Fêmur
Eu
não sou criança de novo, o peso desses anos todos parece ter
me dado de presente algumas toneladas, o colo de ninguém me
sustenta. Sou um elefante de fraldas. Um elefante com
osteoporose que precisa que lhe deem banho todo dia e lhe
troquem a fralda.
Não
uma criança, muito menos a criança que fui há 88 anos. Durante
esse tempo, meus pedaços se renovaram muitas vezes, ao ponto
d'eu não ser mais nada daquilo que nasceu comigo. Agora sou um
elefante de fraldas que ainda não aprendeu a andar e que
lembra da sua outra vida com estranheza.
Como
podem essa pele acinzentada e cheia de rachaduras e esses
fiapos de cabelo serem eu? Eu, que incontáveis vezes durante a
vida me olhei no espelho, concluo que minha memória mudou de
dono e que eu, tudo que sou eu, passado, presente... não tenho
imagem.
É
muito simples tornar-se outro, morremos e nascemos tantas
vezes na vida, que a metamorfose torna-se algo banal antes
mesmo de tomarmos consciência da nossa presença no mundo. Este caso, por
exemplo, imagine: uma freira andando pelos corredores do
convento, escolhe uma porta para entrar, anda em direção a ela
e vê alguém entrando antes. Apressa-se para aproveitar a mesma
abertura da porta, mas o outro que estava a segurar a maçaneta
não a vê. Bate a porta.
Queda
Fêmur.
E
num piscar de olhos sou um elefante que acabou de nascer no
fim da vida. Que precisa aprender a andar e tomar banho
sozinho.
Imagine
quantas vezes minha memória mudou de imagem durante esses
anos.
O
meu passado me estranha, mas estranha mais ainda essa vontade
de não morrer. De continuar uma elefanta perambulando pelos
corredores do convento, os fiapos brancos de cabelo
escondidos, assim como eram escondidos antes de serem fiapos e
antes de serem brancos.
Acho
que a vontade de viver vem da vontade de não morrer nas
paredes entediadas desse hospital. Morrer aqui, como um
elefante indigno que não se separou do bando para dar adeus a
memória, isso eu não quero.
Agora,
assim como uma criança, preciso aprender a viver como a
elefanta que sou. Em verdade, o espelho não importa, importa é
meu peso sobre o andador, o mingau sem açúcar que eu tenho que
tomar, as agulhas que me sustentam nesse mundo, minha primeira
nudez entre homens nesses oitenta e oito anos, pois que agora
nasci elefante e não sei tomar banho sozinha (que Deus me
perdoe por isso).
Por
que preciso suportar? Porque não posso perder o reino dos céus
depois de oitenta e oito anos de sacrifício. Porque tenho medo
de que a sete palmos do chão exista apenas sete palmos do
chão, porque viver é sofrimento, porque é isso que me resta,
porque em meio ao cansaço desses dias gris e aéreos eu ainda
tenho a esperança de acordar, rezar o pai nosso, tomar banho,
vestir o hábito e ir até a cozinha, comer um pão com ovo frito
e café.
Os
quinze dias de Zózima no Jardim da Morte
Zózima
era parteira, nascera para isso, sua mãe não sabia que ao dar
esse nome à filha, estava a condenando a anos e anos de braços
e mãos sujas do sangue de mosquitinhos cansados zumzumbir nas
barrigas prenhas. Tanta vida em um braço só, o único daquelas
bandas do rio que se dispunha a ser mãe de todos os que
nasciam, só poderia resultar em uma relação com a morte que
era um fio de linha de algodão.
É
bem verdade que a espiral do fim rodeia todos nós, mas
enquanto vemos essa dança girar em torno de nossas cabeças, ir
para bem longe algumas vezes e soprar em nossos ouvidos
noutras, com Zózima era diferente, ela dançava de mãos dadas
com a morte, e com mãos sujas do primeiro (e algumas vezes
último) sangue. União que acabava por deixá-la com a pele
roçando na vida o tempo
inteiro.
Em
seu equilibrismo por essa linha, Zózima descobriu duas
coisas:
1.
que a morte se traveste
2.
que existem mais coisas entre o céu e a terra do que sonha a
nossa vã filosofia
O
parto, não se engane que o parto é a sagração da vida, o parto
é o horror do medo da morte. Jorra vida demais, tanto que ela
pode acabar ali, naquele instante. Resta um mosquitinho morto,
a quase mãe assustada, que de tão assustada pode ir embora
para o além com seu zumzumzum. Mas quando o mosquitinho voa
para dentro do mundo e a mãe sente a vida jorrar do seu sexo,
eis que o nascimento e todo seu sangue vêm à tona e tudo são
flores. Zózima tinha isso nas mãos,
imagine.
Zózima
nascia em cada parto, mas o tempo continuava a passar e as
rugas a surgir e a vida a acumular e a morte a dançar um samba
bravo com seus braços. Tantos nascimentos num corpo só um dia
transbordariam por entre as unhas de Zózima, ela não fazia
ideia. Como já disse: não foi uma escolha, seu nome é quem
escolhera seu destino, antes mesmo que as mãos de outra a
colocassem para dentro do mundo.
Chegou
no mundo, nasceu, nasceu, nasceu e a morte resolveu acertar as
contas.
Houve
um dia em que Zózima acordou do lado de lá, assim: caiu dura
no chão, feito dormisse do cansaço repentino da existência e
lá ficou, estatelada. Levaram-na para a rede, onde dormiu por
dias e dias, que se transformaram no anti-parto de toda a
vizinhança. Enquanto todos rezavam, à espera do fim e já
conformados a recorrer ao frio e aos tubos das maternidades,
Zózima passeava por um jardim, desses de céu da Globo, de
vídeo de Karaokê, com uma senhora vestida de branco. Antes que
penses que Bergman estava enganado, lembre-se que a morte é um
travesti: veste-se de branco, preto, máscara, farda, asas,
ferrugem, foice, bengala, cassetete, tudo para te fazer
evaporar do jeito que o teu nome escolheu. Zózima logo
descobriu o figurino, e teve medo, sentiu o mundo todo lá fora
tremelicar e sua língua perder o sentido enquanto andava de
mãos dadas num lugar que não era o seu.
Zózima
só não sabia da existência da espécie de um
entre-céu&terra que é o matadouro da morte. Sabia menos
ainda que, nesse lugar, a morte cultiva flores e que os
mosquitinhos que escapuliram do mundo tinham suas vidas presas
à ela, a mão que os pariu. Acontece que enquanto a vida da
parteira seguia, a morte era obrigada a cuidar de um punhado
de recém-nascidos chorões, mijões e esfomeados, enquanto
aguardava o dia em que o nome de Zózima escolhera para
evaporar de uma vez. A morte não aguentou aquela eternidade,
decidiu se rebelar contra o destino e acabar com Zózima. Iria
matá-la de cansaço, de tanto andar por dias a fio em seu
jardim.
Passaram-se
semanas desde que Zózima caíra no chão, até as rezas
diminuíram durante a demora da espera, mas a morte continuava
a passear, à espera do fim daquela condenada. Dada a sua idade
avançada, dias depois Zózima cansou e viu o jardim se
desfazendo à sua frente em uma luz insuportável que aguardava
sua chegada.
O
que a morte nem Zózima esperavam, é que um dos primeiros
natimortos saídos daquelas mãos passara tanto tempo no jardim
que até aprendeu a andar e foi ao encontro de sua parteira,
puxá-la pela outra mão para a vida. A morte, cansada que
também estava, desistiu e foi dar de comer aos
chorões.
Zózima
acordou na décima quinta manhã e viveu até quando seu nome
quis. Morreu num dia chuvoso, porque o entre-céu&terra
transbordou de vida quando ela se foi.
Hoppípolla
Meu
mosquitinho, dorme, dorme, dorme. Não sei dizer se há adeus
mais doído que o teu. Enquanto te escrevo, um passarinho chora
tua ida lá no quintal. Ousarei imitar o Bandeira para ti, meu
bem: e te amo como se ama um mosquitinho morto. Eu sei que não
se costuma amar mosquitinhos mortos, mas eu te amo, para
sempre. Para sempre tu irá zanzar no oco da minha barriga
estéril.
Mosquitinho,
mosquitinho... tão pequeno, zanzando na água do meu ventre. Só
eu e tu e aquela noite terrível e negra manchada de vermelho
no meu quarto. Só nós dois sabemos daquele terror. Só tu,
mosquitinho, me entenderia. E é por isso que te escrevo,
porque ao contrário de ti, meu amorzinho, eu ainda tenho
memória e a dor não passa. Eu queria ter escorrido da vida
naquele dia contigo, mas eu fiquei. E
dói.
Lembra
do sonho que nós tínhamos naquele dia? Antes de deitarmos eu
ouvia uma música do Sigur Rós: Hoppípolla, lembra,
mosquitinho? Aquele vídeo com velhinhos brincando na rua como
nós dois brincaríamos daqui a uns meses. Quando tu ficasse
grandinho eu te ensinaria o que significa Hoppípola: é
Islandês, quer dizer pular em poças. Isso mesmo, em Islandês
existe uma única palavra para descrever esse ato tão
insignificante. As línguas tem dessas lindezas, mosquitinho.
Que nem a saudade do português. Que saudade de ti, meu
pequenino zumzumzum.
Lembra
como era feliz o nosso sonho? Eu e você, ainda invisível e sem
peso na minha barriga que crescia, pulando poças pela rua a
caminho da padaria para comprar quindim. Eu ria muito e te
segurava para não pular demais lá dentro. Eu sentia o teu
zzzzzzzz de felicidade comigo,
mosquitinho.
Então
aquela velha invejosa nos parou e me olhou fundo, até te
encontrar escondido e me dizer: "tu te afogarás na lama".
Lembra daquela velha maldita? Nós deixamos de rir, tivemos
medo e ela foi embora. Ai, mosquitinho, me dói demais isso
tudo rodando na minha memória em vez de ti rodando no nosso
futuro.
Meu
filho... aquela poça de lama que surgiu no nosso caminho, eu
devia ter voltado. Mas a vontade que eu tinha de comer
quindim! Desculpa, meu mosquitinho... eu não poderia imaginar
que aquela velha tinha dado início a esse pesadelo sem fim.
Ai, eu queria não escrever isso, eu nem sei se minhas mãos
aguentam esse sofrimento. Mas eu preciso, mosquitinho, por
favor, me dê pela primeira e última vez suas mãozinhas para
que eu expurgue esse horror de mim.
Tu,
tão puro, tão virgem do mundo, sem culpa, ali comigo, naquele
martírio. Eu caindo na lama, naquela poça sem fim, me agarrei
a ti, meu amorzinho, a gente naquele negrume de dor, sem ar,
aquelas lâminas de barro nos rasgando sem piedade. Ai,
mosquitinho.
Eu
ainda não saí da lama, o ar que eu respiro tem cheiro e
consistência de terra, cadê tuas mãozinhas, mosquitinho? Meu
pequeno, tu não sabe como dói me olhar no espelho. Eu estou
vazia! Eu virei a morte, sei disso porque vejo a cara de
assombro de quem me olha. Eu levo a lama nos meus pés,
mosquitinho. Só tu me entenderia, eles não sabem de
nada.
Mas
tu voou, mosquitinho
e
a corda da vida amarrou meus pés a sete palmos do
chão
a
respirar.
Mosquitinho,
mosquitinho, zumzumzum, voa, voa para longe, para
sempre.
Descoberta
Quando
meu avô morreu, fiquei muito triste. Ele disse querer comer
peixe frito com farinha e comeu peixe frito com farinha, não
tinha porque ter morrido.
Há
dias ele não saia da rede e não reclamava mais dos netos
barulhentos, também tinha abandonado a pinga e a cadeira de
balanço. Mas ele tinha comido peixe frito com farinha, não
deveria ter morrido.
Meu
avô bebia, bebia muito e se balançava na cadeira. Também nos
ameaçava sempre de porrada, porque nós éramos barulhentos e
ele gostava de silêncio na mesa, e no resto do mundo. Na
verdade, eu não sei dizer se ele gostava de silêncio ou
simplesmente não gostava de nada e por isso reclamava
tanto.
Eu
gostava dele.
Aliás,
o meu avô gostava de fazer uma coisa: sentar na cadeira de
balanço, tomar pinga e olhar o rio. Como o rio ficava na
frente da nossa casa, ele não tinha muitos motivos para fazer
outras coisas.
Um
dia meu avô deitou na rede e nunca mais saiu de lá, mas a rede
ficava na frente da janela, que ficava na frente do rio, ele
não tinha mesmo muitos motivos para sair de lá. Só não entendi
o motivo de ele ter parado com a pinga.
Depois
de um tempo meu avô começou a inchar. Inchou tanto que sua mão
começou a partir. Eu pensei que ele fosse explodir e encher a
casa de tripas qualquer dia. Mas ele não era o tipo de pessoa
que faria isso com a gente. Explodir e encher a casa de tripas
não era bem algo que meu avô, amante do silêncio,
faria.
Disseram
que alguma macumbeira tinha colocado o nome dele na boca do
sapo e costurado a boca, do sapo. Essa mulher sim seria capaz
de explodir e deixar a casa de alguém toda suja de tripas.
Ninguém soube o paradeiro do sapo e um dia meu avô pediu para
almoçar peixe frito com farinha.
Depois
começou a gritaria pela casa. Ainda bem que ele morreu de
olhos fechados meu avô, que gostava tanto de silêncio, não
ficaria tranquilo ao ver aquele escândalo na hora da sua
morte.
Eu
tive que atravessar o matagal que ocupa o lugar do rio nos
meses de seca para avisar o resto da família que vovô tinha
ido embora, mesmo sem achar que aquilo podia ser verdade. Logo
ele, que tinha acabado de comer peixe frito com
farinha.
Quando
mudei para a cidade, descobri que o nome dessa macumba que
incha a pessoa até a morte ao colocarem o nome dela na boca do
sapo é cirrose.
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