©krishnendu halder | reuters
 
 
 
 
 
 
 

 

O louco sentou-se à beira da calçada, arranjou duas pedrinhas e pôs-se a brincar com elas, atirando-as de encontro ao meio-fio, para recuperá-las em seguida. Logo um casal de pombos, atraído pelo barulho, veio rondá-lo com cautela. Não gostava da companhia deles, pareciam andar com os braços para trás, como a vigiá-lo. Rapidamente arremessou uma das pedras em direção aos dois, que bateram asas num voo curto, pousando não muito longe. Do novo ponto de observação, puseram novamente os braços às costas e outra vez passaram a investigar o que ele fazia. Resolvido a acabar com o enxerimento que o perturbava, o louco levantou-se e correu atrás dos pombos. Quando eles voaram, estendeu também os braços, movimentando-os com se fossem duas asas, desejando também levantar voo e continuar perseguindo-os por entre os edifícios, as árvores, os carros.

Foram pousar na varanda de um oitavo andar, onde uma dona de casa regava distraidamente um pequeno jardim. O marido lia o jornal na sala e flagrou o momento em que as aves se apoiaram silenciosamente na mureta da varanda. Percebendo que a mulher não havia notado a presença da dupla, bateu de leve no vidro que separava a sala da varanda, tentando alertá-la. Ela adorava os pássaros visitantes do jardim. Sem imaginar do que se tratava, ao ouvir as pancadas no vidro a mulher voltou-se bruscamente, provocando novo voo das aves, dessa vez para bem longe.

"Estavam bem atrás de você", disse ele. "Que pena", lamentou-se ela acrescentando que já havia surpreendido alguns pombos a admirá-la de perto, mas gostaria mesmo era de ver, bem de pertinho "... aquele passarinho de barriguinha amarela, sabe qual é?". Não, ele não sabia. Não era muito ligado nisso. O jornal e as notícias sempre foram mais importantes. O acontecimento de hoje fora apenas uma exceção. Se não houvesse feito uma pausa na leitura, naquele momento, certamente não teria sequer notado a chegada dos pombos.

Deixou o jornal de lado, em cima da mesa. Calçou os chinelos, ajeitou o roupão e foi em direção à cozinha. Pediu a Mara que lhe fizesse um café. "Pros dois?", Mara quis saber. "Deixa ver". Enquanto o patrão voltava à varanda para perguntar à jardineira amante dos pássaros se queria fazer-lhe companhia num cafezinho, Mara fechava a porta da cozinha. Jamais a deixava aberta. Gostava de sentir-se isolada em seu pequeno mundo de serviços. Trabalhava ali há tanto tempo, que considerava o lugar como a própria casa. Às vezes até imaginava que o filho estava ali, e que a qualquer momento poderia falar com ele.

Considerava-o um tanto problemático. Porém, nada que fosse incomum aos seus dezessete anos. Apreciava vestir-se à moda dos adolescentes americanos. Boné vistoso, bermudas muito largas, meias grossas e coloridas, tênis impecáveis, Marcelo trazia ainda os fones sempre aos ouvidos, transmitindo-lhe dia e noite o som do inseparável walkman. Mara costumava justificar os modos extravagantes do filho dizendo que ele apenas atravessava a "idade da aborrescência". Marcelo detestava o trocadilho. Como proteção contra as críticas maternas, aumentava ainda mais o volume dos fones e, se tinha algum dinheiro sobrando e nenhum compromisso na tarde, pegava um ônibus e metia-se nas ruas do centro, andando até cansar, quando geralmente parava num boteco e tomava um mate gelado. Se não tivesse, servia mesmo um guaraná.

Cogitava, sem que a mãe desconfiasse disso, em deixar a escola e arranjar um emprego. Sabia que ela não aprovaria esse plano. Mara, inclusive, gastava uma parte substancial do ordenado em tênis, fitas para o walkman e tudo o mais que o satisfizesse, justamente para que jamais pensasse em largar os estudos. Porém, tantas canções invadiam seu cérebro, aos berros, cantando Nova Iorque, Nova Iorque!, que lhe era impossível não pensar em voar.

Foi só falar em voo e os pombos entraram em ação, acercando-se novamente do louco. No oitavo andar, a porta da cozinha se abre: "Mara, é café pros dois!". No asfalto, os pombos caminham ainda mais desconfiados. O louco passou a imitar-lhes os arrolhos. Súbito, tentam estabelecer uma conversação que possa ser entendida além dos limites das linguagens. Dando asas à imaginação, homens, pombos e sonhos tagarelam pelo espaço, enquanto a tarde voa em busca da noite, num canto de vida qualquer, num pedaço de rua qualquer, em uma cidade grande qualquer. [Escrito em 2000]

 

 

 

março, 2014