via Capital

 

 

tá vendo aqueles homens de cinza ali?

o de gravata é o chefe

severo

de pouco papo

em casa é um pai divertido

um marido amoroso

e um vizinho solidário

aos domingos toma whisky com os amigos

e come no McDonald's com os meninos

seu sonho é comprar um helicóptero

 

o de colete é um dos empregados

prestativo

cabisbaixo

mas de sorriso fácil

em casa é um pai despótico

um marido agressivo

e um vizinho mesquinho

aos domingos bebe cachaça com qualquer

e assiste televisão com as crianças e mulher

seu sonho é comprar uma moto

 

os dois passam de segunda a sábado pela avenida Capital

o primeiro de carro, o segundo de ônibus

os dois trabalham numa indústria que produz equipamentos de aviões de caça

que servirão para bombardear populações africanas, em caso de guerra,

mas isso são especulações — diz o primeiro,

o segundo diz não saber bem para que servem

 

 

 

 

 

 

ordem e progre$$o

 

 

ele deixou a caverna

num dia de chuva e pouca luz

recebeu o apoio

de toda a comunidade

uns lhe ofereceram cobertas

outras cobertura

ficou fora por anos

depois voltou impondo regras

sociais, políticas, econômicas,

estéticas e éticas

um sistema de iluminação

irrigação

condutos, viadutos,

canais, diques

uma rede hidráulica

uma rede elétrica

uma logística

que pusesse em comunicação

todas as cavernas

globalização

uma cadeia de supermercado

banco, imobiliária

especulação

moeda

símbolos, hino, bandeira

um governo centralizado

o povo ficou encabulado

perguntou-lhe o que era aquilo

ao que ele respondeu orgulhoso

que era a ordem e o progresso

a verdade, na verdade

o povo contestou desdenhoso

que era a sua ordem e o seu progresso

que tudo estava muito bom até seu regresso

ele argumentou que isso não era certo

que só havia uma ordem e um progresso

o resto era fantasma, miragem

ilusão passageira, besteira

o povo ficou dividido

uns convencidos

outros revoltados

ele propôs resolver isso de jeito civilizado

democrático

e depois de uma votação

as obras continuaram

mas houve muitas manifestações

greves, guerras, mortes

ordem

progresso

a operação foi um sucesso

 

 

 

 

 

 

do Horizonte Belo

 

 

devo lhe dizer que o horizonte

aqui não é mais tão belo

a Serra do Curral

foi comida

pela fome capitalista

e ainda que o curral

é Del Rei

um pedacinho

também era meu

e era lindo

ver o sol colorindo

as montanhas de amarelo

hoje sobra gris

e ser feliz

é um grande esforço

 

sempre foi assim

 

a menina de olhos amargos

vendendo doces

no semáforo

o velho cansado

na Praça Sete

quisesse ser ator de cinema

faz cena com a solidão

tantos monumentos esquecidos

tantos amores perdidos

 

sempre a mesma dor

sempre foi assim

 

as ruas com nomes de tribos de índios

que não têm mais sua terra

que perderam sua gente

e a gente comprando nos shoppings

ilusões em promoção

 

sempre foi assim

 

a boca cheia de desejo

come pastel chinês

toma caldo de cana

numa esquina qualquer

qualquer dia nos vemos por aí

agora as horas vão desabridas

e tenho promessas não cumpridas

a cidade cresceu sem raiz

tudo ficou por um triz

 

ser feliz é um grande esforço

sempre foi assim

 

 

 

 

 

 

cigarras

 

 

pra Bruna

 

a cidade estava lá

angulada pelas montanhas

o nome dos pássaros, das ruas

as esquinas mijadas por bêbados

a multidão desenhando o caos

a teimosia do céu colorindo as sombras de azul

o beijo

o corpo

o sonho

todos

prisioneiros do esquecimento

barganho um pastel chinês

por algumas moedas e cansaços

me espreguiço

bocejo palavras sem retórica

deixo o pensamento ser nuvens

enquanto palmilho a solidão

nada me parece familiar

somente os corações

que cantam até morrer

 

 

 

 

 

 

ecos de Minas

 

 

acendo um cigarro

engasgo com   a  fu m a ç a

s

s

no rosto o b a f o do m o r m aço

s

s

no a s f a l t o   da saudade

 

 

 

 

 

 

de Três Pontas

 

 

pra Maria

 

 

eu por minha parte, nunca entendi isso de tédio, de existencialismo, de náusea sartreana, sou mais bem provinciana, qualquer coisa me distrai, de pregos a pipas,

ainda que tudo me dói, tudo me dói, de castelos a palafitas

gosto do vagar lento dos rios e da monotonia das montanhas que me advinham tantas politonias. faço da falta fios com que teço outros textos, desde criança

quando saía com minha mãe, às 4 da matina, para colher café lá nos cafezais

de Três Pontas, olhava minhas companheiras e companheiros que olhavam para baixo, como quem debulha as mágoas do chão, e devinha flor e frutos,

vermes e vertigens,

formava mapas com suas mãos e cicatrizes,

nossos suores eram mares, sertão,

o tédio? uma gota, um grão seco, sem cabimento

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

poeminha sem Drummond

 

 

 

se no meio do caminho

havia pedras

eu nem dei por elas

dei com margaridinhas

branquinhas amarelas

fazendo cosquinhas no vento

brincando com a primavera

 

 

 

 

 

 

amarelo

 

 

pra Laura

 

 

olho para uma flor amarela

um sapo coaxa

e também olha pra ela

percebemos o mundo

de forma diversa

qual é a certa?

 

essa pergunta carece de sentido

não dispomos de um medidor de percepção correta

 

o que temos é isso

eu e o sapo

olhando a flor amarela

e ela

em elo

sorrindo

 

 

 

 

 

 

sobre C

 

 

... se alguma vez ela escrevesse o texto,

seria o da descoberta da impossibilidade de escrevê-lo

sabia que as palavras também têm seu ciclo 

e era preciso ficar longos períodos em silêncio  para fecundar um verso

aprendeu isso lendo os olhos da sua mãe, enquanto essa alinhava,

com as linhas das mãos, o vestido, que ela nunca pôde usar

 

 

 

[ ¿se sabrá alguna vez

lo que son las palabras?

 

voy a la deriva

y descubro en la estela

—  en lo perdido — 

la única posibilidad de alcanzarlas ]

 

 

 

 

 

 

dobraduras

 

 

... alças, asas, hélices, barbatanas, os fios e as fibras, a urdidura, o rizoma, antes:  inarticulação: reconciliar com os fluxos, com os vãos,

nos espaços côncavos dos torvelinhos dos seus pelos, emaranhar-me: fazer a curva

e me perder

ainda assim sentir o gosto elástico do verbo a dilatar o mundo, mas,

dizer não o necessário, senão o indizível

dizer não uma folha de papel em branco, mas suas infinitas dobraduras ...

 

 

 

 

 

 

sobre M

 

 

ela procura enfeitar o seu vocabulário com todas as palavras que denunciam os seus crimes [acusam-lhe de tantos!, o mais difundido é que ela teria comido, há não sei quantos anos, uma tal maçã misteriosa que garantia a permanência dos humanos no paraíso], assim,

escreve tudo com letras de mulher:

na escuridão, entre as montanhas e a distância,

emigra seu corpo para dentro da fome da noite

 

 

 

 

 

 

above us

 

 

     domingo é sobretudo

e nem movo meus excessos

         m o v o  os restos

     desta tarde úmida

vejo as palavras fincadas

nas metáforas do esquecimento

meus ossos adereços do tempo

 porque a vida é tanta

                            e tão pouca

           faço poemas

       às vezes com saliva

       outras com silêncio

  não digo a dor

que adorna as entrelinhas

nem as alegrias de ser menina

num dia de girassóis em escarcéu

      por amor eu solto os cabelos

               pelos       apelos

        o vermelho do verbo

                    e do sexo

       grafia grafada à navalha

 eu preciso de um fim de semana

 para fartar-me de seus adjetivos

         paradoxos

                   mel-fel-filling

         bile  Billie

                        Holiday

         domingo gloomy

         sobre nós

         sobre tudo

 

 

 

 

[imagem ©mrholle]

 

 

 

 

 

Carla Carbatti: sou ninguém, sou qualquer, carla, como tantas Carlas que há, filhas de Marias, do exílio, da fome e da diáspora; a primeira materna: de Três Pontas por todos os grotões de Minas até BH; a segunda, a minha, para este úmido Campus Stellae, em busca de estrelas perdidas no corpo do meu amado. amo, amo demasiado duas menininhas de olhos acastanhados, mais brilhantes que o sol. nos feriados solto pipas e escrevo com todos os átomos em todosatomos.blogspot.com.es. nos dias de feira faço um mapa losing steps das heterotopias de Clarice, pra isso que chamam de tese, mas eu chamo mesmo é de saltar no abismo com um verbo infinitivo nos lábios...