Por muito que
...como se correr perigo não fosse talvez a minha mais profunda razão de vida
Ruy Belo
Como se correr perigo não fosse talvez
a minha mais profunda incapacidade
(por muito que os significantes possam significar)
escrevo melhor nos sítios onde o papel se desfaz
durante o mergulho
no banho
à chuva
num dilúvio, sei, teria escrito apenas
isto
[Da revista Correntes d'Escritas, 2014]
As coisas semelhantes
Um dia tiveste a minha idade e tantas ou mais coisas
partidas do que eu. Um coração, o fecho de um colar de pérolas,
aqueles olhos vazios como o aquário verde no topo da estante,
demasiadas palavras armadas em metáforas. Coisas semelhantes
que mais tarde alguém tentou reparar. Tempo, amor e morte — sobretudo
os seus lugares vazios.
E uma pele capaz de os alojar.
As coisas partidas
E no entanto não existiam coisas partidas
nem se avistavam cacos.
Quando ela te chamava e dizia o teu nome
ouvia-lo subitamente desprendido.
E tudo se ordenava.
Nos copos havia whisky para as visitas,
mazagran para as crianças, caídas aos tombos
em cima dos sofás, ignorando futuros, esquemas, mapas
e caminhos. Algumas nem sabiam o teu nome.
Pouco importava.
Nas casas onde as coisas em vez de ignoradas
são coladas perduram fiéis os retratos nas molduras.
Não fantasmas, visitas. A elas, servem-se bebidas
em copos remendados.
O tom do whisky, antídoto da memória,
disfarça os riscos de cola, as tentativas de regressar.
As coisas insignificantes
O meu dedo já serviu para muitas coisas
insignificantes, já tocou alguns segredos, demasiados
medos. Breves papéis feitos com a prata do maço de tabaco,
outros interpretados no meio da praceta, em cima do repuxo,
centro da nossa arena. O meu dedo insistente tenta
imitar-te: recorda. Alguns amores terríveis guardam dentro
(como reféns)
bandos de pássaros recém-nascidos — insectos,
se puseres os óculos e os vires ao perto.
Com o meu dedo, ajustava-te as hastes,
aproximava-tas dos olhos, com medo de que um dia
visses demasiado próximos os dedos
amarelos: cor de vela sem pavio,
muito menos chama.
As coisas lavadas
Entre os pássaros, havia sempre roupa lavada. Lençóis
em que se fodia menos do que o desejável.
Naquele dia ias na rua com a camisa por passar, apesar
de te cobrirem o corpo tantas coisas lavadas quanto uma origem:
pele pêlos dentes cabelos, mas sobretudo
desejo e vontade
apenas de desejo. Lavado como frutos por comer,
o teu desejo: um nome completo, um nome
próprio seguido de apelidos. Mãe, pai, filhos a quem o deixar.
Mais tarde soube. Quando passava no meio dos lençóis,
o cheiro a lavado cobria outro
indecifrável, lento. Não era exactamente pecado. Ou apenas isso.
Muito menos sangue ou drama. Era
o medo concreto e exacto de um nome
bordado, branco absolutamente branco.
Assustador
como papel químico encostado ao tempo.
As coisas queimadas
Fumava-se muito na casa.
As crianças puxavam do cigarro
enquanto procuravam o teu nome debaixo
da estante debaixo dos escombros.
Na alcatifa, demasiados buracos: antigas cabeças
ardendo lentamente de significado. Porém:
o fogo da casa ardia do lado de dentro interior à casa.
Eram centenas de palavras-fósforos raspadas contra as lombadas
dos livros, palavras queimadas pela inclinação do sol.
Capas por dentro de capas por dentro da casa; por dentro
dos livros, palavras misturadas com as coisas queimadas sobreviviam-te,
sobreviviam às chamas: peixes-palavras
por dentro do aquário verde, no topo da estante.
As coisas mais difíceis
Mascava pastilha elástica
até me doer o maxilar. O desejo: impressionar
o vizinho de baixo. Também ele tinha um aquário.
Era azul e nunca mo mostrou. Eu mascava com fúria
a pastilha elástica — e corria:
o pulmão aberto (um deles, explicaste-me tu),
a barriga a inchar com o vento.
Hoje, seria cancro. Naquele lugar gigante, era apenas
demasiada energia ou outra coisa mais difícil chamada
infância.
As coisas mais difíceis começaram por ser do corpo.
Pouco se pensava no tempo. Nenhuma consciência dele, menos ainda
do modo de contá-lo. Não pela falta de relógio
(o encarnado mostrava os números por debaixo de um arco-íris de cinco cores).
Era a falta de: as palavras. Pareciam-se com
o teu nome. O jogo — a guerra de procurá-las,
quanto mais dizê-las, fazia-nos de tempo (na pele, nos ossos).
Invencíveis, as coisas mais difíceis. Sobretudo
nos dias de sol:
com o som audível dos peixes no aquário verde,
a estante prestes a cair.
Dentro da casa, instalava-se a tempestade.
As coisas frágeis
Pegava-te no nome como no aquário
verde, quando era ainda cidade de peixes —
bichos de alimento diário e morte mensal,
silenciosa, sem desgosto ou pânico,
indiferente à vida. (As nossas, as deles.)
Hoje caminho, como todas as manhãs, com a tua existência
nas mãos (na cabeça, nos pés), seguro-a como coisa frágil,
quebradiça — coisa morta do dia em que morreste.
Recordo apenas o pássaro. Tinha no nome ruivo
e no bico o som atenuado de uma canção.
As coisas em imagens
Cortam-me o cabelo à tigela.
Sentam-me no banco do jardim
sem flores, só cabos que ligam máquinas
como órgãos: o coração aos pulmões, o estômago ao útero.
Devia ter escrito: «Entre as coisas em palavras e as coisas
em imagens há uma distância longa como um túnel em forma de cone.
No vértice, eu, despida do teu nome — coisas, palavras, imagens.»
O vento incomoda as árvores
enquanto procuro o caminho de casa.
[Do livro As Coisas. Lisboa: Editora Abysmo, 2012]
A habitação de Jonas
Sei que esta grande tempestade
por causa de mim vem sobre as paredes
da casa, afastados já os móveis.
As paredes, ao se afastarem os móveis,
erguem-se, despidas, coradas até à raiz dos rodapés,
como paredes sem móveis: demasiado brancas,
branco casca de ovo, branco gelo, branco mate,
consoante a cor com que as paredes se pintaram
antes de se lhes colarem os móveis.
Foram três dias e três noites nas entranhas
das paredes na esperança de expiar a culpa,
o pecado: branco sujo até se afastarem os móveis.
Dentro da cabeça das paredes, sobretudo
da cabeça do coração, até se afastarem os móveis,
cobria-se de cal essa certa esperança
de esconder defeitos. Ao se afastarem os móveis,
as paredes deixaram cair pregos, abriram rachas,
mostraram, pudicas, as manchas. Espreitava-se
e via-se-lhes a olho nu o espaço íntimo,
o sangue inocente posto sobre nós
no que parecia ser a boca dentada de um peixe.
Paredes, estais hoje mais velhas do que nós.
O branco, demasiado aberto, não vos assenta bem.
Tentamos vestir-vos de quadros e desenhos;
já nada vos serve: o homem das obras ordenou
a demolição. Porque Tu, Senhor, fizeste como te agradou:
três dias e três noites em oração contra Ti.
A grande tempestade por causa de mim
expôs como ferida em carne viva o esqueleto
da casa. Ossos feitos de material de construção.
*
Senhor, liberta-me de mim mesmo
para que eu possa esconder-me dentro
delas. Dentro dela há pouco espaço,
ela só me tem amor. Compra-me cigarros, cozinha-me refeições, expõe-me
como refugiado aos efeitos benéficos do álcool - e aguarda.
Aguarda que lhe devolva amor.
Por isso, Senhor, peço: liberta-me
de mim mesmo para que eu possa esconder-me
dentro delas, das paredes.
Dois metros e vinte por outros tantos ou mais é espaço suficiente
para que possa esconder-me e servir-Te como mereces:
erguer-Te uma capela, pintar-Te um fresco, ser genial para Ti, Senhor,
liberto de mim mesmo
por dentro das paredes
do útero dela.
[Do livro A habitação de Jonas. Lisboa: Editora Abysmo, 2013]
Marcha fúnebre
É difícil, sim,
conhecer a luz e falhar a sombra.
Tão difícil como beber apenas
uma cerveja e falhar a palavra
apenas
por não gostar de tremoços.
É difícil não termos sido amigas
na adolescência, mas eu nunca tive amigos
adolescentes,
mesmo os que diziam que eram
mentiam: tinham centenas de anos.
É difícil nunca ter ido em grupos,
nunca ter ido às putas, ter ficado
sempre aqui,
aqui assim,
de coração encostado ao verso,
de língua debaixo da linha.
É difícil, sim,
cair no abismo e descobri-lo afinal
sítio confortável. Como é difícil
ler Celan e Pina,
Herberto e Belo,
Szymborska e Clarice,
e acreditar que a fé
se torna intermitente
sempre aqui,
aqui assim,
entre a saliva e os dentes.
É difícil, por isso,
pisar a madeira,
e esperar que a tábua ranja no sítio certo
da memória.
Tão difícil como o próximo copo ser a única esperança.
Menos difícil porém
do que ter sido mãe
órfã de pai, avós e gatos,
órfã rodeada de órfãos
por todos os lados. Água
rodeada de mar por todos os lados.
É difícil cumular factos:
ter sido eu
a ensinar-te a ler aos 50 anos,
ter sido eu
a falhar-te a leitura da morte aos 90 anos,
ter sido eu
a sobreviver-te, sobrevivente aos 30 anos.
Ter sido eu:
tão difícil quanto ser árvore
quando o tempo não está para colheitas.
Tão difícil quanto ter
medo de cães,
alergia a gatos,
e restar:
uma andorinha para caçar.
É difícil, enfim, sonhar
que a cerveja se bebeu
na companhia do poeta.
Como é difícil acreditar que o poeta perdeu
na carruagem os poemas. E os poemas
sempre aqui,
aqui assim,
rentes ao chão. Apenas.
Gostaria — muito, tanto — de.
Gostaria assim — com gestos largos —
assim tanto de: acreditar que
tudo isto tem banda sonora.
Porém:
para fazer uma canção,
tudo isto trespassado pelo som não chega.
Não chega, não.
É difícil, sim.
[Da Antologia Mixtape. Coimbra: Editora do lado esquerdo, 2013]