Tortura

 

 

A gota d'água caindo devagar,

A luz ligando e desligando

Ininterruptamente

O choque frio

A unha sendo retirada

A cabeça mergulhada

A dor, a sede, a fome,

O espelho

 

 

 

 

 

 

Sonho Estranho

 

 

Enquanto o helicóptero caía sobre o prédio

O chão ruía e desestabilizava

As estruturas das casas

Pedaços voavam na minha direção

 

O prefeito andava cabisbaixo pelas ruas,

Desolado,

Como uma estrela fria sem vida

Como um espantalho morno submerso

Numa singularidade

de uma galáxia distante

 

 

Enquanto o mundo acabava e a cidade desmoronava

O casal brigava

Meninos andavam de bicicleta

E os cachorros avançavam

 

 

E enquanto o casal brigava

Os meninos andavam

E os cachorros avançavam

Um avião pousava na água

E começava a nadar

 
 

 
 
 

Vazio e Abismo

 

 

A fúria dos vulcões

O vazio e o abismo

Não tem a mesma intensidade?

 

No choro das crianças

E na 9ª Sinfonia de Beethoven

Não há a mesma sonoridade?

 

E por que haveria de ser diferente

com todas as outras coisas da vida?

 

O grito e o gemido

O silêncio e o eremita

Não são uma coisa só?

 

A mãe e a criança

Os hospitais e os doentes;

O caos e a cidade

O homem e a vaidade

Não são uma coisa só?

 

E por que haveria de ser diferente

com o vazio e o abismo?

 

 

 

 

 

 

Exílio Forçado

 

 

Fiquei exilado por uma década

e ninguém sentiu a minha falta

Ninguém se lembrou de mim

(Por que haveriam de se lembrar

Se nem eu mesmo tive tempo para isso?)

 

Fiquei exilado por uma década

Na Sibéria — dez primaveras —

Nesse exílio forçado e consentido

 

Senti frio

E nem isso eu pude sentir.

 

Estava anestesiado da minha própria existência.

 

 

 

 

 

 

Frio e Vazio

 

 

Em pé no ônibus

escrevo estes versos

nesse calor infernal

que chega a me dar frio

frio e vazio

como a existência

 

 

 

 

 

 

AntropoTeofagia

 

 

E o Verbo se fez carne

E eu me fiz pão

E fomos repartidos

entre os pobres

 

 

 

 

 

 

Terra dos Hofburgs

 

 

Na Terra dos Hofburgs

Ou na Terra de Ninguém

Na requintada Ponte das Correntes, na Del Vechio

Ou naquela de tapume

 

Os mendigos estão espalhados nas calçadas

E há sempre um músico tocando

Uma sinfonia no violino ou uma mpb no violão

 

E, mesmo deposto e ainda que você não saiba,

Há sempre um rei

Sentado em seu palácio com seu jornal

Explorando criados, recitando versos sagrados

Promovendo guerras em nome de Deus

 

Na Terra dos Hofburgs

Ou na Terra de Ninguém

Na Budapeste de Bela IV

Ou no Brasil de D. Pedro

Há sempre um rei sentado em seu palácio

Saqueando a riqueza do povo

Usurpando o que não é seu.
 
 

 
 
 

Primeiros Versos

 

 

Da rodoviária estropiada

Escrevo esses versos

Como quem morreu

E não conseguiu voltar

 

Os primeiros versos são eternos

Porque a alma assim o quis

 

Revisar sob o pálio da perfeição

Seria como mutilá-los

Tornando-os impuros

 

Os primeiros versos são inofensivos

 

Como o primeiro amor

 

 

Por que o poeta haveria de saber mais que o espírito?

(De ser mais pretensioso?)

 

O poeta é o instrumento da alma

que tem a contumácia em não se calar.

 

 

 

 

 

 

Ritual

 

 

Você já foi a um ritual de iniciados?

 

Lá, dizem que é preciso morrer para nascermos de novo

 

E também não seria assim na vida cotidiana?

 

O sol nasce e se põe todos os dias

A noite calada surge e cai

 

O trânsito caótico e confuso,

A distância, o barulho,

A falta de infraestrutura e

de hospitais,

A fila nos bancos,

A falta de sinais,

 

O trajeto se repete como em um ritual

 

O mesmo roteiro, as mesmas caras

Novos atores, novos amores,

Na fila do trem,

No ponto de ônibus,

Na estação de metrô

Todos esperam a hora certa de embarcar

 

E os meninos continuam soltando pipas

e jogando bola nas ruas

 

E as árvores hão de dar frutos

E o verão há de chegar.

 

E tudo se repete como em um ritual.

 

 

 

 

 

 

Duomo

 

 

Perto da majestosa Duomo

Um mendigo se curva e se prostra

Com seu decrépito dorso

Maltratado pelo tempo

E seu casaco verde abotoado

um tanto quanto acinzentado

Em decorrência dos anos

 

Roga, com sua caneca estendida,

Para os transeuntes que por ali passam,

por doação

compaixão

ou por alguma outra esmola

seja ela qual for

 

Está virado de costas para a Basílica

e de frente para os homens

que ignoram a sua miséria

 

Não há misericórdia no espelho.

 

 

 

 

 

 

Descarga e Suspiro

 

 

Descarga e suspiro,

Alívio, desígnio, desejo,

Lampejo, centelha

Suor frio (arrepio)

 

 

Quanta excrescência não há na vida?

 

Do Areópago ao sambódromo

Das novelas aos leitos de hospitais

Dos mendigos usando crack nos sinais

 

Quanta excrescência não há?

 

E também quanto alívio e suspiro?

 

 

 

[imagens ©bjöern ewers]

 
 
 
 
André Ladeia nasceu no Rio de Janeiro, em 1983. Atualmente, mora no sul de Minas. Em 2014, publicou seu primeiro livro de poesia pela Editora Penalux, Suave é a Morte.