"Eu não escrevo para ninguém, eu escrevo para outro de mim mesmo; poesia não é para entender, mas para sentir a energia.

 

A poesia mergulha na escuridão do mundo, é uma substância oculta do mundo".

 

[Luís Serguilha, em entrevista a Antonio Abujamra]

 

 

A pompa que se exibe no título deste ensaio, cujos adjetivos e verbos apontam para marcas facilmente comprováveis da escritura de Serguilha, mascara, por outro lado, a impotência da crítica, de qualquer crítica e de qualquer leitor, creio eu, diante do impasse representado pela prática poética de um dos mais instigantes poetas da atual poesia portuguesa.

Nesse seu novo livro Kalahari, outra de suas ousadias verbais, Serguilha assume mais uma vez, e ainda desta vez de forma destemida e estranhamente teimosa e reiterativa, o impasse primordial que preside à gestação e parto de toda linguagem humana: o da impotência definitiva da palavra, ou de qualquer outro signo, diante da irrepresentatividade irreversível do real. Mais uma vez, lembrando Lacan, o real é o impossível, pois nunca se deixa prender nas malhas do simbólico. Talvez — não o sabemos, mas alimentamos alguma desconfiança —, seja esse real cegante o paraíso perdido ou o Absoluto, enfim o Grande Outro, cuja presença ausente persiste em espicaçar nossa indisfarçável inessencialidade diante da inquietante indiferença do cosmos face ao humano. A impotência a que me refiro tem, a meu ver, grandiosas proporções, porque me recuso a aceitar, e nisto sou acompanhado pelos testemunhos da arte, da filosofia, da ciência e da religião, testemunhos enfim das grandes conquistas e realizações humanas, que o homem se reduza a um bicho-da-terra, frágil e diminuto. Há, na nossa pequenez, uma incontestável grandiosidade. E o poeta, neste caso, como sempre o faz, dedica-se a esculpir, movido por titânica persistência, máscaras linguageiras destinadas a esconder/revelar essa inevitável e incurável impotência do verbo. E na armadilha sedutora de sua poesia, os únicos que se deixam enredar são o leitor e o crítico, entendendo-se, sobretudo este último, como um leitor um pouco mais bem armado que o leitor comum, especialmente vocacionado para uma participação mais efetiva na grande encenação.

Isto porque, desde os primórdios, a poesia foi concebida pelo homem como um texto ritualístico empenhado em pôr em cena o drama cósmico de sua orfandade, uma vez que abandonado, sem possibilidade de comunicação, por um Deus que talvez exista, porque o atrai e o chama na melodia envolvente da música das esferas.

A poesia é exata e precisamente esse grande teatro, em que, através da voz e do corpo do verbo, o homem busca replicar mimeticamente a essa convocação oracular.

Filha desse dramático impasse, dessa trágica impotência, a poesia sempre se valeu da artimanha e do engodo do signo para dar voz ao silêncio ruidoso e desafiador do cosmos.

Não há saída, o repto inaugural se impôs desde as origens: ou enfrentamos o desafio, ou nos condenamos à mudez insignificante e indiferenciadora; ou nos fazemos humanos, ou abdicamos em definitivo da descoberta e afirmação de nossa humanidade, de nosso destino maior. Torturada e torturante, ainda que inebriada nas circunvoluções de sua práxis escritural, insaciável no seu impulso crescente em direção sempre ao mais além  do signo e da linguagem, a poesia de Serguilha traça e retraça, com persistência inquietante, o traçado labiríntico da busca sem fim da palavra primeira, única talvez capaz de nos instalar no paraíso de que fomos expulsos. Poesia nostálgica, sem Deus, sem pátria, sem língua, que se alimenta onivoramente do encontro babélico de todos os discursos, do diálogo silencioso de todos os sons e sentidos, essa prática poética delirante converte-se, na sua contínua expansão sem começo nem fim, em grito parado no ar, em magma verbal vulcânico, petrificado nos grafos da escritura, grafos que desenham e redesenham ad infinitum o traçado louco de uma viagem sem rumos nem horizontes.

Diante dela, o crítico sente-se à vontade para invocar conceitos velhos ou novos, que cabem como luva no seu frenesi borbulhante, conceitos costumeiramente frequentados por estudiosos e apaixonados por poesia. A respeito da poética de Serguilha pode-se convocar diferentes rotulações conceituais: a poesia como poiein, ou fazer e ação; a poesia como mimesis ou imitação criadora, no caso, do ruído sem fim dos discursos; a função poética da linguagem e a materialização da mensagem, aqui dedicada a coreografar o traçado dispersivo de uma dança circular e sem saída; a transgressão das transgressões da linguagem que, segundo Barthes, preside à festa linguageira e matética da literatura enquanto práxis escritural; o conceito de desconstrução, costumeiramente invocado para marcar o movimento de fragmentação dos processos criativos da arte contemporânea; o olhar fraturado e fractal com que as escrituras de hoje filtram o real, na tentativa de amenizar sua impotência representativa; a noção de processo, em substituição à de expressão, como índice identificador de certas manifestações poéticas e também artísticas da atualidade; o conceito de articulação rizomática proposto por Deleuze com a finalidade de pôr a nu o movimento inconsútil que estaria na base da práxis poética e/ou artística do mundo contemporâneo; o movimento holográfico das estéticas de vanguarda, empenhada em traduzir o real por meio de lentes pluridimensionais, etc. Todo esse panóptico conceitual demarca e delimita com evidente pertinência o arabescado neobarroco do experimentalismo poético de Serguilha.

Mas o importante é não esquecer que essa nova poesia abomina todo e qualquer tipo de crítica, judicativa e/ou descritiva, histórica, sociológica ou linguístico-estilístico-formalista, exatamente porque se inscreve no âmbito de uma anti-estética, que aspira à desleitura, à descomunicação, à recusa de toda e qualquer representação, ao reencontro final do verbo humano com o verbo inaugural, deflagrador talvez do big-bang inseminador.

Poesia verborrágica, poesia da palavra excessiva e transbordante, do verbo em catadupas, ela não clama nem impõe qualquer tipo de leitor ou público, mas apenas aguarda, na sua fúria redemoinhante, um companheiro de viagem disposto a mergulhar numa aventura caleidoscópica.

Se ficarmos, porém, amordaçados aos adjetivos (excessivo, neobarroco, verborrágico, transbordante, vulcânico, redemoinhante, processual, rizomático, holográfico, desconstrutivo, fractal etc) ou fascinados por tudo que nela é anti, em relação a um centro de referência consagrado pela tradição (estética, poética, lírica, monológica, dialógica, romântica, idealista, política, histórica, social etc.), permaneceremos sempre muito aquém, a meu ver, do que o poeta, no caso, pretende nos propor: uma espécie de catarse, via verbo, de todos os complexos, de toda a nossa boa ou má consciência de críticos superciliosos, de todos os nossos ismos, bem como de todos os nossos medos, escrúpulos, interrogações, limites, leis, princípios, valores, dogmas, certezas e incertezas com relação à poesia e também à arte, à vida e ao homem.

Afinal, o que pretende Serguilha com estes seus experimentos poéticos? Pomposamente, diríamos: a inseminação teimosa e persistente, pela via do grito silenciador e da verborragia impertinente e insignificante, da demanda incontida do impossível que define o humano. Ou, sem pompa nenhuma: a instauração, pela palavra, de uma prática libertadora.

E o resto? O resto é silêncio... A verdadeira poesia a pairar no ar, perto e longe, mas para sempre perdida.

Silêncio sim, mas também saudade, a velha chama sempre acesa nos corações dos portugueses e dos herdeiros da lusitanidade. O antigo sonho sebastiânico convertido agora em espera impossível do por vir. Nesse sentido, a poesia sem sentido de Serguilha nos permite ouvir apenas, em seus desvãos, uma voz oracular que nos acena por entre as frestas do verbo. Talvez por isto não seja mais que a exortação infecunda de um real perdido para sempre. Ou, em outros termos, que não são mais que outras tantas palavras em meio às paisagens vertiginosas desse Kalahari verbal, sempre a avançar sobre horizontes desérticos e sem fim: a busca delirante de um caminho inexistente em direção à liberdade que não há. Pura miragem, delírio, transe expectante...

 

 

 

Paris, fevereiro de 2013.

 
 

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O livro: Luís Serguilha. Kalahari. São Paulo: Ofício das Palavras, 2013, 448 págs.
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agosto, 2014
 

 

 

Fernando Segolin. Ensaísta, crítico e professor titular de Literatura da PUC/São Paulo. Tem vários livros e artigos publicados no Brasil e no exterior.