Acreditar (queremos; e)

 

 

Nas escaras ardidas do que o instante é sobra: o infame gesto de ofertar carinho (risadas aqui) faz curva — é falácia, como tudo; e ficamos. Devíamos saber: as cores explodem em revoada, e ficamos.

 

(Nenhuma risada, ou: Por que a alegria não vem).

 

 

 

 

 

 

Dia útil

 

 

uma réstia avisa: florescem os ácaros, a fuligem, os grãos da cidade, são as mariposas mortas da manhã, plumas de microunhas, microdedos, microeus dançando num tubo de velocidades da cortina ao copo — alguém esqueceu, como esqueceu-se das unhas, dos dedos, dos eus por aí, por acaso, pelo chão da sala também.

 

 

 

 

 

 

Apagamento

 

 

Y es sólo entonces

cuando están muertos, cuando están vestidos,

que la ciudad los recupera hipócrita

y les impone los deberes cotidianos. (Cortázar)

 

 

Os textos se perdem

 

[como a pele das mãos e dos pés na fagulha dobrada que suscita o desmaio, o instante necessariamente anterior ao que é pó (pós — os meios se perdem); na desfragmentação tátil dos olhos em mil luzes escuras de caleidoscópica vertigem rumo ao desencontrado chão]

 

quando calçam os sapatos

 

[perdem-se na antecipada sujeira acumulada da rua gravitando incômoda e resoluta no mais líquido e íntimo anseio: restar]

 

os — poços estrábicos de delírio abissal —

 

[perdem-se, pura pulverização, na queda até o breu imbebível da memória, para onde, sem arbítrio, são lançados, transmigração-contragosto — os:]

 

amantes.

 

 

 

 

 

 

Ficar

 

 

(fitar vermelhos os portões:

tateamos, sabemos)

 

o vapor avisa, é só o início, todo mar é invisível, infinito, é tão pouca a noite e já os engolimos todos; vomitam-se desmoronamentos nos modos-de-dizer: errados, todos eles (alcançar é além da mão — eu, que te trago aqui dentro), indomáveis na água, na terra, na santa sede de assassinar; tudo açoita, tece o desespero de infligir perícia nas imprecisões, o eu empobrecido morde o descosturar das cicatrizes enquanto monumentos tombam. voam outonos. modos-de-sentir eclodem atrás da crosta dos cílios, sob o ventre arrebentado, de dentro da massa purulenta dos urros. é a oração ao ego; a ladainha entrecortada conclama mesquinharias e ainda assim a explosão brilha o óbvio — estraçalhado, escorre em uníssono nas franjas dos órgãos em frangalhos, rasgado de pureza:

 

— Eu te amo.

— Eu te amo.

 

 

 

 

 

 

Fagulha

 

 

adormece do enfunado logro (muitos pés, nenhuma pata; valem-se heróis) o triz-mistério na pequena fábrica de confusão:

 

(relincho, sendo "relincho" meu mais alto verbo dicendi, faiscado luar de pura glória)

 

extática esquiva da calçada; monumental: mania nas unhas: seria o teu sangue no curto jorro, mas: já seco, crepita a pele velha uma ferida; atrás da palma geme um motivo — irrita os olhos —, ideia fixa, "desvirar rumos!" vislumbrado na fogueira fálica do silêncio; curva fagulha me pesca, iça contemplações, olho, olho, vejo, cor-de-rosa o violento órgão, pulsa à altura do queixo (meu cavalo acorda, descontrolado), miragem de sussurros lúbricos à desescalada sede — embora paire, de fato, palpável átimo de perfeição; recarregar com a mesma luva o cantil e o revólver (guardá-lo; lagarto do deserto, camuflado de espreita), intuitivo caos de malabares: viver-morrer-viver, ganhou viver, mas insiste circense a espiral: acender saúde para saltar com mais desperdício, nada mais, já rachado o duríssimo crânio (escorrendo livre a razão); desmaia um sol no horizonte (um a menos), foco roto no absurdo: sob os bolsos, urina – poupar vielas (há morte nos becos), arrastar noturnos pés onde você não vai (ilógico: ganhar morrer é qualquer minuto, ouça, formigas já roem nossos sapatos em terrosa prévia); orar babando joelhos – é quadriculado o chão da loucura — "dói pisar as linhas", "dói pisar as linhas", "dói pisar as linhas" — exalam alívio as celas (qual a minha?) — pisca vertigem preta-e-branca enquanto caminho (saem de mim, os interstícios) — morrer-viver-morrer – eu te amo o pus que goteja da minha confissão suja ou lava? onde, no crespo jugo da intermitência, o espelho? qual a cor da angústia?

 

concentrada: teu nome.

 

 

 

 

 

 

Casebre

 

 

Rasgar água sob este telhado:

 

— vinco —

 

estua o riso dos corpos a fatiarem-se ledos na bacia de gozo. Crédulos; e eu também: cada pele encobre uma liturgia particular. Lavo-me santa; mergulho as mãos nesta chuva e não compreendo a cor do que se me derrama com lascívia; engulo para que exista o pecado e sua função me organize: para que possa então gritar até estourar o couro da pálpebra inexistente de um peixe ______ (não há grito). Apenas existo a falência inteira de uma coisa viva. Ainda ouço. Recebo o peso desta fumaça que flutua morna e não entendo por que sinto meus tímpanos perfurados, carne moída do juízo — escorre, meus ouvidos criam línguas como máquinas sangrentas; sou eu a aberração. Ouço, e é contínuo. Ainda flutua, ainda perfura, ainda me empala o vapor de cheiros. (Que arrepio vago carrega o meu desespero para o sumidouro de um útero? Se eu fosse uma rocha, não teria útero. Nem desespero. Haveria a eternidade de perecer no carinho máximo de uma onda. Mas: sou mulher, tenho quadris; sei o gosto da voragem. Por isso corrói.) Não durmo e a ausência completa de sono me faz me sentir imortal, mas, de algum modo, as coisas sabem quando amanhecem, e seguem: de repente, já não há barulho. Só a minha cantoria de lavadeira, agora. Persigo sinuosidades, e encontro cada plumagem retorcida no embaralhar das mãos. Sim, no peito. Canto, a água de cândida na saia. É devoção este dobrar de joelhos para ariar com minúcias a cola gelada no alumínio. Acaricio cada mancha. Espirro ainda a mesma dor — este cheiro —, e os dentes estremecem frágeis, só querem se despregar dessa falha insuportável que os encarcera.

 

 

 

 

 

 

Retalho

 

 

Trêmula, na fímbria das exortações. Sim, escolho o mergulho, escolho o sangue nesta pedra profética. A altura de enlouquecer. Toco então a pequena nódoa: visito com a língua a singularidade desta matéria escura e reparo vívida (insola à luz recôndita desta dor) na tez intumescida que pariu em vapor a lubricidade já longínqua que ainda gruda neste suor — seco. Incrusto cólicas na minha falta de ventre: espedaço trompas em glande e, macho, enfio a minha transmutação bêbada (supus) na boca branca de um carrossel. Fabrico percursos para o som já dentro da minha própria garganta: dos mais infestados de patas — era um maestro ninando uma fogueira desértica de coiotes —, e sangro. Respiro desde onde fede a trama do tecido e desejo existir o cu de um pato num lago fresco às minhas costas. Emaranho quem eu sou num arbusto inconclusivo, esta estrada de armadilhas. Sou tão mesquinha quando me esgueiro como um gato: não sou um gato. Quero morrer (é irrelevante; quero ser uma fita ao vento, também, ou um seixo liso de rio). Insisto: mordo a voracidade que meu palato me narra — espetam os gostos. Sinto o sal de um pelo me cravar e enegreço, eu própria o precipício. A minha boca floresce num coágulo de rancor; transbordo e me visto dele. Salpico túmulos no horizonte, mordo veias no pulso do sol — acendo o contorno de uma mácula (eu o lençol); magoado, um G R I T O.

 

 

 

 

 

 

Faca

 

 

Eu queria enfiar a faca no couro secular desta alma que eu sou: derreter longamente para o Silêncio. Desaparecer. Acabar, como um livro. Ser de vez uma profunda solidão no âmago estúpido de um verme. Mas o tempo verdeja tépido suas franjas de lodo sem que eu possa existir aquém do acúmulo pútrido que se tece nas minhas esquinas — esquecer não existe. Estou tão pesada de imortalidade. Há melodia grave, encharcada de uma velha sabedoria de álcool (esta saliva) na voz que me habita e diz: "não vai passar". (Maculo trêmula a calçada ensaboada na última hora dos bares com a minha insistência, pedra incômoda, e recebo a água espumante de rejeição nos meus pés sob a força de um mar — também aqui dentro me expulsam, devia saber). Pisoteio a uva desta memória, teu rosto, mas: brita quente na folhagem; as ruas nascem, fumegam, o paralelepípedo dos corpos brota — sangro, minhas solas finas demais. Não adianta. Não vai passar: as horas, estas lâminas.

 

 

 

 

 

 

Agonia

 

 

Estou trêmula como um bicho que quer morrer e não consegue. Sobreviver é no grão da barbárie, e eu escolho a absurda paz. (Por favor, por favor). Que não vem. Sacrificiais então o meu corpo, os dias, as fatias espiraladas deste intervalo sem fim — tudo já me é morto. Não: tudo me está morrendo. "Perder" é o verbo desta tempestade onde um naufrágio invisível afunda enfeitada de espera inútil a minha carcaça secreta de cadáveres. Trago peixes nas mãos — debatem-se, eu aperto, sou o puro neutro da crueldade, experimento ser insensível enquanto eles gritam com a sinuosidade do corpo, clamando pela vida, pela morte, por qualquer coisa que não seja esta navalha incompleta de sofrer. A revelação é alta e me dói: solto os peixes e me desconheço nesta compreensão profunda. Eles saltam, desesperados, inocentes. Ser uma pessoa (ou seja: amar) é uma tortura lenta. (...inocentes...) Sou um saco de vísceras prestes a escorregarem — e são tão moles, tão frágeis, como uma coisa que não nasceu: estou grávida da minha própria fatalidade. Eles morrem. Inocentes. Eu me anulo num túmulo descosturado: brotam flores ao contrário na minha pele e eu sinto sede em cada raiz. A chuva não me lambe. Roem-me estas feridas. Os rios não me lambem. Viro um cerrado brocado de queimadas e de formigas em carne viva; um mangue seco onde caranguejos e sapos agonizam com os olhos estúpidos voltados para a falta de um deus; um deserto delirante de répteis e espinhos venenosos a cuspirem vidros coloridos de sal contra o sol – o oásis do teu corpo não me lambe. Nado na infinita desesperança. Estou irremediavelmente só (uivam os meus lobos). Só. Tombam meus braços. Meus joelhos. A minha cabeça pesada demais. Escapa-me a sagrada terra entre os dedos: tu — mas sou eu mesma indo ali. Dolorosamente, no entanto, (por quê? por quê?) fico. Eu, este chão empoeirado de outono, um tapete caquético de chagas. Com o fardo intolerável em cada poro: solidão, afinal. Fico. Retorcida, como a árvore nas minhas costas — de ausência (a feiúra intangível: precisar). Ressecando o couro escalavrado desta dor. Fico. Como um bicho que quer parir e não consegue. Vivo a máxima agonia do instante: e agora?, e agora?, e agora?, conjurando um rosto impossível — o teu, o da morte; são já o mesmo. Nenhum me lambe. Inclino a cabeça e olho os peixes, secos como eu. É uma libido esta angústia, sei por causa da mancha vermelha magoando onde eu nasço. Ou padeço. Amor é o frêmito da ruína. (Também eu não queria despejar desespero no teu copo). Convulsiono no limite da doçura (teus olhos, a lembrança deles): desagregar de vez nestas navalhas; enlouquecer (crescem guelras também na cortina dos pensamentos; respirar é tão difícil). Ainda não morro. Lavo o rosto na última tentativa de refrescar esta manhã que já nasce ancorada no coração escuro das coisas, mas a verdade me aterroriza: enxergo as pontas soltas da minha mão e, apavorada, imediatamente uno todas elas, em choque, na prece afunilada e repetitiva que pouso no teu queixo fingindo pergunta (não é, nunca foi; este pedido): Volta.

 

(A rubrica final dizia: e cai oca como um trapo cansado. Como um bicho que quer nascer e não consegue.)

 

 

 

 

 

 

Asas

 

 

fingi doçura porque era assim acalmar o pai daí ele me trouxe uma janela claro que era uma moldura vazada mas havia uma cidade eu não queria morar eu não queria mais morar que suado o chão onde eu escorrego acho que está chegando acho que está perto que bom ah havia uma cidade impossível logo era uma janela eu perguntei com alegria sincera pra mim ele disse coitado todo contente sim sim imitando aquele filme eu perguntei é de comer querendo ser uma menina numa história mas logo emendei é de me comer e fiquei bem séria ele riu ainda mas já sem dizer sim sim já sabendo onde as histórias vão dar já branco e me olhando com as velhas agulhas eu perdi o rosto e insisti com a voz masculina que eu sei ter é de me comer ele sério eu fiz de novo cada vez mais de pedra é de me comer ele quis chamar alguém e não fazer nada ao mesmo tempo pobrezinho gostava mesmo de mim que pena ele me olhava medindo tragédias que pena eu realmente já não ligava os meus poços salobros nos pulmões já não ligavam inertes inertes que pena eu disse marinha com o útero de homem é de me comerrr arrotando naufrágios e ele viu que a loucura era sem volta tremeu mais de amor que de medo salina a existência que pena era o cianótico balbucio a forca era há muito e agora eu dava finalmente os sete passos para organizar os ossos um para organizar a aura destroncada dois para clicar o derradeiro sentido três era já sem volta quatro que alívio cinco que exato alívio embora abaixo do meu ouvido ainda rumorejasse um amor ah sim uma pessoa ah sim seis papai querendo me segurar pelo braço eu já menina de novo o alívio tão exato eu já com laços e doces e hidrocores gastos mas ele não entendia e me segurava pelo braço era inútil que pena deve ter doído nele deve ter doído mais nele porque era burro e não entendia em mim doer era na pele que eu não conseguia arrancar atrás do pescoço doer era transitar doer era estar doer era saber doer era ser sete

 

ainda

 

por que ainda pa

pai me deixa ir

que se eu desligo a luz dói

 

tanto

 

sinto medo

desliga pra mim

 

desliga

 

pra

 

 

 

 

 

 

 

Silêncio

 

 

eis que viro uma dobra de mundo por dentro: brochura abraçada, cai-me uma praia sob: pura contemplação (horror incluso); não há portas: chegar é há muito, mas pisar

.

areia revela (revés-estopim): é milagre; choque de ossos-colibris, leque fatal onde um surto fenece brandura invisível — da sua mole indiscernibilidade a congênita dor aborta pólen de papel picado; o vapor de uivos anuncia — é o começo

.

dos destroços; prossegue o pequeno espetáculo: chove raio de sol na minha cara, queima, eu bebo, convulsões gargarejam inconclusas, ondulam palavras de luz sem sintaxe, são insetos de asa frágil; engolir é o primeiro erro (escalada para o nada,

.

quem quereria?): um horror me trafega, me crava bálsamos, me mutila pensar,

(sucumbo n

 

 

o vir-à-tona de um afogado!)

deve ser

.

a memória morrendo, sepulto junto todos os gritos; na claridade de calar, ouço fúria, enterneço: o mar convida e expulsa; implica doloroso enfrentamento ir até um coração; tiro as

.

chinelas, a planta dos pés afunda um pouco no vício tátil dos grãos, cai do galho, despertence, visto caixão para todas as guerras: desenformo de dentro pra fora, devenho paisagem, ruo espaços na antessala porosa do mar:

.

estampo vento, morro (enfim) pó colhida pela mão que me chama de volta com suas unhas brancas de espuma que enterram

.

futuros: des

.

apareço

 

 

[imagens ©irving penn]

 

 

 
 
 
 
 
Ana Maria Vasconcelos (Maceió/AL, 1988). Mestre em literatura portuguesa (UFRJ). Vive no Rio de Janeiro.