TEU VERSO

 

Para, espera, sente

o verso:

corpo quente

que te envolve, te abraça,

martiriza.

E consente o amor:

teus olhos nascerão

para o infinito retido

e sofrerás abismos do eterno.

 

 

 

 

ISOLAÇÃO

 

Da vinda

da vida

só lembro

lamento:

preciso.

 

 

 

 

FLASH

 

Gratuitas flores assaltam minha boca

na corporificação

da preste imagem,

sulcante febre de lacunas e

mergulho.

 

 

 

 

[Do livro A hora maior. Goiânia: Editora Oriente, 1970]

 

 

 

 

DUPLO MORTAL

Postar-se

no desvão

entre dois argumentos,

por dois segundos.

 

Respirar

economicamente

entre duas palavras,

duas ondas

muito crespas.

 

Decidir

em sânscrita ilusão:

viver

ou deixar para mais tarde.

 

 

 

 

EXÍLIO

 

1.

Desconfio de mim

em outro lugar

a carpir saudades

jamais sentidas daqui.

 

2.

Esta árvore

é a árvore?

ou a ilusão fabricou

a sombra doméstica,

espinho do desterro?

 

 

 

 

FILME NOIR

 

Um silêncio oco, de catedral,

passos ressoam,

uma porta bate.

 

Se você não percebeu,

fui eu,

definitivamente.

 

 

 

 

OBSIDIANA

 

Oh! Olhar de larva,

cinza muda,

pedra.

 

Olhar etíope

a cruzar o Eufrates

procurando o cerne.

 

Me olha de novo

do canto escuro

do teu olho preto:

te juro tudo,

de amor a mel.

 

 

 

 

ATENTADO

 

Em certo sentido,

uma bala normal

penetrou-me  o flanco esquerdo,

lacerou-me a respiração

e descreveu um arco

sobre meu arquipélago de crenças.

 

Por que,

então,

guardo o bilhete

de volta?

 

 

 

 

BALADA

 

Esta gota de veneno

no fundo do copo

nada tem de poética:

enfado nosso de cada dia

através do vidro.

 

 

 

 

VIOLAÇÃO

 

Para onde vão as lágrimas?

Para onde

no amor recusado

degredo?

 

Onde

as nossas?

amálgama

saliva

suor

sem fôlego

e limites?

 

Onde,

volátil,

a humana perdição?

 

 

 

 

ARQUEOLÓGICA

 

Na urna do dia,

no envelope das horas

(sequer à beira do último degrau),

não te acorrentes

ao que

não vai voltar.

 

 

 

 

INSÔNIA

 

No torpor da noite,

sequer um estilete.

 

Se estivesses aqui

poderíamos tentar adivinhar

pela posição dos astros

o instante da perda,

doida sensação

do destino à deriva.

 

 

 

 

BLUES

 

Que permaneças

aquém do umbral

inalcançável

sem legenda

fruta copiosa

devagar

para sempre.

 

 

 

 

MÚSICA DE CÂMARA

 

1.

Na velha casa,

atrás das portas altas,

escorpiões tocaiavam

a última surpresa

dos adultos.

 

2.

Ah! a voragem

do retorno

e o remorso

de ter vivido demais

e aprendido

o precário significado

das coisas.

 

 

 

 

SENTENÇA

 

O século nos ameaça

- a punhal -

contra o lugar-comum.

 

Onde colocarei

minha estrela

senão sobre a duna

de um deserto intocado.

 

 

 

 

GONGÓRICA

 

Se não experimentas

o cimo

cala-se a montanha.

 

Se a profundeza

não tocas

fecham-se as águas.

 

Ah! o tormentoso

ir e vir

o brilho da benesse

o avaro beijo

o êxtase e suas plumas.

Apenas assim

o fôlego

a vida.

 

 

 

 

[Do livro Arremesso livre. Rio de Janeiro: Editora Relume Dumará, 2004]

 

 

 

 

MAÇÃ

 

a perfeição

vem

do rigor.

 

a doçura

subverte

o conjunto.

 

*

 

sob a pele

hermética

o sabor do éden

negociável

a cada mordida.

 

*

 

esmero

e lustro

suntuosamente

armados

sobre o prato.

 

os sentidos

hesitam:

repentina afeição.

 

*

 

o fruto

silencioso

resgata a função

dos dentes.

 

na contramão,

o desassossego

pela ruptura iminente.

 

o nexo?

esse foi devorado,

em desatino.

 

 

 

 

ESCASSEZ

 

Ah! o engano

a alimentar

a garganta esfolada

sem que verta o cântaro.

 

Porque toda véspera

é tensa

e pulsa

seu esforço ainda vazio.

 

A véspera

é pura sede.

 

 

 

 

AS QUATRO ESTAÇÕES

 

1.

Expor-se ao néctar

e ao aroma dos jasmins:

nada é tão violento

quanto a primavera.

 

2.

Dos verões

tudo se esquece.

Apenas

um certo azul

persiste

em tons de asa

e ressoa porta afora

como passos

prenunciando a chave

na ranhura.

 

3.

Errantes pernoites

trazidos pelo vento

denunciam

a indecisão:

nem bem verão

e já tão inverno.

 

4.

Aconchegante,

a falsa lareira

fabrica o frio.

Só o queixo treme

sutilmente

com medo do medo.

 

 

 

 

MÁSCARAS

 

1.

Furtivo

um rosto

veloz

no tráfego.

 

2.

Meu duplo

em contemplação?

 

Ou ambos,

daqui a décadas,

redesenhando o cotidiano

à mão livre?

 

 

 

 

O PODER ENFEITIÇADOR DA MIRAGEM

 

Era apenas

delicadeza

a enfeitar tua respiração

entre as palavras.

 

 

 

 

MINERAL

 

Sob a serenidade

recolhe-se

aos cacos

uma única antevéspera.

 

Dentro da bolsa,

o sentimento

em pérfido disfarce

nos resume.

 

 

 

 

CRATERA

 

Daqui

pode-se ver:

a eternidade

termina

logo ali.

 

 

 

[imagens ©alexis heuer]

 
 
 
 
 
 
 
 

Vera Americano nasceu em Minas Gerais. De família goiana, esteve entre Goiás, Rio de Janeiro e, depois, Brasília. Estudou Letras em Brasília, na UnB, e fez mestrado em Literatura Brasileira na PUC/RJ. Foi professora de Teoria da Literatura na Universidade Santa Úrsula, no Rio de Janeiro. Em Brasília, trabalhou no Centro Nacional de Referência Cultural (CNRC), no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e na Consultoria Legislativa do Senado Federal, na área da cultura. Publicou A hora maior, poesia, 1970 (1º prêmio da União Brasileira de Escritores), e Arremesso livre, poesia, 2004. Tem poemas publicados em jornais, revistas e portais especializados em literatura.