Cadenza

 

 

que toda a noite te torne humana: obra

benjamin, platini, querino

 

  Esses traços que nos entregam à vista

essas questões de descoberta e companhia

essa fidelidade de um tinto compartilhado

a mão estendida,

um cigarro aceso

(um maço inteiro numa manhã de abril)

conversas tolas sobre alguma consciência

   que talvez nos falte agora

a exatidão de poemas mal escritos e alugueis atrasados

o pó estendido através de prestações desperdiçadas

a cor por entre as frestas de um sonho

  sobre como a noite vai desenhando os encontros

   e como tudo isso é diferente do resto, vozes

                                         contra o vidro embaçado —

     daqui a pouco a chuva irá nos atrasar

   mais uma vez —

e o que dizer da estranha disposição de tudo

da necessidade de nos mantermos vivos

dessa absoluta presença do vazio

gestos perdidos fazendo sombra no chão molhado

  em contraponto à luz do poste

  que denuncia aos míopes se a chuva ainda está ali

ainda com o reflexo do desprendimento

 

rabiscado em papel manteiga

 

 

 

 

 

 

desde que reviva intensa

 

I

: esse blues vai se arrastar até a noite não ter fim,

                            você me diz

mas noite já não é

então respeite as bitucas pelo quarto

e o gosto que fica

na espreita; traços de força
  duma fome que ainda é
essa canção que apenas a manhã traz

    quando a cada passo

é preciso dizer amém, salvação

                   o fato de apenas lá

 

e o que sucede a tudo isso
  o corpo ainda

 

 

 

 

 

 

sobre uma tela de Rothko

         (ao som de algum Tomasz Stanko)

 

 

assim que o corpo penetra o silêncio

logo atrás da porta

há todo o instante

indesculpável e verdadeiro

absurdamente real

a sequência dos fatos, a saber:

a silhueta que se move no escuro

rastando entre saliva e suor

não diz mais que a presença

interminável

de exatidão e poder:

sabedoria e música ancestral,

geme a aliança —

para apenas ser não é preciso muito:

basta —

 

 

[da série "Tertúlia"]

 

 

 

 

 

 

                              e então é isso

             (essas ruas são de teu nome o leitmotiv

                 observo agora por entre as frestas

                                          que portas e janelas apresentam

e penetro intensamente: Somos estrangeiros para qualquer amor,

    o desejo (somos o que quer que seja

 

um cigarro que se apaga sob a luz do candeeiro

movimento que se desenha através dos lençóis da memória

    corpo intenso, vazio pleno

 

e esses objetos todos dispersos por sobre o chão cor de poeira

  a reivindicar cada qual para si

 um lugar de precisão

 nesse confuso novelo, labirinto em que nos perdemos

          enquanto o batuque, a dança; saliva e dentes

               rasgam, e também sob as unhas

                                     os muros todos que se levantam e não somos

 

 

 

 

 

 

terminal

 

A cidade reflui em sua hora mais exata

um silêncio cor de bruma:

Eu não reconheço esses passos, ela diz

: eu não reconheço esses passos

 

corro tantas ruas, vidas

eu não reconheço esses passos

enquanto atravesso alamedas no caso de nossa fuga

eu não reconheço esses passos

mas a diante um velho toca a sua panela de mola

eu não reconheço esses passos

por tudo o que nos espera exatamente aqui

eu não reconheço esses passos

e o que será então

eu não reconheço esses passos

 

volta e meia olho para trás

eu não reconheço esses passos

o sol no asfalto bate em minha testa que estilhaça o mundo

eu não reconheço esses passos

uma gilete rasga entre os dentes o calor de meio-dia

eu não reconheço esses passos

da corisa escorre sangue na retina do pesadelo

eu não reconheço esses passos

o crime esse piano de compasso extenso

eu não reconheço esses passos

 

encontro palavras que me lançam ao desconhecido

eu não reconheço esses passos

e nessa galeria o Amor

eu não reconheço esses passos

 

a realidade é demasiada

eu não reconheço esses passos

vejo o tráfego a pressa a fome

eu não reconheço esses passos

vejo meninas que nunca dizem Sim

eu não reconheço esses passos

vejo a certeza e pés ao chão

eu não reconheço esses passos

e há ainda essa conversa, o futuro

eu não reconheço esses passos

 

mas percebo que por aqui há também qualquer coisa que se move

eu não reconheço esses passos

há algo que chama o meu nome

eu não reconheço esses passos

 

in a silent way

eu não reconheço esses passos

in a silent way

eu não reconheço esses passos

in a silent way

eu não reconheço esses passos

eu escrevo um poema

          eu...

 

 

[do poema "In a silent way & improvisos"]

 

 

 

 

 

 

(pelas tardes de domingo e vinho tinto)

 

 

    espero, então, a coisa tua

    como se  

         de fato tu viesse, mulher

      inteira

       sem desculpa sem promessa

certeira e possível                              sem beira

     para além das causas perdidas

     para perto bem mais perto ainda mais

        que a superfície                         transborde

            e a gente possa, enfim, amanhecer

como nas tardes de domingo e vinho tinto

       como nas tardes de domingo e vinho tinto

                                                      teu corpo

   ao meu, tua boca

   teu verso

que nunca escrevi

         para ser apenas nosso esse gosto

 

 

[da série "Sobre quantos cafés desperdiçamos"]

 

 

 

 

 

 

poemas de aurora

 

 

 

Via Roma, 38

 

       Esses olhos, o que dizem

  se não há mais vasto o mundo

              traços

          de certeza      mesmo o céu

       que a boca almeja

nessa hora do dia, um cigarro

  outra mão refaz a tela

 

 

 

 

 

 

(shh)

 

   sorrateiro

   me moverei

   por entre

   os espaços

   de tua voz, ali

   onde encontras o Vazio

        (lugar de satisfação)

 

 

 

 

 

 

— a começar de novo

 

ao chão todas as armas

a entrega num jorro inteiro

        as camadas

   são um interdito

   (algo estremece)

 

 

 

 

 

 

Poesia:

 

  ar que nos escapa

  se percorro

 eu o teu corpo e tu o meu.

 

 

dessin à boire

 

                     é possível que —

depois      a porta

   para trás

   é quando o amor

      acaba

 

(o que ela diz)

 

 

 

 

 

 

(cool jazz)

 

, 25 de novembro de 1987: aquele
céu vivo de garcia lorca, e então
um cigarretes: 8h14 —
devo partir

agora

contra o azul dessa paisagem
     

 

 

[da série "manhãs de agosto, ou Opalino"]

 

 

[imagem ©caro aires]

 

 

 

 

 

 

 

querino (Vitória da Conquista/BA). Poeta. Tem promovido, junto ao pessoal que frequenta o que é conhecido por candeeirocafe [candeeirocafe.wordpress.com] — seria um selo, um coletivo? Uma possibilidade, certamente... uma abertura — leituras de poemas em sua cidade, além de outras atividades, tendo em vista a formação de público e a circulação do que se produz na região. Eventualmente, escreve em seu blogue pessoal: amaispuraseda.wordpress.com.