Tribunal

 

 

O nosso papo ficou pelo meio do caminho

e eu me sinto bem com a corda

em volta do pescoço.

 

Se tivéssemos conversado mais um pouco

você saberia alguns dos meus segredos:

como durmo, por que parei de beber

café, os meus remédios dentro

da fruteira.

 

Comecei jogando pela janela

uma pena de passarinho,

depois um poema

amassado.

 

 

 

 

 

 

Pinturas

 

 

Os sinais do seu corpo

alguém de outro mundo

injetou-os em minha alma.

 

Sempre que sonho vejo uma ilha

na sua virilha e uma lágrima

na sua coxa.

 

 

 

 

 

 

Totalidade

 

 

Os poemas sou eu quem os escolhe.

Há muito tempo pensei que fossem eles

que me pegavam pelas mãos e eu ia com aquela cara

de desamparado que um gato de botas canalha sabe fazer.

 

Agora tenho consciência (e transe)

de que sou eu quem os escolhe.

 

Sobretudo aqueles                   

que adentram as minhas luvas

e me ferroam os dedos: ocultos,

sagrados, completos senhores de si.

 

 

 

 

 

 

Depósito de ossos

 

 

Há passarinhos que vêm à minha janela

e cantam com a garganta de cigarra —

 

é estranho ouvir

um passarinho

dessa espécie

 

de muitos cigarros,

uísques e fadiga.

 

 

 

 

 

 

Sótão

 

 

Ultimamente quero pessoas simples ao meu redor,

comida simples, uma noite simples, dois comprimidos

simples de engolir.

 

Lembranças simples

de uma mente que

já se ferrou.

 

 

 

 

 

 

Sacerdotisas

 

 

As mulheres fazem mágica

com os cabelos, os cílios,

os lábios —

 

e se escrevem poemas,

enlouquecem-me

de espantos.

 

Sigo-as cego

seus passos.

 

Também sei

dos seus trovões

e raios. Quedo-me.

 

 

 

 

 

 

Lázaro

 

 

Quando o poema vem

esquenta meus pés

e tinge de cadáver

meu olhar.

 

Pareço um morto

esperando milagre.

 

 

 

 

 

 

Epifania

 

 

Aguarde o dia da minha felicidade.

Não terá pra ninguém coração tão festivo.

 

As minhas botas (faz tempo que falei delas)

fugirão sozinhas do quarto e calçarão

os pássaros.

 

Ajeite-se na varanda

que passarei por aí.

 

Não jogue suas tranças.

Subirei pelos seus cílios.

 

 

 

 

 

 

Luminária

 

 

Eu não tenho certeza

se a terra comerá

os meus olhos.

 

(será possível que me darão um bolo

os passarinhos que contratei

pra hora do enterro?)

 

Alguns contratam carpideiras.

Assinei um cheque pros passarinhos.

 

 

 

 

 

 

Tragédia sob o som de um violino quebrado

 

 

As muriçocas traem descaradamente:

bebem meu sangue do pescoço

(apaixonadas) em seguida

chegam em casa

 

e dizem aos seus maridos

que estava um inferno

o salão de beleza.

 

 

 

 

 

 

Conjecturas de um gafanhoto

 

 

O maior susto

não é a morte.

 

Dela temos a ideia

(vaga e tristonha)

de quem se foi.

 

Creio que susto de verdade

é quando percebemos

que um inseto

 

na soleira da porta

supõe a nossa total

ignorância do além.

 

Os insetos pela brevidade

das estações conhecem

nosso frio da espinha

 

quando um querido

diz adeus e some.

 

Os insetos não dizem adeus quando somem.

Acostumaram-se a bater as antenas

e apontá-las pra janela.

 

 

 

 

 

 

Êxodo

 

 

O limite do poeta

é onde a poesia

abre a porta.

 

 

 

 

 

 

Saudades

 

 

Aquelas formigas miudinhas

depois que fazem a festa

na taça de sorvete

correm pras minhas costas

no lugar das suas mãos.

Não espremem as espinhas

com o perfume dos seus dedos

mas são delicadas, gentis, caridosas.

Chego a me sentir feliz

como um idiota.

 

 

 

 

 

 

Sombra

 

 

Existe alguém comigo

embora eu não o veja

eu o sinto —

muitos o chamam fantasma

eu apenas lhe chamo de amigo.

Há pouco

o guarda-chuva

estava no chão

agora olho

e o guarda-chuva

está sobre o sofá.

 

 

 

 

 

 

Os zumbis também cantam blues

 

 

Joguei fora ossos de borboleta

girassóis secos poemas de outrora.

Só não consigo tirar das mãos

o cheiro forte do seu signo de peixes.

 

 

 

 

 

 

Delicadeza

 

 

Amor é quando

não há comida

em casa

e se dividem

sonhos.

 

 

 

 

 

[imagem ©roger ballen] 

 

 

Domingos Barroso nasceu no Crato, Chapada do Araripe, no Estado do Ceará. Atualmente
reside em Fortaleza. Em 1993, foi vencedor do I Prêmio Ceará de Literatura (promovido pela Secretaria da Cultura e Desporto do Estado do Ceará). É do signo de escorpião, nascido em 29 de outubro de 1965. Quando jovem, publicou alguns livretos alternativos, artesanais. Escreve o blogue Lacaio da Poesia.