presente

 

 

ao meu avô

 

 

busco um cheiro que já não existe

sinto saudades de algo que nunca foi

pairo numa melancolia confusa

que farfalha sorrisos internos

imprevisíveis

 

de súbito, a vista da janela me desanuvia a mente

os pisca-piscas mal colocados

a televisão ligada na penumbra da sala

aconchego de porta aberta

me comovem

 

e o que me sobra é a presença do seu conforto

deslocada nesta cena

e nos meus olhos

 

 

 

 

 

 

despir-se

 

 

escrever é o ato público

mais íntimo

porque as letras tocam apenas

quando a pele se faz eu lírico

só o poeta nu

escuta as flores

 

 

 

 

 

 

entranhamento

 

 

uma pele bem tocada

é superfície de entranhas

 

 

 

 

 

 

língua vital

 

 

do que é que o corpo fala que idioma nenhum participa?

que nem o gesto mais sutil apreende?

só o toque no toque, de fato, transmite

os mistérios profundos que nos movem as entranhas

 

seria o sexo a única forma de comunicação real?

capaz de transpor fronteiras entre seres

e uni-los na verdadeira língua materna

sabedoria de gaia, pacha mama, ciclo vital

 

idioma que todos nascemos sabendo

e por não saber da própria sabedoria

acabamos, com esforço, esquecendo

 

chega um dia em que tal lembrança nos falta

e buscamos nas línguas e linguagens todas

a essência perdida que nunca carregam

 

 

 

 

 

 

segredo

 

 

na penumbra do quarto cheio de nós,

a janela aberta trazia o mundo a nos visitar

pedacinhos de realidade onírica

 

enquanto tocava a guitarra,

estavas a dedilhar-me a alma

sem saber

 

havia uma conexão misteriosa entre seus dedos nas cordas e os fios do meu tecido espiritual

 

pele em festa

emoções à flor da mente

e uma melodia transcorpórea

 

nem há toque e há tanto

toda orquestra do meu ser desliza entre seus dedos e alma palpitantes

 

— não quero saber que alma existe

se existe

 

real e irrealidade se misturam na dança de nossos corpos num mar de vento

ondas epidérmicas arejam os poros mais profundos

vulcões etéreos que transbordam o perfume dos sons de novidade

 

!está anunciado

fora das vistas da mente

esse segredo que nossos corpos queriam gritar

 

 

 

 

 

 

a garota do hímen ½ rompido

 

 

lá vai a garota do hímen meio rompido

abalado, mas resistente

resquício de honra confuso

 

— você é virgem?

— mais ou menos.

— ?

 

lá vai ela, vontade errante

metade, rompeu com um

a outra, perdeu com outro

o restinho, foi-se com um terceiro

 

— quem tirou sua virgindade?

— ninguém.

— então ainda é donzela?

— ?

 

lá vai a garota, agora sem hímen

foi-se a película, nasceu a pele

de corpos em corpos, conhece seu próprio

amarras alheias já não lhe seguram

 

— afinal, você perdeu a virgindade?

— não, ganhei a liberdade.

— e foi com quem?

— comigo.

 

lá vai ela, mundo afora

nem tente acompanhá-la

hímen rompido

integridade intacta

 

 

 

 

 

 

sexualidade

ou imensidão

 

 

no oceano da pele

nado em águas livres

 

 

 

 

 

 

poema escarrado

 

 

este poema saiu assim porque eu queria cuspir na sua cara

 

 

 

 

 

 

matéria

 

 

 

tempo é terra sobre mágoas
dias, semanas, meses materiais
obstáculos, distâncias
frestas, esbarrões de momentos
um janeiro num outubro
ano novo no carnaval
a terra treme, o céu oscila
tempo é espaço
e corre nas veias

 

 

 

 

 

 

"é descuidar, o amor te pega,

te come, te molha todo.

Mas água, o amor não é".

"Corridinho", Adélia Prado, em O Coração Disparado (1977)

 

este

 

 

 

este amor é leve

feito espinho fino

suavemente arrebata

o peso duma solidão

 

ainda não sei seu gosto

arrisco erva doce crua

hortelã gelada

ou morangos

 

cheiro de gelo

pele de blues

este amor tem som de azul

olhos de mar cristalino

 

quando descobri que o amor são muitos

o amor ficou maior

e possível

posso dizes este ou aquele

e ainda outro e tantos

mas o único amor que existe

é este que ama

presente

 

 

 

 

 

 

presságio

 

 

as nuvens são indicadores de mudança. quando o céu se forma bem alto e grande e o ar fica espesso da minha janela, é tempo do novo vento passar. na fresca da madrugada, o ar se areja e forma-se um vale desta colina até a parede de nuvens ao longe. são tão consistentes, parecem uma enorme encosta de montanha homogênea, sem rachaduras. destacam-se, porém, alguns cúmulos menores, mais fluidos, como árvores frente à chapada. são estas, pequeninas, as que se movem com a passagem da revolução.

 

elas vêm pra dizer que não há renovação sem delicadeza.

 

quem não é capaz de sentir as cócegas do vento,

não pode sonhar

 

 

 

 

 

 

13 de junho de 2013

 

 

o vinagre que não aspirei fez arder todo caminho do meu sangue

entre labaredas confusas, a fagulha da justiça que não vi detonou-me a bomba do peito

 

tua pimenta só me acende a certeza

de que o fogo prescinde de armas

 

acabou a calmaria

 

vou cuspir minha união na tua cara

te encurralar com minha liberdade

te machucar com meu amor

vou te humilhar com minha paz

 

 

[Poemas do livro entranhamento. São Paulo: Patuá, 2014] 

 

 

 

[imagens ©maria kreyn]

 

 

 
 
Bruna Escaleira nasceu em 27 de outubro de 1988 em São Paulo. Formou-se em Jornalismo pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, onde atuou no Centro Acadêmico Lupe Cotrim. Atualmente, cursa Pós-Graduação em Jornalismo Cultural na FAAP e trabalha como freelancer. Escreve desde que aprendeu a combinar as letras. Publica poemas e prosas no blogue algo a declarar desde 2007. Faz parte do coletivo artístico literário Circular de Poesia Livre, que discute feminismo, sexualidade e sexo. Colabora com o site do Instituto MundoMundano e participou de suas duas primeiras coletâneas: MundoMundano e os quatro cantos do mundo (2010), com a citação da crônica "go fast que o resto é trash!" e a crônica "Descascos"; e MundoMundano e o seu novo mundo (2011), com a crônica "escrevemos porque não somos gatos" e o poema "eco". Teve o poema "nuvens de escapamento" publicado no site da Originais Reprovados — a revista literária dos alunos da USP #6 (2010) e o poema "mais que garoa", na Originais Reprovados #7 (2011) impressa. Seu poema "irreal idade" foi selecionado para a coletânea do Concurso Nacional Novos Poetas, Prêmio Poetize 2014. entranhamento é sua primeira obra completa publicada e reúne criações de 2012 a 2013 — a capa também é de sua autoria. algo a declarar será seu segundo livro publicado, e reúne textos produzidos entre 2007 e 2012, mais ilustrações da própria autora. Para saber mais: www.brunaescaleira.com.br.