Primeiros Versos
Da rodoviária estropiada
Escrevo esses versos
Como quem morreu
E não conseguiu voltar
Os primeiros versos são eternos
Porque a alma assim o quis
Revisar sob o pálio da perfeição
Seria como mutilá-los
Tornando-os impuros
Os primeiros versos são inofensivos
Como o primeiro amor
Por que o poeta haveria de saber mais que o espírito?
(De ser mais pretensioso?)
O poeta é o instrumento da alma
que tem a contumácia em não se calar.
Ritual
Você já foi a um ritual de iniciados?
Lá, dizem que é preciso morrer para nascermos de novo
E também não seria assim na vida cotidiana?
O sol nasce e se põe todos os dias
A noite calada surge e cai
O trânsito caótico e confuso,
A distância, o barulho,
A falta de infraestrutura e
de hospitais,
A fila nos bancos,
A falta de sinais,
O trajeto se repete como em um ritual
O mesmo roteiro, as mesmas caras
Novos atores, novos amores,
Na fila do trem,
No ponto de ônibus,
Na estação de metrô
Todos esperam a hora certa de embarcar
E os meninos continuam soltando pipas
e jogando bola nas ruas
E as árvores hão de dar frutos
E o verão há de chegar.
E tudo se repete como em um ritual.
Duomo
Perto da majestosa Duomo
Um mendigo se curva e se prostra
Com seu decrépito dorso
Maltratado pelo tempo
E seu casaco verde abotoado
— um tanto quanto acinzentado —
Em decorrência dos anos
Roga, com sua caneca estendida,
Para os transeuntes que por ali passam,
por doação
compaixão
ou por alguma outra esmola
seja ela qual for
Está virado de costas para a Basílica
e de frente para os homens
que ignoram a sua miséria
Não há misericórdia no espelho.
Descarga e Suspiro
Descarga e suspiro,
Alívio, desígnio, desejo,
Lampejo, centelha
Suor frio (arrepio)
Quanta excrescência não há na vida?
Do Areópago ao sambódromo
Das novelas aos leitos de hospitais
Dos mendigos usando crack nos sinais
Quanta excrescência não há?
E também quanto alívio e suspiro?
[imagens ©bjöern
ewers]