda, âncora do mundo. O Neruda que, enfim, escreveu: "as palavras têm asas ou não as têm".

No poema "Os amores de Edgar Allan Poe", tem-se o verso "Valéry morreu depois de ter projetado o Anjo, sua última inspiração poética". Criado na década de 40, o poema veio a ter publicação póstuma, em 1947. Em "Iniciação" há um "anjinho de asas invisíveis — de olhos diamantes: minha boneca em meus braços de criança". E em "Marnay-sur-Seine, 4 de novembro de 2002", "asas de luz, gatos entre novelos de lã vermelha", acrescenta mais uma referência alada ao livro.

Em homenagem a seu pai, Grando o vê in memoriam no céu como "anjo de asas frágeis", ao contrário do Caminhante em Paris, que é visto como "o anjo de rosto grave", cujas asas "uma olha o mundo e a outra em si mesma".

Em "No espelho do tempo" tem-se o verso "asas translúcidas azuladas" para justificar "um vôo de seres luminosos, flutuantes".

Assim é o livro de Cristiane Grando: cheio de imagens oníricas, luminescências, líricas escritas ígneas, palavras muito sensíveis sobre toques de pensares profundos e raros, a lucidez de fazer diferença com a própria poesia, poemas para apurar os sentidos. Para tentar mudar alguma coisa.

 

 

Referências

 

ALMEIDA, Cristina Lúcia de. O elogio da forma literária nas poéticas de Paul Valéry e Osman Lins. Tese de doutorado apresentada ao programa de pós-graduação em Letras da UFPE, julho, 2009. Disponível em http://migre.me/eT2jn

EXPRESSÃO ATIVA. Anjos sem Asa. Disponível em http://migre.me/eT2kZ

LOBOS, Leo. Poesia Iberoamericana. Disponível em http://migre.me/eT2nd

MACIEL, Maria Esther. As vertigens da lucidez. Poesia e crítica em Octavio Paz. São Paulo: Experimento, 1995.

NERUDA, Pablo. Para nascer, nasci. São Paulo: Difel, 1979.

WHITMAN, Walt. Disponível em http://www.whitmanarchive.org/

 

 

 

©aline pires | teatro municipal de cerquilho | 2013

 

 

 

Márcio Almeida - Em que consistiu a vivência criativa em CAMAC – Centre D'Art Sur-seine? Em que sentido essa experiência acrescentou à sua criação poética?

 

Cristiane Grando - Foi um antes e um depois em minha vida literária! Fui morar quatro meses no CAMAC porque ganhei uma bolsa UNESCO-Aschberg de Literatura 2002, para jovens escritores. Com concorrência mundial, fui uma das finalistas daquele ano. O meu projeto era escrever poemas ou contos em francês, para só depois traduzi-los ao português. Escrevi o Caminantes parte em francês, parte em português, respeitando o ritmo inicial dos primeiros versos que me chegavam à mente. Naquele momento, comecei a ser simultaneamente uma escritora-tradutora. A partir dessa experiência nunca mais deixei de escrever e ao mesmo tempo ir traduzindo a outras línguas o que estou criando. Trabalho com português, francês e espanhol. E isso muda completamente a minha forma de escrever: cada língua ilumina a outra, traz novas perspectivas, maneiras mais profundas de ver e ler o que está sendo escrito. Com isso, os processos criativos se tornam muito mais ricos, mais complexos.

 

 

MA – Com base em sua experiência internacional e à frente do muito bem sucedido e exemplar Teatro Municipal de Cerquilho/SP, que opinião você tem da atual cultura brasileira? O que é preciso para levar ao povo, sobretudo do interior, a consciência crítica de que a cultura é tão importante quanto ter saúde?

 

CG - Ainda falta muito trabalho nas áreas da Cultura e da Educação, para que a maioria dos brasileiros entenda que Cultura não é sinônimo de Entretenimento. A palavra "Cultura" deriva do verbo "cultivar". No caso da arte, alimentar valores artísticos. Quando digo "cultivar valores" significa criar uma obra cujas características principais sejam tão significativas, simbólicas, representativas de um povo que possam vir a representá-lo como um de seus clássicos. No caso de um povo — seu modo de ser, de se vestir, de escolher seus alimentos, etc. — a cultura são os valores, as características que permanecem com o passar do tempo. A Cultura não está somente na vida artística — no teatro, no cinema, num livro de literatura; a Cultura é algo tão amplo que frequenta o dia a dia de todos os cidadãos. Por isso, todos deveriam se preocupar em ampliar o seu entendimento sobre Cultura. Por isso, um governo que valoriza e estimula o desenvolvimento cultural de seu povo certamente terá bons resultados em todos os sentidos: econômico, de saúde física, mental e espiritual, de amplitude de visão de mundo, de autoconhecimento e de consciência de seu papel social. Afinal, uma sociedade só é saudável se todos os seus indivíduos têm supridas as condições básicas de educação, cultura, saúde, lazer, entre outras.

 

 

MA – Na introdução do seu livro Caminantes, você escreve: "Caminho, penso, sou... Para tentar mudar alguma coisa". O que precisa ser mudado?

 

CG - Poderíamos mudar tantas coisas no mundo! Mas sem virar o mundo de cabeça para baixo. Evoluir: mudar com consciência, com reflexão, buscando atingir um melhor nível de vida para o indivíduo e para a sociedade como um todo. Pensar antes de falar e de agir é uma excelente maneira de começar uma mudança social.

 

 

MA – Seu livro é trilíngue e já está provado que o português, como idioma isolado, é mais um empecilho para a recepção do autor brasileiro lá fora. Que opinião você tem a respeito?

 

CG - Concordo plenamente. Muitos estrangeiros não entendem absolutamente nada de português. No mundo cultural, é muito mais fácil que as pessoas saibam espanhol e não saibam português, por exemplo. Então, entendem um pouco do que falamos ou escrevemos, mas nunca com a profundidade que poderia ser compreendido o discurso caso o leitor/ouvinte conhecesse mais a fundo a nossa língua.

 

 

MA – Em seu livro Caminantes o uso da palavra "asas" e, por conseguinte, "anjo", é quase uma obsessão. Como você o justifica? Por que você diz ter sido "O anjo" a última inspiração de Paul Valéry?

 

CG - Digo que "O anjo" é a última inspiração de Valéry, pois li em sua biografia que ele estava escrevendo esse poema quando morreu. Na mesma época que escrevi Caminantes, no CAMAC, também organizei duas exposições de fotos minhas. Acabava de conhecer Espérance Aniesa, que logo se transformou em uma grande amiga e tradutora de meus textos. Ela comentou, sobre minhas fotos, que registravam quase sempre um olhar para o alto, para o mundo espiritual. Creio que seu comentário serve para meus textos também. Mesmo sem querer, estava imersa numa busca espiritual muito profunda desde aquela época. Daí a presença dos anjos e das asas. As asas, anos depois, acabaram significando mais a busca da liberdade, algo que não é fácil de conquistar se consideramos a quantidade de travas que a sociedade nos impõe (no trabalho, no ambiente familiar, etc.). Concluo com um pensamento... "Sem liberdade não há poesia. Suprimir a liberdade é matar o viver. Quem a corrompe é um corrupto, não é um poeta. Quem obedece sem se rebelar é um escravo, não um poeta". (Eugenio Granell)... e com um poema: "arte, palavras, ar, amor / a que mais pode um homem aspirar? // asas translúcidas azuladas / sonhos que tecem um novo tempo" ("no espelho do tempo", poema de Caminantes).

 

 

Cristiane Grando (Cerquilho/SP/Brasil, 1974). Escritora brasileira. Tradutora de textos literários (francês, espanhol e português). Autora de Fluxus, Caminantes, Titã, Gardens, grãO, Galáxia, Claríssima, Infância e Embriágate — poesia em português, francês, espanhol, catalão, inglês e italiano. Laureada UNESCO-Aschberg de Literatura 2002. Doutora em Literatura (USP/SP), com pós-doutorado em Tradução (UNICAMP/Campinas), sobre as obras e manuscritos de Hilda Hilst. Professora convidada de Língua Portuguesa e Cultura Brasileira na Universidad Autónoma de Santo Domingo (UASD) de 2007 a 2011. Diretora do Teatro Municipal de Cerquilho (2013). Diretora-fundadora do espaço cultural Jardim das Artes (Cerquilho/SP/Brasil, 2004-2005) e do Centro Cultural Brasil-República Dominicana (São Domingos, 2009-2011), extensão cultural da Embaixada do Brasil em São Domingos. Seus ensaios, produções literárias e traduções estão publicados em inúmeras antologias, jornais e revistas impressas e virtuais, em alguns casos revistas científicas, de diversos países da América e Europa. Cristiane Grando possui ampla experiência em leitura de poesia para públicos escolares e universitários no Brasil, França, Chile, Argentina, República Dominicana, Haiti, Porto Rico, EUA, Portugal e Espanha, em congressos de poesia, eventos culturais, acadêmicos, feiras e bienais do livro.

 

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junho, 2013

 

 

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