©manuela scarpa | photo rio news
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Quando ela começou a cantar, o teatro estava lotado. No palco, apenas um acompanhante. E um silêncio enorme na plateia, enquanto ela, com sua lendária simplicidade e grande magnetismo, tentava ler em português — com um sotaque muito engraçado — um breve resumo da letra de cada canção, antes de iniciar.

A saia estampada comprida deu lugar a uma simples calça jeans, camisa de brim e lenço no pescoço. Os cabelos, que nos anos setenta batiam na cintura, agora são curtos e grisalhos. Mas ainda conserva a silhueta esbelta, o jeito despojado e o sorriso aberto. Mudou pouco, eu a reconheceria entre mil pessoas, em qualquer lugar do mundo.

 Mal podia acreditar que assistia a um show de Joan Baez, ícone da minha juventude. Sim, continua a mesma, voz límpida, inconfundível, com um repertório que inclui músicas do folclore latino-americano, especialmente do Chile e do México, incluindo as brasileiras "Mulher rendeira" e "Pra não dizer que não falei de flores".

Gilberto Gil e Milton Nascimento estavam na plateia. Convidados pela musa, subiram ao palco e cantaram todos juntos. Até o Milton estava emocionado quando falou de sua admiração e reverência pela artista, que, salvo engano, este ano apresentou-se pela primeira vez no Brasil (durante a ditadura esteve aqui, mas foi proibida de cantar). Pena ter feito uma temporada tão curta, com shows em poucas cidades, deixando de fora Brasília e outros centros importantes.

Cuidadosamente escolhido, o programa foi uma síntese dos antigos sucessos que marcaram definitivamente a minha geração. Por alguns momentos, pensei que estivesse participando do histórico Festival de Woodstock, realizado há mais de quarenta anos. Foi difícil não chorar, quando ela cantou sucessos de Violeta Parra.

Eu, que nunca me dera a esses desfrutes, como se diz em Salvador, fui ao Rio especialmente para assistir ao espetáculo. Nem a decepção com o assento comprado pela internet — um camarote nada barato que se revelou longe demais do palco — foi capaz de embaçar o brilho daquela noite.

Reparei que a plateia tinha mais ou menos a minha idade. Jovens, só os que foram acompanhando os avós, pais, tios. Mas os aplausos foram tantos que Joan Baez voltou cinco vezes ao palco para cantar, já descalça depois de um espetáculo impecável. Saí do teatro meio hipnotizada, cônscia de que havia realizado um dos meus mais caros desejos.

Mas a alegria não parou por aí: no dia seguinte, fui almoçar com a escritora Rachel Jardim e Ernane Catroli. Não via Rachel desde os anos oitenta, quando a visitei no Rio. Foi a terceira vez que a vi pessoalmente, mas falamos por telefone em várias oportunidades, durante esse período. Para quem não conhece sua obra literária, eu posso afirmar que é uma das maiores escritoras desse país e que lê-la é indispensável. Releio periodicamente O penhoar chinês, romance maravilhoso cuja construção sofisticada sempre me oferece novas lições de como escrever bem. Desde Os anos quarenta, um de seus livros de contos mais conhecidos, sou sua fã. Tiete mesmo, dessas que procuram a "mãe literária" sempre que possível.

Às vezes me pergunto o porquê de Rachel, mineira de Juiz de Fora radicada no Rio, ter parado de publicar tão cedo. Nunca falamos sobre isso, tenho vergonha de perguntar, por considerar o assunto de foro íntimo. Mas acho uma pena as novas gerações não conhecerem sua produção literária, situada no mesmo patamar das criações de outras escritoras brasileiras habitantes do olimpo, como Nélida Piñon e Lygia Fagundes Telles. Não que quantidade seja um problema, o que realmente importa é a excelência da obra, diga-se de passagem. Mas Rachel Jardim é dessas raras autoras que deixam nos leitores um desejo de ler mais, saber mais.

Foi um desses encontros que a gente guarda para a vida toda, pois tudo deu certo, de maneira irretocável. Ernane Catroli, um dos melhores amigos de Rachel, a quem eu não conhecia pessoalmente, revelou-se uma surpresa incrível. Um cavalheiro, decerto, por sua boa educação, inteligência e sensibilidade. A comida era ótima, a conversa agradabilíssima, e Rachel, apesar dos anos, continua participativa, vivaz, com uma memória excelente e o impagável senso de humor que a caracteriza. E, como se não bastasse, ainda é uma mulher muito bonita.

Cheguei a ficar preocupada com a duração do almoço — três horas — por causa dos seus problemas de coluna. Mas ela aguentou firme, provavelmente em virtude das boas gargalhadas que demos. Apreciadora da boa comida, ela comentou, rindo, que eu olhava os pratos de cima pra baixo, com distanciamento, observação que achei intrigante, por ser absolutamente verdadeira (para que alguma comida me interesse mesmo, tem de ser algo simplesmente delicioso, quase divino, receita do anjo Gabriel em pessoa. Na maioria das vezes acho tudo ruim, com gosto de leque cheirando a sândalo, de bacia, de caldeirão, lata de querosene, que sei eu. Acho que herdei essa esquisitice de meu pai).

Terminado o almoço, fui ao Museu de Arte Moderna ver a exposição do escultor Ron Mueck. Enfrentei uma fila enorme — chovia muito e aparentemente todos tiveram a mesma ideia — mas consegui entrar antes do encerramento. Nada sabia sobre o artista australiano, mas tinha visto uma foto de uma obra dele que despertou o meu interesse.

Diante da primeira escultura, entendi por que é considerado um hiper-realista. O imenso casal de idosos em trajes de banho, debaixo de uma sombrinha de praia, chega a assustar os visitantes, de tão perfeito, de tão mais-que-perfeito. Dá pra ver até as unhas meio encravadas dos dedões dos pés da figura masculina recostada sobre as pernas da mulher. Isso sem falar das rugas, dos braços bambos de ambos, cuja força muscular se esvaiu, e do cansaço que aparentam.

As nove figuras de Mueck dão até medo, tão forte é a impressão que deixam. A galinha gigantesca, de cabeça para baixo, é de fazer perder o fôlego. Algumas crianças que estavam ao meu lado ficaram dando voltas em torno da escultura, perplexas diante da perfeição da ave.

Assisti ao documentário silencioso Natureza morta: Ron Mueck no trabalho, que mostra os métodos de trabalho do artista, sua preocupação com o perfeccionismo, sua meticulosidade com os detalhes. As peças são feitas inicialmente com pequenas dimensões, e só depois de um longo estudo se transformam em figuras imensas.

Ainda chovia forte quando deixei o MAM para voltar ao hotel, me sentindo ensolarada interiormente, repleta de tanta beleza, agradecida pelos três lindos presentes que recebi no Rio. Não é todo dia que temos a oportunidade de assistir ao show de uma deusa, almoçar com uma das melhores escritoras do país e ainda ver as obras do genial Ron Mueck.

Nunca acreditei na ideia de que o universo conspira a nosso favor. Mas, ao que parece, de vez em quando — ou talvez muito raramente — ele pode conspirar, sim.

 

 

agosto, 2014