"A notícia fala dos homens

e do que os homens  fazem

com as coisas

e com os homens

 

é o livro do fazer

que também se desfaz"

[Ana Peluso]

 

 

Entre as espessas camadas de um cotidiano, cujo sentido se desbota e se transmuta em desconexões e opacidades, o olhar poético de Ana Peluso resiste e se mantém alerta. Nas páginas de seu recém-lançado livro, 70 Poemas1, Ana perscruta o vértice de diferentes instâncias da existência e lhes alcança o avesso. Atenta ao chamado de "um novo mar", penetra as dobras e sutilezas de todas as horas, assimila a sucessão de rasuras e descontinuidades do caminho e, por meio de frestas bem abertas, vai tecendo faíscas e labaredas e refazendo, a capella, o panorama de colisões, instabilidades, promessas e errâncias que compõem o panorama híbrido de nosso tempo. Sua voz é límpida e rege-se por audácias e destemores. Desprendida de orquestrações e coros, ornamentos e adereços inúteis, essa voz poética percorre o livro e segue a própria singularidade, mergulhando num itinerário de aberturas para a nudez vital das águas. Tudo é cru e exato. Nenhum acessório se faz necessário. A iluminação oscila entre a verdade e o silêncio, duas faces de um mesmo ideário, enquanto a poeta, com seu rigor, se mantém à espreita, comungando a certeza de hiatos que se realimentam e, prenhes, fertilizam seu verbo.

Despida de capas protetoras e alinhaves ilusórios, a poesia de Ana Peluso caminha "a céu aberto", sem filtros, rompendo os fios da automatização que entorpece, liberando, entre instantâneos imagéticos e densos paradoxos, a tessitura de sua  lucidez:

 

 

"...

esse desalinho espremido

gemido quase mudo, mas em fúria

toda essa rachadura do limite

a dinamite que explode

 

tudo isso eu tenho

montado no quarto de Hélio Oiticica

onde eu durmo". (p. 31)

 

 

A poeta se propõe a "narrar os pequenos acontecimentos do dia", como uma lâmpada que se queimou, e, nesse intervalo de escuros, ainda que breve, revela-se o torpor dos homens enredados em rotas estreitas, aprisionados em fronteiras e sempre repletos de pobres e pequenos fatos, muito bem retratados na imagem

 

 

                          homens como novelos

                          de uma lã tão tosca

 

 

Como lembra o poeta e ensaísta Carlos Ávila2, a poesia constitui, em nosso tempo, "o que poderíamos chamar de olho crítico" da sociedade consumista e recheada de insensibilidades e automatismos. Prossegue: "Pelas frestas o poeta inocula seu concentrado pensamento crítico. [...] ... a poesia descobre-se um menos que pode ser mais. O poeta torna-se uma espécie de oráculo moderno, cuja visão pode (e deve) orientar no sentido de uma compreensão do momento que atravessamos. O poema torna-se assim uma força paralela, um veículo de metalinguagem com um raio de ação localizado e preciso, trazendo em si um comentário crítico pela forma de sua existência incômoda, corrosiva em relação às expectativas de consumo da chamada indústria cultural".

Em sua busca de alternativas ao tempo insosso da previsibilidade, à mesquinhez e à vilania que presidem a atmosfera da contemporaneidade (tão predatória quanto avassaladora), a poeta evoca um outro frio, um outro tempo, um outro mar. Nas ruínas por onde trafega, ao se deparar com patologias e asperezas, incômodos e paradoxos se redesenham e se multiplicam aleatoriamente, em desmedida fúria. Entre espasmos, íntegra e alerta, a bússola poética de Ana Peluso, plena de recursos estéticos, segue a memória do gelo, ouve os gritos na noite de lua cheia e, no plenilúnio que concebe, instaura seu próprio grito, quase táctil: "montei estruturas sem luxo / anéis de saturno / circulares / paralelos / em eterno movimento / olhei-as buscando a palavra / o sentido exato / risquei a pele / na ânsia por respostas" (p. 22)

O rigor atravessa as camadas de fisicalidade da palavra. O fazer poético é um constante risco e se expressa na pele, na incessante procura do sentido exato. Quanto mais se arrisca a palavra e mais estranhamento produz, maior o teor de poeticidade.

Navegante desses riscos, Ana Peluso encontra "a nau sem leme neste mundo todo aberto e sem paredes". Como uma antena sensível, a concisão arguta de sua fala vai colhendo fragmentos com os quais erige sólidos blocos de resistência. Na solidão dos pescadores, estende um anzol de reinvenções e elege seus temas. Sabe a urgência. Sabe a força. E ergue as mãos, no alicerce das pausas, para nos trazer "uma âncora do tamanho do mergulho".

 

 

 

Referências

 

1PELUSO, Ana. 70 Poemas (São Paulo: Patuá, 2014).

2ÁVILA, Carlos. "Poesia e Sociedade de Consumo", in A Palavra Poética na América Latina. Coordenação de Horácio Costa. São Paulo: Fundação Memorial da América Latina / Secretaria Municipal de Cultura, 1992.

 

 

> Para ler alguns poemas do livro 70 Poemas clique aqui.

 

 
 
 

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O livro: Ana Peluso. 70 poemas.

São Paulo: Patuá, 2014, 96 págs.

Para comprar, clique aqui.

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agosto, 2014
 

 

 

Beatriz H. Ramos Amaral. Escritora, poeta e ensaísta, autora de A Transmutação Metalinguística na Poética de Edgard Braga (Ateliê Editorial, 2013), Luas de Júpiter (Anome Livros, 2007), Alquimia dos Círculos (Escrituras, 2003), Planagem (Massao Ohno, 1998), Poema sine praevia lege (1993, finalista do Prêmio Jabuti). Mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC/SP, é formada em Direito (USP, 1983) e em Música (FASM, 1985). Coordenou projetos de arte e literatura entre 1994 e 1997, na Secretaria Municipal de Cultura. Recebeu em  2006 o Premio Internazionale Francesco di Michele de Poesia (Caserta, Itália). Foi Secretária-geral da UBE/SP e diretora da entidade entre 1996/2005). Participa de diversas antologias no Brasil e no exterior. Gravou com o músico Alberto Marsicano o CD Ressonâncias (poesia), lançado em 2010. Site: http://www.beatrizhramaral.com.br.
 
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