Enganam-se os que lêem a poesia de Paulo Franchetti, em Deste Lugar (FRANCHETTI: 2012) como simples, fácil, evidente, de acesso imediato. Seus efeitos até podem ser esses, mas também outros, pois os poemas Deste Lugar são muito mais do que isso, movem afetos outros, não apenas esses.

Elaborados com arte, artifício, ou técnica, como quiserem chamar os leitores, os poemas fazem-se no médio didático e deleitador horaciano. São poemas de matriz lírica horaciana antes mesmo de terem sido influenciados por qualquer poeta romântico ou modernista.

Para Horácio, o livro de poesia organizava o mundo. Eram flores, guirlandas, florilégios. A musa do menino, o caderno, permitia aos bibliotecários, poetas alexandrinos (27 a.C. a 14 d.C), apagar poemas, versos, epigramas, o que conferia ao gênero um caráter de composição, de transitoriedade, de provisoriedade, o que em Horácio se fixa como exempla e para exempla e em Franchetti é construção de poeta e de poemas. Os poemas dos bibliotecários eram lidos antes de serem escritos, os de Franchetti são escritos para serem lidos.

A suposta facilidade na leitura Deste Lugar se deve muito às qualidades estilísticas como clareza e concisão (brevidade), virtudes também horacianas que dão cor aos 87 poemas sem métrica fixa, nem esquema de rimas, de extensão variada, mas com o predomínio das formas breves, às vezes epigramáticas, lacunares, distribuídos em 111 páginas.

Entretanto, isso não esconde, nem apaga a erudição na qual o livro se sustenta, a qual o livro carrega e com a qual Paulo Franchetti, como livreiro, poeta bibliotecário contemporâneo, universitário, inventa e se inventa no livro.

Focalizo o nó nervoso do livro, o jogo entre a construção do efeito e o efeito tão bem feito, a ponto de iludir o leitor de que os poemas são simples, prosaicos, de circunstâncias, amorosos etc. Até podemos ter poemas de circunstâncias n'este Lugar, contudo isso não define, nem esgota o sentido do livro.

Haverá aquele leitor que se deleitará com o efeito dos poemas, cairá nele e nele ficará preso. Haverá aquele outro que perceberá o efeito, identificando a técnica, o artifício urdido e, não menos afetado, poderá ser comovido/movido.

 

 

Que artifício mobiliza Franchetti em Deste Lugar?

 

 

Este leitor responde que mobiliza/desmobiliza a convenção lírica em poesia, com muitas das variações de tópicas líricas de toda a longa duração do gênero na história da cultura.

No livro, encontra-se a lírica exposta como coração exposto, mostrado, demonstrado. Se há unidade em Deste Lugar, se há um núcleo, nó nervoso, é seu caráter lírico, seu pathos, em seus aspectos demonstrativos/deliberativos evidentes nos retratos, nas cenas e paisagens pintadas, e nos conselhos ajuizados, seja no diálogo com o leitor, seja com a amada, seja no diálogo do eu lírico com ele mesmo.

Contudo, não se trata de uso convencional da convenção lírica, nem imitação/emulação de modelos, autoridades, muito menos de desconstrução. Ocorre uma consciência contemporânea da convenção lírica e uma singularidade de uso dela em Deste Lugar.

Não é o caso de dizer que é feito um panorama da lírica. Franchetti experimenta, exercita, expõem os lugares principais (as tópicas principais) da lírica arcaica grega (séc. VII a. C. - V a. C); antiga grega (período "clássico") e antiga romana (séc. I a. C.); medieval (sécs. V-XV); renascentista (séc. XIV-XVI); moderna (séc. XV-XVII); romântica (séc. XIX) e modernista (séc. XX).

Não é Deus e sua época na lírica. É poesia alexandrina. Não porque métrica, longe disso. Porque inventada como de poeta bibliotecário, estudioso, meticuloso, no exame de coisas íntimas, em tensão com o mundo ou, se algum leitor preferir, da tensão do privado com o público.

O eu lírico, no caso, é, como pensa Adorno, voz individual, oposta ao coletivo (ADORNO: 2003,70), que mais do que querer ser, quer ser universal. Eu lírico que perdeu a unidade com a natureza. A verdadeira lírica consiste em restabelecer o elo com a natureza pelo mergulho desse "eu" no próprio "eu". Desfragmentar seria uma solução, como o faz a lírica de Franchetti, que realiza, justamente, isso.

Tradicionalmente, o uso da primeira pessoa na poesia lírica se justifica por ser o eu tópica de verossimilhança. Para tratar do amor a primeira pessoa é a mais adequada. Na lírica contemporânea isso se mantém, mesmo que seja um eu do tipo adorniano.

Em Franchetti, a verossimilhança está morta (desde Machado de Assis). O eu é marca do discurso, entidade do discurso, resquício dessa ideia de verossimilhança em poesia. O eu no caso, é fraturado, traumatizado pela barbárie.

Em Deste Lugar não temos um passeio pela Grécia, por Roma, pela "Oropa, França e Bahia". Temos poesia carregada e esvaziada do costume antigo lírico, hoje tradição.

Os poemas Deste Lugar são contemporâneos. Seu poeta idem. Ocorre que o eu lírico (entidade do discurso, não Franchetti) é eu lírico de poeta bibliotecário. Ele nos traz, com sua técnica, a tessitura do livro, a experiência lírica por meio dos lugares Deste Lugar. Não é gratuita a locução que nomeia o livro. Não à toa escolhi para ler justamente os lugares líricos do livro, a invenção dessa poesia e desse poeta.

Mais do que apenas carregar essa tradição (costume), o poeta bibliotecário universitário de hoje, inventado no Deste Lugar, pensa sobre a lírica toda, porque seus poemas são reflexivos, pensados, calculados. São poemas pensantes, feitos em diálogo com o leitor, ou em diálogo com a suposta amada ou em monólogo; mas, sempre capazes de mover o leitor atento a pensar, mais do que sentir. Sentir sinta o leitor que ficou no efeito.

É exemplo de poema pensante

 

"Os que amaram antes/e os que ainda vão amar;/os que andaram nas ruas/e os que cruzaram os campos;/aqueles que apenas desejaram;/os que já morreram/e os que estão por nascer:/com todos me irmano/neste momento, repleto/e vazio de mim mesmo./A todos estendo o pensamento,/e em segredo convoco:/eu, que não sou nada, apenas/aquele que o amor agora habita/e agita e faz falar".

 

Nesse poema temos eu lírico presente, falante, dialogante, ajuizando e pedindo. O texto tanto é deliberativo ao aconselhar, quanto é uma petitio que a todos estende o pensamento, seu vazio, sua existência, sua cumplicidade.

É ao leitor atento que me dirijo para dizer como interpreto a poesia Deste Lugar e com quem.

Leio os poemas com foco, faca e agulha. Foco de olhar no gênero, seus usos, estilizações e esvaziamentos, perguntando o que a crítica parece não ter perguntado ainda: que lugar é o Deste Lugar? Ou, quais são os lugares Deste Lugar? Não o lugar na literatura, na poesia contemporânea, mas da sua especificidade, da sua singularidade de lírica contemporânea.

Leio os poemas do livro primeiro sozinho. Eu e o livro. Depois, com Francisco Achcar, com Adorno e com Jaime Guizburg, que anoto conforme cito.

Mostro que a poesia em questão é culta, de estilo médio e deleitável. Horácio não é modelo, mas citação e inclusão básicas para a composição da lírica Deste Lugar. Não é Horácio evidente, naturalizado, explícito nos poemas. É Horácio evidenciável, do conhecimento de Paulo e do eu lírico do livro.

As condições de produção Deste Lugar, os lugares dos lugares, posições, violências, barbáries, traumas sofridos, a experiência "humana", eliminam a música, típica do gênero lírico, talvez pelas fraturas do "eu", ou porque os sujeitos dos textos sejam "eus" fraturados. Nó nervoso para o olho, para faca e para agulha, não para viés de costura ou outro nexo secundário.

Quando a música não é eliminada nos poemas, é música muda, de ausência na surdez de que Adorno fala, pois lírica no seio de sociedade capitalista, neoliberal, fetichista da mercadoria, pop, industrial. A força dessa poesia adorniana, reconhecida em Franchetti, reside na luta contra desumanização e alienação. Esta luta se estabelece entre a subjetividade e a exterioridade do mundo.

A epígrafe de John Lennon anuncia o lirismo do livro: mediano, contemporâneo, pop, cuja música Adorno diz ser para surdos pós Auschwitz. Por não serem odes, os poemas do livro não tem música; para além dessa interpretação adorniana que proponho.

 

 

Entrando no livro

 

 

Os poemas se dispõem e podem ser interpretados como, basicamente, sendo de duas sortes ou dois tipos de poemas líricos: aqueles cujo eu lírico está presente; aqueles em que o eu lírico se ausenta. Outros dois tipos de poemas podem ser destacados: o de poemas em diálogo; o de poemas em monólogo.

Lírica é gênero da poesia segundo os antigos que dividiam poesia em dramática e não épica. Por exclusão, para nós hoje, sobra poesia lírica, como os resíduos de Safo, Catulo. Lírica era, para antigos, rubrica com a qual se etiquetava um gênero de poesia, não a totalidade poesia lírica como hoje (modernamente) se pensa. Elegia e iambo eram gêneros vizinhos da lírica. Tanto a elegia quanto a lira tratam do particular, talvez subjetivo. Safo, por exemplo, lança mão da tópica do amor como doença, afecção. Tópica com a qual Ovídio produz Os remédios do amor, arte de amar.

Quando penso na homologia entre lírica tradicional — de costume alexandrino, da elegia fúnebre ou exortativa — e a lírica de Franchetti, preciso lembrar que poesia lírica grega remonta àquelas cantadas, com danças, como epinícios de Píndaro (522 a.C. - 443 a.C) das odes pindárias ou dos hinos. Outra lembrança que preciso fazer é a da vertente lírica trágica, com coro, a exemplo de Ésquilo (525/524 a.C.- 456/455 a.C); as elegias de Alceu; as elegias de Anacreonte (563 a.C. - 478 a.C.).

Lembro, também, de antologias como a de Meléagro de Gadara (140/120 a. C. - 60 a. C.) das gravações em pedra ou metal (epigrafia), da elegia erótica de Calímaco (310 a.C. - 240 a.C); de poesia sutil e graciosa do período helenístico (323 a. C. – 146 a. C.), da Guirlanda de Meléagro (séc I a. C.). Ou seja, de uma infinidade de gêneros e subgêneros, incluído o iambo, cujas referências, os lugares, podem ser cruzadas com a poética de Franchetti Deste Lugar, numa espécie de acúmulo e simultaneidade típicos dos dias atuais.

Em termos latinos, a lírica tem em Horácio seu maior expoente, cujas odes (declamadas) são modelo. Virgílio, das Bucólicas, é paradigma epigramático, das formas breves, inscrições votivas curtas, ditos picantes, agudos, obscenos, sentenciosos.

Nessa tradição (ou costume), o amor é uma das matérias da poesia, por exemplo, no período arcaico grego, não matéria exclusiva. O vitupério, a imprecação, o xingamento, desejar mal, por meio do iambo, também é considerado poesia lírica nesse momento, todavia com essa vertente Franchetti trabalha em outro lugar, não n’Este Lugar.

A generalização a partir do uso de matérias amorosas para definir a lírica é atitude romântica, resgatada por modernistas e, muita vez, o entendimento que se tem de lírica hoje. Na leitura que Guinzburg faz de Adorno, a totalidade proposta por Hegel para a lírica é conservadora e impossibilita contemplar (GUINZBURG: 2003). Os exemplos de lírica devem ser individuais e sociais. Adorno aplica à lírica o conceito de sujeito como processual, incompleto, em andamento. Guinzburg pensa, com Hobsbawn, da Era das Catástrofes, a teoria da poesia lírica, criticando Hegel, que Adorno já havia criticado. Neste sentido, faz uma reflexão marxista sobre lírica no impacto do capitalismo industrial. Enquanto a base lírica de Hegel é metafísica, a de Adorno é histórica, como penso ser em Franchetti.

O limite da homologia que proponho é o da lírica arcaica ser performativa, enquanto que a de Paulo Franchetti, contemporânea, é reflexiva, racional, quase cerebral. Poesia de pensamento. A arcaica é recitativa, com ou sem acompanhamento musical, canto solo ou em coro. A poesia de Franchetti é de câmara, feita para ser lida de perto, muitas vezes, no quarto ou na biblioteca, em silêncio.

Esse limite não elimina a possibilidade de comparação, pois em Alexandria os poetas bibliotecários reclassificaram a lírica segundo matérias, como parece fazer Franchetti ao lançar mão desse repertório antigo de tópicas líricas, como demonstro.

Os poemas, 87 como disse, na sua maioria nomeados a la Camões lírico por meio do primeiro verso em destaque visual tipográfico, tem independência de leitura, mas fazem unidade na variedade de tópicas do gênero.  Intercalam-se poemas em diálogo, em monólogo, intercalando usos das tópicas da lírica. Neste sentido, há sobreposições de temas, continuidades e descontinuidades, pois como disse não se trata de fazer um panorama da lírica.

 

 

Com a poesia na mão

 

 

Para responder as questões levantadas até agora, começo com os lugares dos poemas e seus lugares nos poemas. Depois, mostro como se dá o dialogismo nos poemas, quais poemas aconselham e quais poemas demonstram, o que aconselham e o que demonstram.

 

 

Os lugares líricos Deste Lugar            

 

 

A tópica tempo (temporalidade, transitoriedade, fugacidade, brevidade, longevidade, espera) encontra-se nos seguintes exemplos: "Eis que se move" (p. 20); "Estátua de sal: a carne" (p.38); "Música do tempo" (p. 47). No primeiro caso, há fluidez da firmeza do toque, permanência da transitoriedade, ligada ao carpe diem horaciano, de tom hedonista. Há fugacidade, brevidade da vida. No segundo caso, há o jogo com o tempo, no antes, no agora, no devir. O terceiro é o lugar da espera, da lembrança e do resíduo.

A tópica da morte se encontra, por exemplo, no poema "Todos entramos na morte" (p. 55), em que há diálogo com o leitor. Propõe a morte como lugar baixo. Por sua vez o exílio está representado em "Este corpo nunca" (p.12). O tema da morte, memento mori, que Paulo carrega, tem a ver com estoicismo horaciano, antes em Simônides (p. 73).

A falta, a saudade, é tópica mobilizada em: "Palavras" (p. 31); " Este rumor, a brisa, um traço" (p. 41) pela concisão, parte/todo do lirismo metonímico da presença da ausência de "Palavras". Pelo chamamento e por meio das visões internas/externa o segundo exemplo aqui preenche a tópica falta, procura, ausência. Essa tópica remonta à dor da volta, da demora a voltar, tendo Ulisses como modelo.

O lugar da paisagem pode ser demonstrado na poesia Deste Lugar com o exemplo de "Um pássaro cruza o ar leitoso" (p.54), cuja composição de natureza, a topografia como gráfica de lugar propõe uma espécie de natureza morta, como nos dois poemas anteriores a esse.

Poemas como "Dance me to the children" (p.32) são inventados a partir da tópica habitação ou habitar feito em diálogo com o leitor. Outros são os que preenchem a tópica da memória, como em "Ali falamos de amor, enquanto a morte" (p.22); "Quilhas contra" (p. 46); "Paineiras, canaviais" (p. 93).

A finitude como tópica lírica se apresenta, por exemplo, em "Gotas de chuva na água" (p. 27) e no seguinte "Outra noite caminha para o fim" (p.28).

Negar é tópica lírica muito usada na história do gênero. Franchetti a mobiliza em muitos dos poemas. São exemplos: "O prazer" (p. 37); "Formas abertas" (p.50); "O que parece desígnio" (p. 60).

A tópica da procura pode ser exemplificada em "Este rumor" (p. 41), a tópica da impossibilidade, do impedimento em "Se aqui entrasse, ergueria a mão" (p.42).

Tópicas como as da solidão, da maturidade (idade) e da celebração (sem culto, criticando hedonismo) exemplificam-se em "Outra noite solitária" (p. 59); "A luz inútil da sala"; (p. 76) "Belas são as manhã indiferentes que debulham a sua luz" (p. 67); "A folha da samambaia" (p. 72 ); "Por este momento" (p. 63), dos quais comento brevemente "Outra noite solitária" por ser horaciano por excelência. O lugar da solidão, nesse caso, é o lugar de fala, a idade. Como poesia também do silêncio, shantarasa (gosto poético, sabor), completa o topos solidão à distância silenciosa.

A imutabilidade das coisas pode ser representada, por exemplo, no poema "Nada de novo: a vida escorre" (p. 68), cujas metáforas para devoração do tempo mostram a impotência frente às coisas, a imutabilidade das coisas pela passagem do tempo.

Lugares como os da contemplação, do inesperado são trabalhados em poemas como "4 poemas mexicanos" (p. 81), "A cabeça quebrada"; "4 poemas mexicanos" (p. 82), "Nesta praça bem cortada"; "Nunca tinha reparado" (p. 71) . "Nesta praça ..." é analítico, pensa, faz pensar. É um poema cujo eu lírico presente está contemplativo. "Nunca tinha reparado" é um poema do alumbramento, da epifania (se quisermos), lugar do inesperado, cujo olhar novo pousa sobre o velho, o de sempre.

Das tópicas líricas Deste Lugar destaco ainda lugares como os da escrita, do ato de escrever, registrar, pois visto, experimentado, guardado, lugares da citação e do desejo, exemplificados nos poemas "Fique neste registro o excesso" (p. 23 ); "A noite gelada caminha" (p. 66); "Toda a vida se desfazendo"(p. 95); "O cheiro das mangas na fruteira" (p. 61); "A chuva na folhagem"( p. 64); "Poderia ser apenas isso"(p. 65); "Assim diria : nós"( p. 100). O primeiro exemplo pode ser lido como história do tempo presente, um poema presentista, cujo lugar do registro faz da poesia história, ao mesmo tempo em que é lugar do esquecimento. O segundo exemplo, na impossibilidade de metafísica, o lugar do registro se faz como desenho de anotação. Fugacidade, impossibilidade de metafísica, crítica à metafísica, como no poema "O que parece desígnio" (p. 60), cujas tópicas da lira são de negação, de lugares que podem ser lugares além-lugares, como rio, como além-Tejo, para além da citação e inclusão de Freud/Foucalt, na árvore não-árvore: "esta árvore - / não é apenas / está árvore". Exercício, variedade, copiosidade da prática poética em jogo. O terceiro exemplo mostra o processo de registro por meio das metonímias do poema. O lápis está em relação com a experiência, com o término no jogo há/não há, havia/não havia, não há mais. O registro vai se fazendo conforme o poema é feito. O quarto exemplo para além de ser tópica registro, é lugar da citação, lugar antigo lírico também. É possível ler Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade citados. O quinto exemplo é lugar da arbitrariedade da vida, da vida a nossa revelia, para além do lugar da citação. O sexto exemplo nos mostra a citação de Bandeira do "todos dormem", num raro poema com estrofes. O sétimo exemplo tem a união como tópica, o desejo de união.

 

 

Em diálogo ou em monólogo, aconselhando ou demonstrando

 

 

Para responder quais poemas se fazem em diálogo interno, em monólogo destaco "Que a minha mão seja dada ao esquecimento" (p. 45); "Desce uma pomba, seu pescoço" (p. 52); "Este destino:" (p. 58); "O que poderei ainda" (p. 69); III Coyoacán (p. 84) (e o seguinte , IV); "Retorno" (p. 91).

Os poemas em diálogo com amada podem ser exemplificados por meio de "Eis que se move" (p. 20) e "Palavras" (p. 31).

Os poemas com eu lírico presente, em monólogo, podem ser exemplificados com "Este destino: " (P. 58); " III Coyoacán" (p. 84); "IV – Três rapazes erguem uma tenda" (p. 84); " 2 Poemas de Nova Iorque" (p. 86).

Entre os poemas cujo eu lírico é ausente destaco "Parasse" (p. 44); "A fiação da rua" (p.53); "O céu quente, o asfalto" (p. 62).

Dos poemas que demonstram (pintam, mostram, descrevem, evidenciam) destaco "Nesta hora acesa" (p. 11); "Sobre esta mesa, veja:" (p. 13); "Desce uma pomba, seu pescoço" (p. 52). No primeiro caso temos movimento e luz, finitude/infinitude, cuja anáfora empregue dá ênfase às coisas miúdas e graúdas da vida num certo lirismo demonstrativo. O segundo caso mostra objetos, lugares de pessoa. O terceiro caso a demonstração é especular, reflexo do interno/externo.

Os poemas "Os que amaram antes" (p. 14); "Parasse" (p. 44) deliberam (ajuízam, dão conselho, auto-conselho). No primeiro exemplo nosso bibliotecário aconselha a amar. No segundo exemplo temos um auto-conselho, cujo pedido é o de ter-se calado.

 Há diálogo com leitor, por exemplo, nos poemas "Dance me to the children" (p. 32); "Todos entramos na morte" (p. 55).

 

 

O vazio é a surdez adorniana

 

 

Essa característica dialogal dos poemas Deste Lugar tem a ver com um dos principais tipos de lirismo tradicional (ou do costume), ou seja, com a poesia simposial, do simpósio, ou poesia simpótica, dialogante. A efemeridade da vida, de muitos dos poemas observados, é lugar comuníssimo da poesia do simpósio. (ASCHAR: 1994,60). A simulação do diálogo do eu lírico com o receptor (ASCHAR: 1994,99), ou com a amada, ou em diálogo interno, consigo mesmo, é dado fundamental da poesia simpótica.

Os poemas fazem climas, atmosferas, luzes, sombras, cores, sabores pela pintura de lugares, não dos lugares pintados, pelo pensamento e diálogo. Embora não haja poemas elaborados exclusivamente por meio da tópica do carpe diem, há muito desdobramento dela nos poemas. O carpe diem tem caráter hedonista por considerar a efemeridade da vida, a brevidade da vida, cujo esquema retórico é do simpósio (poesia simposial, de ambiente simposial) de teor deliberativo (ASCHAR: 1994,20), que aconselha. A tradução concorde de carpe diem é colhe o dia, frase tipicamente horaciana, assim como seu desdobramento, exegi monumentum (renúncia ao amor) de uso homólogo na poesia de Franchetti.

A tópica carpe diem tem teor deliberativo como mostra Achcar. Aconselha a fruir, gozar, viver o dia, a vida. A lírica horaciana é considerada filosófica pelos nexos raciocinantes de Lucrécio que ela contém. Poesia que encena pensamentos (ASCHAR: 1994,96-97). O uso e/ou desdobramentos do uso da tópica do carpe diem caracteriza certa mediocridade no sentido retórico de mediocritas, o médio didático e deleitador horaciano homólogo em Franchetti. Nos poemas Deste Lugar há certo bucolismo típico do carpe diem que pode ganhar contornos burgueses, urbanos, caseiros, conjugais, como penso ocorrer em, por exemplo, "O céu quente, o asfalto/quente, o ar parado/ ... (p.62).

Deste lugar é o lugar do eu, o sítio. Lugar de fala de um eu lírico, poeta bibliotecário, universitário. As várias tópicas da lírica em Deste Lugar fazem com que o eu se desdobre em tipos de eus, assim como presentes, ausentes, implícitos, pressupostos. Nenhum deles é Paulo Franchetti. Paulo os inventa nas vozes líricas do livro.  A justaposição da lírica conforme disse, o acúmulo que se sedimenta na escrita contemporânea lírica de Franchetti acaba por se unificar nessa ideia de poeta livreiro, bibliotecário, universitário, que não é alexandrino propriamente, mas de matriz horaciana.

Em oposição à lírica tradicional, antiga ou arcaica, Adorno propõe que a lírica pós Revolução Industrial seja imediata, desmaterializada. (ADORNO: 2003, 70). Neste sentido, Franchetti, depois de ter citado e incluído modelos líricos, principalmente Horácio, ao mesmo tempo se despoja deles.

É como uma espécie de poeta lírico, bibliotecário, sem teto, sem terra, sem universidade, cuja lírica é de lugar morto, que nasce Desse Lugar, da falta, do vazio, da ausência, da carência, da precariedade, da espera, da memória, da projeção dessa tradição como um decalque. Uma sombra, um fantasma que com a combinação da preposição "de" com o pronome demonstrativo "esse", Desse Lugar, forja.

O valor da poesia lírica depende de seu afastamento das convenções tradicionais que estabelecem a perspectiva totalizante de expressão e representação. Franchetti inclui pra excluir, para catapultar lirismos.

Outra diferença da lírica tradicional e a de Franchetti é de que a primeira comunica, canta, quer comunicar, a segunda pensa, faz pensar. É reflexiva.  Deste Lugar é lição de lírica, ou Aula. Na medida que atualiza os lugares antigos do gênero, deleita e ensina.

O poeta bibliotecário, inventado universitário reflexivo, maduro, intelectual, capaz de forjar simplicidade, comunica pelo estilo, justamente, claro, simples. Por outro lado, por ser do tipo eu lírico adorniano luta para comunicar, não comunica diretamente.

Penso, com Adorno, que os poemas Deste Lugar podem não comunicar instrumentalmente, mas põem em sintonia o sujeito com a linguagem pela receptividade que a lírica tem, por aquilo que se costuma chamar de gosto. O aparato poético lírico substitui uma linguagem não mais presente (ADORNO: 2003,76). Neste sentido, penso as flores colhidas, as tópicas antigas redimensionadas contemporâneas Deste Lugar.

Adorno conceitua lírica por a mais pura hora da fratura (ADORNO: 2003,70). A queda para o alto, diria eu. A Hora da Estrela. Para Adorno a verdadeira lírica é a que escapa da alienação, coisa que os poemas lidos fazem, pois por demais pensantes. Sua linguagem é subjetividade que se subverte em objetividade por meio da lírica.

Adorno, em "Lírica e Sociedade", define poesia lírica como aquela capaz de extrair o universal, a universalidade social. Argumenta que a solidão, por exemplo, é individual. Entende isso quem escuta a humanidade refletida no poema. Lírica é algo delicado, frágil. (ADORNO: 2003, 65). O mergulho no indivíduo eleva o poema lírico ao universal por tornar manifesto algo de não captado, de ainda não subsumido anunciado do universal humano. (ADORNO: 2003, 66). A exigência mesma pela palavra (ou da palavra) virginal da lírica, segundo Adorno, é social. (ADORNO: 2003,68). Para Adorno, "a idiossincrasia do espírito lírico se volta contra a prepotência do mundo, à dominação das mercadorias sobre os homens, que se propagou desde o início da Era Moderna e que, desde a Revolução Industrial, desdobrou-se em força dominante da vida. (ADORNO: 2003, 69).

Franchetti carrega e esvazia, em monólogo ou em diálogo, tópicas líricas do costume e das tradições como do tempo, do corpo, da morte, dos limites/não limites, do vazio, da fala, da paisagem, da habitação etc. Embora pop, industrial e de sujeito adorniano Deste Lugar não é fetiche da mercadoria. Sua ideia de aura reside na lírica social, individual, singular, de matriz horaciana, tradicional e conscientemente contemporânea.

A lírica mais eficaz é aquela em que o sujeito soa na linguagem, sem matéria, sem resíduo. A própria linguagem ganha voz. (ADORNO: 2003, 74). É amplo o conceito de lírica em Adorno, na medida em que não se restringe ao poema, mas aplica-se à arte em geral, à noção de obra de arte, que como sabemos, tem aura, enquanto que o fetiche da mercadoria não. A excelência em lírica seria vencer o fetichismo, a alienação. Penso que isso os poemas Deste Lugar realizam.

 

 

 

Referências

 

ACHCAR, Francisco. Lírica e Lugar-comum — Alguns temas de Horácio e sua presença em português. São Paulo: EDUSP, 1994.
ADORNO, Theodor. "Lírica e Sociedade". In: Notas de Literatura I. Organização da edição
alemã Ralf Tiedermann. Tradução e Apresentação Jorge de Almeida. São Paulo: Livraria Duas Cidades/Editora 34, 2003.
FRANCHETTI, Paulo. Deste Lugar. Cotia: Ateliê Editorial, 2012.
GUINZBURG, Jaime. "Theodor Adorno e a poesia em tempos sombrios". In: Alea: Estudos Neolatinos. Revista do
Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro/Faculdade de Letras, v.5, n.1, Jan/July 2003.

 
 

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O livro: Paulo Franchetti. Deste lugar. Cotia: Ateliê Editorial, 112 págs., 2012.
www.atelie.com.br | contato@atelie.com.br

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dezembro, 2014
 

 

 

Eduardo Sinkevisque. Escritor e doutor em letras: literatura brasileira pela USP (FFLCH/DLCV/USP), colabora em várias revistas literárias como Sibila — Poesia e Crítica Literária, entre outras. Escreve o blog menos: blogmenos.tumblr.com.