BLUE

 

A segunda amanheceu carrancuda. Não gosto de chuva, fico cinzento. Tomei o café em silêncio na padaria e sorri amarelo para a Margareth. No metrô, irritado com o aperto, escureci mais ainda. Muito também pela mulher empurrada. Berreiro de desaforos. Gritos me deixam roxo. O grotesco se aproximou. Um homem de uma perna só, muletas, tentou andar com o vagão em movimento. Não pode. Caiu em cima de mim, quebrou-me o guarda-chuva. Vermelhei. Cheguei ao ponto final. Blue.

 

 

 

 

BANDEIJÃO

 

Almoço em silêncio mastigando sozinho as ideias. Senta-se em minha frente um senhor grisalho também desacompanhado. Apoia a bandeja sobre a mesa. Aperta os olhos franzindo o cenho e coloca as mãos na testa. Talvez esteja mal, cansado, alguma coisa doendo. Engano-me. Fica um tempo naquela posição. Os lábios movendo-se vagarosamente emitem pequenos e suaves estalos, delicados muxoxos. Termina a prece com um sinal da cruz distraído. Suspira profundamente livrando-se de boa quantidade de ar. Abre espaço para atacar o prato, subitamente interessado no feijão, talheres em punho. Abaixo a cabeça, olho desconfiado para a escarola refogada, carne assada ao molho, arroz integral, batatas coradas. Falta pimenta.

 

 

 

 

SÃO PAULO

 

Nós dois envelhecemos mal, São Paulo. Você acostumou-se a me chantagear e eu deixei. Fui ficando em troca do oferecido. Trabalho, família, amigos, sabe o quanto dependo deles. Mas estou cansado. Detesto andar por suas ruas com medo, gastar-me no trânsito, ter o ar me arranhando a garganta. Se eu pudesse, soubesse ser livre, estaria longe. As pessoas não mais são amáveis, perderam o humor, também se gastaram. Do que me adiantam pratos refinados, música de qualidade, ruas cheias de ipês coloridos? Nada disso vale se envelhecemos tão mal. Eu triste, você violenta.

 

 

 

 

NATAL

 

O rádio toca baixinho esse cara sou eu. Não é ele. Curvado no escuro da portaria Edmilson vê os minutos caminharem lentamente, demorados. É Natal faz vinte e três anos. Odores de comida descem pelo buraco do elevador, misturam-se, enjoam. Era moço quando passou a primeira véspera ali e chorou sozinho. Criou os filhos, envelheceu. As luzinhas piscando hipnotizam. Madrugada. Por suas contas todos já foram embora levando suas alegrias embrulhadas para presente. Pode fechar os olhos sem grandes riscos. O sono é pesado e sem sonhos.

 

 

 

 

 

COTIDIANO

 

Manobra o carro. Estacionamento do supermercado lotado. Antes de descer observa-se no espelho retrovisor, aprova o que vê. Estica o braço e pega a bolsa. Enfrenta o burburinho com calma, poderosa, ignorando as filas. Para o carrinho aqui e ali. Abastece sem pressa. Atende o celular, conversa. Veste-se jovialmente, jeans e blusa curta, barriga quase à mostra. Joias, perfume francês. Cabelos aloirados tingidos de forma profissional, maquiagem discreta na pele esticada por bisturi competente. O andar elegante equilibra-se sobre saltos de plataforma. Na seção dos dietéticos gasta mais tempo. Pão, adoçante, gelatina e barrinhas de cereais. Os olhos pintados passeiam confiantes e interessados, de rapina. Sorriem para o rapaz que corta os frios. Creme para o corpo todo e bronzeador fator de proteção trinta. Continua. O anel prateado faísca no polegar, dedos finos e esmaltados, vermelhos. Enquanto aguarda a carne no açougue atende outra ligação. Pequena borboleta no peito do pé direito tatuada. Latinhas de cerveja para completar. As filas espicharam mais um pouco. Apenas uma tem tamanho razoável, a dos idosos. Ergue a cabeça abrangendo todo o cenário. Um brilho estranho passeia por seu olhar, suspira profundamente, escolhe a menor.

 

 

 

 

AMOR

 

Um casal de idosos aproximou-se e escolheu a mesa próxima. O senhor ajudou a companheira a sentar-se. Pegou um prato, dirigiu-se ao bufê. Solitária, quieta, olhar fosco, desinteressada do entorno, ela apoiava a mão esquerda de forma peculiar sobre a toalha. Parecia querer equilibrar-se, como se tudo ao redor pudesse mover-se a qualquer instante. Praticamente agarrava-se ao tampo de madeira, em um gesto tenso e pouco confortável. O homem, cabelos brancos bem aparados, retornou. Colocou, encurvado, o alimento em frente à senhora. Novamente retirou-se para servir a si próprio. Voltou logo. Então ela pegou com a mão direita, sem descuidar-se da outra, sempre rigidamente apoiada, um bonito pastel. Comeu vagarosamente, empertigada, sem demonstrar prazer. Quando terminou ficou imóvel, esperando. O velho interrompeu a própria refeição, cortou o bife em pedaços pequenos, abasteceu o garfo e levou até a boca da mulher. Discretamente observei aquele penoso ritual. Havia carinho entre os dois. Em dado momento percebi um quase sorriso acendendo os olhos opacos. Perdi o apetite. Levantei-me, paguei a conta e afastei-me dali. Apavorado.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[imagem ©joseph beuys]

 

 

 

 

RICARDO de Medeiros RAMOS FILHO escreve textos infantis e juvenis. Destacam-se entre seus livros: Computador sentimental, Sonho entre amigos, O pequenino grão de areia, Sobre o telhado das árvores, Vovô é um cometa, O gato que cantava de galo, João Bolão, Na travessa da macarronada e O livro dentro da concha. Em 2013, publica mais dois livros infantis: O cravo brigou com a rosa, pela Ed. Melhoramentos, e Pipi-Tara-Tatá – quando o menino ficou pelado, pela Ed. Globo. Atualmente é mestrando em Literatura Comparada pela USP. Trabalha também como roteirista de cinema, tendo recebido em 2007, por ocasião do II Prêmio de Literatura UBE/Scortecci, "Menção Honrosa" pela obra: Os caminhantes de Santa Luzia (adaptação da novela homônima de Ricardo Ramos). Escreveu, em coautoria, Paisagem Muda, roteiro, 2010, curta, selecionado pela Prefeitura de São Paulo e premiado com verba para ser filmado em 2011. Ministra cursos e oficinas de textos, e participou como jurado do PROAC 2010, do PROAC 2012, do Prêmio São Paulo de Literatura 2011 e do Concurso Internacional de Microcontos da revista italiana Quaderni Ibero Americani 2012.