NOTÍCIAS DO LIMBO

 

 

Não faz frio nem calor aqui, no limbo. O tempo anda indeciso há semanas. Abafado, denso, leitoso. Não dá para entender esse cinza. Ainda não descobri se é da própria cor do céu ou se é um cinza de nuvens, sabe? Talvez sejam nuvens. Talvez sejam tantas que acabem virando uma só. Nesse caso, não dá para saber se estão movendo-se. Talvez estejam. Mas o movimento é circular e contínuo (quase digo crônico). Totalmente uniforme, sabe? Tudo aqui é uniforme demais para mim.

Lugar mais café com leite, esse aqui. Por isso não posso dizer que mando notícias, sabe? Mando, quando muito, circulares. Daquelas de prédio, dizendo sempre as mesmas coisas, sabe? Falando nisso, preciso tirar uma foto da vista do meu prédio para te mandar. Daqui, vejo uns tantos prédios idênticos ao meu, em todos os detalhes. Um do ladinho do outro, em perspectiva. Olhando com muita atenção, a gente pode juntar os prédios numa linha única e quase pode ver uma estrada, sabe? Um caminho. Se afunilando, assim, as bordas se contraindo. Até quase se tocarem. Lá, no mais longe que a gente atinge. Onde não dá nem para imaginar sem ter vertigem, enjôo.

A propósito, estou grávida. Mentira. É a vontade de dizer algo chocante, sabe? Mas que nada. Aqui é sempre igual. Quando eu finalmente penso que estou vendo um caminho, tem aquela hora em que dá um clique, sabe? Uma tontura, um calafrio na nuca, um desespero… e a estrada some. Vem um sono agudo, repentino. Efêmero. Como um tiro, um tiro bem no meio da barriga, o estômago apertado, a falta dele. Nessas horas, só posso sair da frente da janela, dar meia volta e rastejar, ir me agarrar ao parapeito da outra. A outra é igual e fica de frente para esta. Lá fora, outros tantos prédios iguais.

Por isso olho para o céu. E você, por onde anda? Jamais saberei, não é? Se soubesse inclusive já teria fugido daqui, fugido ao seu encontro. Não sei se você se lembraria de mim, não sei como funciona aí, onde você está. Aqui, no limbo, a gente lembra de tudo. Digo, eu lembro. Não sei se os outros também lembram, nunca os vejo, nem ouço. Aliás, não sei se você entendeu bem, só vejo os prédios, mais nada, tanto por uma janela quanto pela outra. E as duas são iguais. Se espalmo a mão, assim, cobrindo a parte de baixo do campo de visão, consigo ver esse pedaço de cinza, essa nuvem, esse céu. Mas ele é tão sem resposta quanto os prédios, tão inexato quanto o lugar para onde te mandaram.

Aqui é sempre tudo cinza, tudo igual, sem contraste nenhum. A não ser pelo som. Lembra daquelas corridas de carro? Aquele som chato dos carros passando? Sim, eu também achava legal. O coração pulava quando o barulho do motor parecia chegar mais perto. Mas, depois de semanas, vira tédio, sabe? Por mais que você tente entender esse som, ele não deixa. Uma vez, tentei pegar o rabo desse som, correndo entre uma janela e outra. Tenho certeza de que dei uma canseira nas moças dos outros prédios, se tentaram me acompanhar com os olhos. Se é que desgrudaram o olhar lá do alto. Pena que nenhuma delas nunca fez uma coisa dessas para mim. Certa de que ajudaria a passar o tempo.

Tempo eu não tenho, sabe? Porque não sei o que vai acontecer e muito menos quando. Por isso nunca desperdiço tempo. Todo tempo que tenho, uso para esperar uma notícia sua. Não durmo nunca, até porque esse zumbido nos ouvidos me dá muita dor de cabeça. Meus olhos também doem, mas acho que só preciso de uns óculos, sabe?

Outra coisa, não sei se consigo te esquecer. Por mais que tenha sempre o mesmo a dizer, sempre lembro de coisas diferentes em relação a você e é isso que me impede de congelar, tenho certeza. Não, não faz frio e nem calor aqui. Congelar no tempo, no espaço, digo. Como aquelas moças que me olham da janela de cada prédio que vejo. Todas têm a minha cara e estão ficando cada vez mais cinza, sabe? Penso que estão congelando. De dentro para fora.

Preciso de foco. Acho que estamos ficando mal das vistas, eu e todas as moças iguais a mim. Vejo que elas apertam os olhos quando olham para cima. Franzem a testa também. O cinza incomoda mais do que um sol na cara ou um breu de noite sem lua. Eu lembro. Uma diária lá, no passado, podia ser de três tipos, lembro bem. Podia fazer sol, chuva ou noite. Não sei bem se esse meu conceito de nublado me remete ao passado. Acho que não. O passado, que eu lembre, era bom. Você esteve lá.

Agora é sempre igual. Tudo cinza, tudo igual. Fora os prédios todos, essa cidade toda, sem fim. Mas não sei se há caminho. Só sei que, se um dia pisar lá, tenho de voltar exatamente por onde entrei ou não volto mais. Desarmada e enxergando mal… ah, não sei. Medo de ficar por lá, andando pesado, os pés pesados, os olhos pesados, parados. Enterrada viva.

Viva? Nem eu, nem você, nem o nosso filho. Espero que aí, onde estiver, seja onde for, esteja melhor. Não digo melhor do que eu, porque não sei ainda se estou bem ou mal. Digo, melhor do que estávamos antes. Digo, em paz. Era o que você queria, não era? Conseguiu? Eu não sei de nada.

Passo fome e sede aqui. Um dia pedi um café, sabe? Não sei bem se pedi ou se lembrei. De qualquer forma, não veio. Sequer um bule pequeno. Ainda que enfraquecido com leite, aquela média. Nada. Dependendo da hora, também me serviria. Mas só servem chá por aqui. Morno. Não apetece. E nunca sei que horas são.

Nunca me trazem publicações recentes, você acredita? Nunca sei das novidades. Tento sempre descobrir se na casa de alguma das moças dos outros prédios tem porventura uma TV ligada no jornal. Mas não consigo enxergar tanto. Ainda mais que, além de você, me levaram os óculos. Acho que foi uma das moças, mas nunca a vejo com eles, deve usar só para ler as notícias, na hora do café.

Aqui não chega nada há semanas. Nem por sonho. Sabe que nunca sonho com o presente nem com o futuro? Só sonho com o passado. Principalmente com aquele dia, no hotel. Você de paletó cinza. Você também? Tinha mais alguém lá. Acho que era uma lembrança. Cinza também. E ela também, de paletó. O som ainda não era esse, dos carros em círculo. Lembro que tocou até uma música. Nós dois gostamos. Antes do fim da noite. Antes do café.

Essas são as notícias. É o que eu tinha a dizer. Acho que estou congelando aqui, nesse frio. No dia em que você aparecer numa daquelas janelas e de súbito abraçar a moça por trás, tocar com a barba o cabelo dela? Serei ainda eu? Seremos nós? Mesmo sob esse cinza todo? E se me distraio com a sua barba no meu cabelo e esqueço de olhar o céu, bem na hora em que abrir? A nuvem indo embora, fugindo, sumindo. Acho que posso ficar louca ou chorar, sei lá, ter um filho cinza.

 

 

 

 

VOU MOSTRAR AS HORTÊNSIAS

 

 

Para Aníbal Machado, meu conforto.

 

 

João, meu filho, esse menino, uma cambalhota! Agora! E de banda, fazendo o favor! Sem explicações. Sem parar para pensar. Sem parar. Fazendo este grande favor. As minhas cidades têm araucária, eucalipto, pinheiro, plátano… tudo muito alto e cheiroso. Eu vou soltar você lá no planalto para você ver de perto.  Imagina, João! Mas você precisa vir. E tem de ser rápido. Pense em todas essas árvores. Você pode subir em todas elas, viu? Nas que quiser, você pode escolher, João. Lá de cima é que você vai ver tudo, tudo, tudo. Você vai ver a serra toda, em zigue-zague — ei, João! — conhecia a palavra zigue-zague? O que achou? Guarde, guarde em sua pedra! Ou na caixa marchetada. Que é bela, não é? João, Joãozinho… agora me empreste alguma coisa, qualquer coisa de sua guarda, de sua lavra, de seu cultivo ou que você tenha roubado por amor à beleza. E me traga, venha entregar. Seu amigo resta aqui, feito alvo, nervoso de secura e tremores, e não há vivalma, João, ninguém acode o amigo, beligerância inconteste. É saudade, é contenda, é crachá… tudo aborrece e ainda temo a labirintite. Vamos subir aquela serra, meu filho, vamos de búfalo, vamos caçando bernunça, pegando o bicho de surpresa na descida. A lagartona bocaberta. Você não faz ideia da beleza daquele Rio do Rastro, a gente rumando na sequência da cobra comprida… e a água escorrendo boa, direto da pedra, medrando simples. Dá para beber. E até a pedra lá é verde, do cachoeiro, esmeralda de parede. Coisa mais linda, Joãozinho. Vê se salta logo, que eu quero muito chegar lá em cima, e eu quero que você suba numa árvore sem dificuldade e que faça aquelas suas coisas, esmagar uma folha na mão e ficar sentindo os aromas matagais. E você vai guardar o cheiro no bolso, seu tremendo ladrão. João, você não vale o ar que respira. Eu quero dizer que você não vale o ar que respira nessa Fortaleza e que não me importa se aí tem praia e nem se aí tem sol, lagosta, eu quero é uma cambalhota, João! Vem comigo até o fim da serra e você vai ver o litoral a olho nu. Eu não estou brincando. Lá, no fim de tudo. Depois do Rastro, depois de toda a planície. Você vai ver. Se tiver sol. E se não tiver, você vai ver um mar de nuvens e eu prometo fazer silêncio. Por você. O alto da serra é um jardim, meu querido. Prêmio de meia odisseia. Pelo nosso alcance do planalto serrano. Lá se chama Bom Jardim da Serra e é um lugar feito de pôr-do-sol. Lá é que a gente enxerga todo o dourado que vai gastar no resto do caminho. Pode rir, pode chorar, pode tudo. É lindo. Ô, João. Seu amigo sente avisos de que precisa lhe ver. Ô, João, meu Joãozinho. E sente que precisa sossegar um povo do meio-oeste, no que leve para lá o abraço de João. Sabe, há cães noturnos aqui, neste prédio, João. Só latem na hora neutra. Acho que são dois, um casal. Também estou cansado. Talvez não haja plátanos no planalto, mas no meio-oeste. Sim. E vou te mostrar as hortênsias. Uma cambalhota, João! De banda! Espero você na Lapa. E partimos.

 

 

 

 

TEORIA DO ENCOSTO [introduzindo]

 

 

A Teoria do Encosto está em formação. Ainda.

São as tarefas pendentes, presentemente, em número de dezessete. Todas em andamento. O que não chega a configurar boa notícia. Pelo o que se imagina, a maioria deve estar pateticamente atrasada. E há a suspeita de que algumas — as menos importantes — possam ter avançado demais.

Foram distribuídas, de maneira caótica e injusta (não se sabe quando ou porquê), as tarefas de criar, amontoar, sovar, escamar, temperar, dividir em postas, pintar à mão, lapidar, lustrar, jogar no chão, pisar em cima, recolher ao lixo, salvar como rascunho, visualizar, publicar, atualizar e distribuir de forma a não se parecer com uma corrente.

A responsabilidade sobre cada tarefa se encontra a cargo de uma quantidade incerta de cabeças de vento, sendo tal número inversamente proporcional à suposta complexidade do riscado.

Sabe-se que ninguém se esforça e ninguém se importa. Todas as reuniões foram adiadas ao infinito ou até o outono. Todas as propostas, ruins ou péssimas, descartadas.

Consta que os responsáveis ou responsabilizados (é tudo muito incerto) falam muita gíria, vivem perdendo a hora e jamais se envergonham de desviar do assunto, nem de deixar uma frase pela metade. Moram pelo mundo afora. Não se conhecem. E não se parecem ponto.

Tais cabeças dedicam às tarefas que lhes cabem diferentes níveis de esforço. Não são raras as que se declaram totalmente avessas ao assunto. E há também as que ainda nem sabem que estão envolvidas.

Tornar-se-á uma teoria, de fato, apenas no incerto quando em que todas (incluindo as que não sabem) consigam se despir de todo e todo método, se lavar de toda e toda anotação e adquirir formação específica em Amnésia Seletiva (caso não haja capacitação em Amnésia Seletiva nas cidades que as suportam, as cabeças devem, no mínimo, estar inscritas em curso básico de Tempo Espiralar).

E, a partir daí, volverem ao hoje, ao agora, ao já. Para que possamos, enfim, chegar a um texto final (sim, tomo parte).

Somos feitos de tempo, tempo em espiral. Não é de hoje que nascemos. E não nascemos ontem (foi só o dia em que nos encontramos). Somos mitos. Não temos idade fixa. Desconhecemos o dia de nossos anos. Não festejamos. Vivemos outonos infinitos, não somos bonitos e detestamos spam.

Não colocamos a expressão "teoria do encosto" no Google antes de começar os trabalhos (entre aspas) pois, na hipótese de descobrirmos o impronunciável, é certo que teríamos reações diversas, o que nos dispersaria os pensamentos de forma a não haver mais remédio.

Daí a teoria. To be continued.

 

 

[julho de 2010]

 

 

 

[imagens ©michèle atkinson]

 

 

 

 
 
Anita Dutra é escritora e jornalista. Natural de Florianópolis e formada em Comunicação pela UFSC, onde também estudou Letras. Teve um conto (em francês) premiado no concurso nacional La Francophonie Autour du Monde, promovido pela Embaixada da França. Foi repórter e roteirista de TV e cinema. Venceu dois editais da Cinemateca Catarinense na categoria roteiro. Aos 29 anos, mudou-se para o Rio de Janeiro e começou a atuar na regulação do mercado audiovisual. Em suas melhores horas, segue escrevendo contos, poesia e seu primeiro romance.