©wilmar silva
 
 
 
 
 
 
 

     

Em Desejada Dor (Anome Livros/2013), mais especificamente no poema "Jogo de prefixos", Bianka de Andrade destaca, com criatividade e inovação, o valor da inutilidade como princípio comportamental importante: "Quero /unir / o inútil / ao agradável. / Os que / desejam / o útil / fiquem / também / com /o desagradável". Nas entrelinhas destes versos lapidares, eclode uma consciência crítica relevante: fomos envolvidos de tal forma por uma onda de produtividade, que, conduzidos pelo ritmo automático, acelerado e eficiente das máquinas, passamos a entender que o útil deve ser o critério por excelência da vida humana. Assumimos este critério com a maior facilidade, sem refletirmos sobre a sua significação.

A noção do útil, como um valor por excelência, passou a fazer parte de uma consciência coletiva por duas razões: uma, de ordem eminentemente prática; e outra de ordem teórica. Na ordem prática, o advento da máquina levou a primeiro plano o problema da produção, e com isto difundiu uma mentalidade utilitarista, que levou inclusive a que se julgasse o homem pelo que ele é capaz de produzir e não pelo que ele é. Na ordem teórica, o pragmatismo doutrinário firmou-se na concepção de que seria válido apenas o que favorecesse o progresso da vida humana. Tais fatores, de natureza prática e teórica, fundiram-se numa concepção, que marcou a mentalidade humana, voltada para o culto do útil.

Fazer do útil o critério por excelência, na ordem prática, dá-nos a impressão primeira de ser uma posição otimista, pois sugere permanentemente a ideia de criação, de uma criação renovada, de um mudar constante, de um dirigir-se sempre adiante, na escalada do progresso. Mas, por outro lado, desaparece a ideia de um fim a atingir, porque o meio se torna fim, o fim se identifica com o meio, e é neste sentido que dizemos exatamente que a noção de útil tomada como critério por excelência faz com que se pense na produção pela produção, no fazer pelo fazer, sem que saibamos por que, para que, a não ser de uma forma negativa, quando julgamos apenas segundo a ideia de superação ou variação. A ideia de produzir perdeu o sentido do que produzir, porque o produzir passou a ser um lema genérico e indiferenciado. E o homem procura produzir, mas sofre, embora não tenha consciência disto, a experiência de se ver instrumento de uma ação cuja direção final não alcança. E é isto que o sufoca na angústia.

Um impulso prático aparentemente otimista reflete, de fato, um pessimismo latente; uma concepção teórica, que aparentemente exalta a posição do homem, na medida em que o faz ser o criador das verdades por suas ações, lança-o na consciência de um relativismo, em que dificilmente se determinarão os precisos limites entre o objetivo e o arbitrário. Reduzir a vida humana ao critério do útil, apenas, é deformá-la essencialmente. Precisamos ter a noção justa de como distribuir na vida humana o plano do útil e o plano do inútil. Precisamos encarar o problema da esfera do não-prático na vida humana.

A citada poesia de Bianka de Andrade valoriza a manifestação espontânea da vida humana, em seus aspectos lúdicos e artísticos. Coloca-se como valiosa proposta de desconstrução da tirania ferramental, cujo propósito é reduzir o nosso potencial subjetivo apenas como capacidade de resolver problemas e ajustar o que escapa à nossa realidade, conforme anseios imediatos e remediadores. Considerando virtudes lúdicas e artísticas, ultrapassamos o imperativo do "para quê" para melhor experimentar o identificável "o quê" com o sugestivo "por quê". Desse modo, exprimimos uma comunicação de sensibilidade, um traço de simpatia, pelo desejo incontido de construir uma visão original, que nada tem a ver com o rotineiro ou o prático da vida comum. Temos um importante papel como "vigilantes do exército da liberdade", conforme destaca Eduardo Prado de Mendonça, em O mundo precisa de filosofia (1996), uma vez que devemos nos despertar dos hábitos automatizados e da visão rotineira de tudo. Cabe a nós sacudir o torpor causado pela repetição e profissionalização da vida humana. Sendo antimecânicos, conseguimos promover esta visão original e desinteressada das coisas, contribuindo, assim, para a existência de uma tensão espiritual, que mantém o homem num estado de consciência e liberdade. O belo, o grandioso e o sublime se colocam como contribuições significativas do não-prático para uma vida humana mais humana.

É verdade que o homem tem o direito de conhecer para atender à solução das dificuldades de ordem prática que surgem em sua vida; mas não é só isto, pois ele se engrandece na medida em que se dispõe à investigação das explicações mais profundas, movido pelo desejo de encontrar uma resposta, que satisfaça a sua disposição inata de perguntar. Apenas esta satisfação de compreender, apenas esta alegria interior, que parece fazer com que se estabeleça no indivíduo a conciliação dele com ele mesmo, pois na medida em que ele conhece a natureza das coisas e o sentido da existência, uma nova harmonia parece brotar no interior do seu próprio ser. Compreende-se, nesse sentido, a vontade da voz poética expressa por Bianka de Andrade: "quero / unir / o inútil / ao agradável".

O homem pratica atos úteis e inúteis. Os atos úteis são aqueles que estão dirigidos a um fim externo ao que os pratica. Os atos inúteis, no sentido de atos que têm um fim em si mesmos, definem a vida humana na ordem da magnitude e da liberdade. E é neste sentido que devemos recuperar, para uma civilização mais completa e verdadeiramente humana, o valor da inutilidade.

 

 

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O livro: Bianka de Andrade. Desejada dor.

Belo Horizonte: Anome Livros, 2013.

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março, 2014

 

 

 

Marcos Fabrício Lopes da Silva. Doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG. Pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade (NEIA/FALE/UFMG). Jornalista, poeta e professor da Faculdade JK, no Distrito Federal.