Liberdade, ainda que tardia

 

 

 

I.

 

 

Até que ele

se esforçou

por afrouxar

aquele ar

selvagem.

No entanto,

seu aspecto

sujo — "oh, poor

and dirty man! —",

a barba por fazer,

de quatro dias,

não lhe caía

bem.

 

E também,

ainda que se

esforçasse por

afrouxar aquilo,

a iminência da guerra,

as incertezas, a morte

de um amigo e, agora,

sua doença, suas pró

-prias ambiguidades

e inconfidências, tudo

contribuía para a ver

-tigem de sua condição:

nômade.

 

 

II.

 

 

O carro vendido para pagar

os vícios. Fazia sentido. Ele era

o estranho que marcava e atrapalhava

atrapalhava e marcava um ponto no tra

-jeto abjeto de sete quilômetros a pé. Eram

sete quilômetros para medir, exemplarmente,

aqueles que passavam as noites sem dormir, e

os dias sem objetivo, dançando em zigue-zague

no meio-fio, e vendo a si mesmos como que dentro

de uma televisão em branco-e-preto. Havia um senso

de déjà vu em tudo aquilo. Faltava realidade ao mundo

e seus personagens. Os dejetos recobriam sujeitos, objetos

e predicados, e acabavam solapando, por transbordamento,

a incipiente e insistente ânsia por significado daquele que era

ele: mero cidadão médio, errático, opaco, fractal.

 

 

III.

 

 

Eram meses em que, a todo instante,

sobrevinham-lhe tempestades, flashes

de arrependimento e medos de pegar o trem.

A imagem da seringa, os exames de sangue,

a memória da náusea, mesmo sob um céu

radiante ou sobre o chão limpo, onde vo

-mitava. Seria fracassado se morresse

antes de poder aprofundar sentimento

profundo pelos dessemelhantes. Pensou

no quanto era clean nas imagens e fervilhante

nos pactos, contra um plano-de-fundo de azul

tranquilidade. Havia a barreira expressa que

vetava o interesse, a mesma sempre. Mecanicidade.

Duplicidade. Mesmice. Ser um outro para si mesmo,

sempre o mesmo outro. O outro sempre o mesmo. Sempre.

Tentava se lembrar de um eu-mais-imperfeito-do-que-aquele.

Premência de exprimir, espremendo-se. Permanente solidão de

si, e necessidade de silêncio. Seiscentas tentativas de recomeço,

sempre as mesmas, sem se aperceber que o mais essencial dele mesmo

estaria embrulhado naquele amálgama naquele segredo naquela cilada.

 

[A propósito, tentemos pensar numa chave mais bem guardada...]

 

 

IV.

 

 

Eis que se via,

ora no centro,

ora na periferia

das situações,

como núcleo ou

elemento

-satélite,

com todas as

imbricações

paradoxais

de tal duplo

-movimento.

 

Aquele cenário ia

se desmontando,

como seus mecanismos

auto-reguladores,

biológicos, qual

fosse um órfão de

Konrad Lorenz.

 

Seu desalinho,

seu predatório

instinto, seus

lados mais

interessantes,

daninhos, sua

sombra mal

ajambrada,

o médico e o monstro,

o mambembe e o

certinho.

 

E havia um

subterrâneo que

trazia consigo

toda uma ausência

como testemunha,

desleixada, pesada,

infecta. Desinteressada

de todo falar humano,

desinteressada dos mestres

e dos sannyasins, dos escrúpulos

dos renunciantes e dos mendigos

santos. Uma ausência que era uma

atmosfera infensa aos incensos

indianos. Aquela que traga o chão,

de sob os pés, sujos de poeira, do

pobre e do aleijão.

 

Não precisava assumir um visual dark,

uma melancolia gótica, um ar rebelde

adolescente, de quem se arrastasse ou

se movesse pela teimosia. Nem aspergir

água-de-lavanda sobre um chão-em-brasas.

 

Não seria avaro, mesmo sem amparo, em seu estilo

trágico de caminhada. Só Deus saberia, por quantas

disciplinas e contendas ainda, em dois meses de vida.

Liberdade haveria, sim, mas só no fim da história.

 

 

 

 

 

 

Astronave

 

 

Seu sentimento de vida vem

das flores roxas e das formas

arrebatadoras: tragédias e

dramas.

 

[E não há coisa mais doída

e doida].

 

O mais é o habitual:

o letárgico, o morno.

 

E mora, ali dentro, uma

estranheza em relação a

si mesma que só se deixa

para trás na grande paixão.

 

 

[Ou grande risco].

 

O tempo em torno é tenso.

O espaço, denso: calabouço.

 

E há mais luz no escuro do

que em seu

rosto.

 

Quisera flutuar sem peso:

astronauta presa por simples

cordão de aço [fio de luz umbilical],

sem susto, a contemplar o Todo.

 

Mas não pode.

 

O espaço que comporta em

desacerto [consigo mesmo]

já lhe parece demasiado [um

sim se chocando com outro

sim: veja o paradoxo].

 

E só um enfarte [em frente

ou dentro, próprio ou de outro]

lhe tiraria disso: dessa estufa de

medo.

 

E o tempo deixaria de ser

duplicado, em seu esforço.

 

 

 

 

 

 

A Margem Vermelha

 

 

Pode fotografar, enquanto ela está febril

e avermelhada. Ruborizada pelo que des

-cobriu. Apreendeu-se como um quadro

que o tempo corroeu. E soa o quadro

como onda quebrando sobre onda,

até deixar um resto de espuma que

se dilui que se imiscui e que se

infiltra na areia.

 

Apogeu, ápice e, depois, a grande barreira

de se saber sozinha, trilhando a estrada que

se precisa seguir até o fim, a pé, sem mochila,

sem bagagem sem maquiagem sem os sonhos

da juventude.

 

Não há mais que se preocupar com o próprio

rosto. Não precisa se lamentar que o antigo voo

e a vontade de voar tenham se transformado

nesse pouso. Sim. O natural instinto de voar

agora é extinto.

 

Há ínguas, há rugas. Há, na carne, registro

de agruras, travessuras e radicais livres, que

oxidam as mais saudáveis criaturas. Do ar mau

que mal se respira.

 

Tudo o que ela pensara ter sido, até aqui,

se torna agora quadro carcomido. Tudo o

que pensara, desaparecido. E é preciso

entregar a soma dos últimos passos ao

esquecimento. Pra fazer as pazes com

as luzes que, aqui fora, se apagam.

 

Uma a uma.

 

Mas que, ali dentro [no recôndito do

último suspiro dado], se acendem,

discretas.

 

Uma a uma.

 

Para não serem vistas

deste lado da vida.

 

 

 

 

 

 

Açúcar

 

 

Olhos cegos navegam mares [lares]

pardacentos. [Líquidos amnióticos

pardos]. Olhos vazados dos bebês

cegos que nadam em químicos

úteros [de mães infestadas por

produtos ilícitos].

 

Aminoácidos são desfeitos.

[O cheiro é pútrido]. Em vez

de alimento, a língua lambe

o fogo lento do prematuro

vício.

 

Please, uma bolha a mais de ar,

algum oxigênio. Alguma coisa a mais

do que ter de se alimentar de seu próprio

corpo desfeito. [Beijando a si mesmo e aos

próprios dejetos; morrendo aos poucos]. O

coração acelerado como o outro que o sangue

lhe bombeia, com as veias cheias [dissolutas

veias, plenas de sujeira e fúria] da mãe que

agora vive o colapso pleno de vertigem e

medo.

 

Não é possível o boca a boca com essa

que agora agoniza. [Não é possível ao feto

reavivar, à mãe, a vida]. Manso peixe aflito

tentando encontrar alívio ou abrigo no rabo

ou no umbigo. Tentando se nutrir do que lhe

escapa.

 

Intenta [tenta intensamente], ousa ter barbatanas

[diluir-se em água pútrida] como peixe-de-açúcar

a adoçar o pardacento mar e aquela que ingere

escórias [como bendita fruta edênica, podre e

carcomida].

 

Tenta [intenta] salvar-se e a ela, tirando de

si os pedaços [barbatanas dispensadas como

autofágico recurso de alimento], perdendo-se

[e pendendo] como caule [quebrado] da planta

que não vingará [na água ou na lama].

 

O peixe de açúcar [cego e asfixiado]

agoniza. Sonha ter sido flor bendita

ou inseto na redoma.

 

 

 

 

 

 

Jaspe

 

 

Murada e adornada de

jaspe, a cidade sonhada.

Circundo-a com meu sonho:

para sempre circuncisa e

circuncidada.

 

No mais, a criatura mais

precisa: de todo o resto,

não precisará mais.

 

[E nem precisaria].

 

Pois canta a fruta, não

a fome; canta a pérola do

mar [e o Coração da Luz:

o Lume]. E canta as Leis

que deverá honrar.

 

E canta o deslize das

notas que ainda não ouvira

[um canto fabrica do Canto

que não lhe pude dar]. E mesmo

me vendo tocar, no canto novo que

se pretende, não acredita.

 

 

[Nem consegue acreditar].

 

E não há sóis que se des

-manchem o suficiente neste

Vazio. A Vastidão lhe traz

Vertigem. [Também a Luz

demais]. Para Si, um manto

de algodão e um abraço:

Sulamita.

 

[Tirada de seu próprio

braço].

 

Não a fome, só a fruta.

 

Mas, bem longe [longe do

alcance do braço ou do beijo],

minúsculo ponto de Treva.

 

Dir-se-ia Pura Ausência.

Mas d'Ela saber o Segredo,

precisaria [ora, d'Isso, apenas]:

além dos sóis, além dos jaspes

e caracóis, além dos montes e

por detrás.

 

[Além das Esferas ou Feras

Celestiais].

 

Pois que o Olhar não era

Circunciso.

 

E pois, então, conhecer,

talvez, o segredo do Negro.

O Berço do Silêncio Antes

da Voz.

 

[O Barco Antes do Medo,

porque Atrás].

 

Estranha essa tendência

a se curvar na própria escolha:

Dúvida ou Nova Ciência.

 

De qualquer forma, ensaiar

não mais um canto [ou outra

forma de cantar]: mas passo.

E Passo de Abandono.

 

Bordar a Luz com Treva.

 

Sutil mistura: não mais

fruta, mas mais frutífera.

 

[Assim pensara a

criatura, deixando, a

chorar, Sulamita].

 

Fonte de Bem Maior:

Luz Clara e Escura. Não

só mais fruta, mas também

fome.

 

Viver o sono e a gana

de sonhar o que nem

tem nome, sem ter

como nomear.

 

Correr atrás, além-aquém

dos sóis. Nas Infinitesimais

Dimensões.

 

Dizimação Feroz.

 

[Finita Paz].

 

O Vício é o Preço que

Se Paga [Novo Dízimo] a

Outro Algoz: a Própria

Dúvida. Primeira

Dívida.

 

Então, que seja assim:

que haja Luta. E que

chore, um tanto mais,

Sulamita.

 

 

 

 

 

 

Eco

 

 

É um eco de um muro é um eco de um tubo

escorregadio azul escorregadio. O muro me

sonha um eco o tubo me sonha escorregadio

e os seus direitos são meu lado esquerdo,

como num espelho.

 

É um muro alto é um muro alto que faz eco

é um tubo longo é um tubo longo onde escorrego,

e hoje não encontro ninguém que dê a vida pelos

amigos. É um eco longo o grito. É um eco longo.

 

É um feixe de linhas que me cruza a mente é

um feixe de linhas que me cruza, e o paraíso

é onde o feixe se junta: adiante.

 

É um muro alto é um muro alto que faz eco

por ser alto, e o eco é também de minha voz,

mas não somente. Mas nada é mero muro nada

é mero aço ou voz ou tubo, ou eco. Tudo é alto,

como num espelho amplificado.

 

E no tubo longo, tudo é tubo e nada é mero sonho,

tudo é tudo e nada é mero. O tubo é que nos sonha.

 

 

 

 

 

 

Rapunzel em Lesbos

 

 

Desça a corda [nenhuma outra

estrela nunca esteve tão próxima;

e, aqui, me prostro, escriba e

prisioneira] do alto da meia

noite, pra dentro da minha

vidraça.

 

[Jogo-te jogo-lhe as tranças:

me traça! Eu: Rapunzel às

avessas].

 

Nenhuma outra estrela nunca

esteve tão próxima. Nenhuma

luz velou por nós, até agora. Nem

vela. [Nem sei mais se o céu é toldo

ou rasgo novo em ingênua esfera].

 

Por bem ou por mal, daqui me

Safo [ainda que jogada em Lesbos,

consigo divisar dezoito direções no

espaço...].

 

E a corda que me cai [e pela qual

você me chega, me abrindo o coração

em cinco chagas], corda lançada a sós

[e bem esticada: sem púlpito, sem público,

sem direção certa], vinda de um gancho do

céu [Anzol Divino] ou de um Buraco Negro

[de saber, nem me atrevo...], deixa-me

recolhida, em encolhido gesto. Pois

da subida tenho medo.

 

Custa-me crer de onde você

vem [se nunca te chamei; se

nem rezar eu sei]. Custa-me

crer que, daí, você tenha razões

para, por mim, se decidir [se nunca

clamei por ti, nem por você].

 

De qualquer modo [e de todo o

jeito], se me alcançar a boca, te

darei um beijo. Se me alcançar o

ventre, serei seu travesseiro. E

ganharás a noite [só sei clamar

assim, misturando verbos e

pronomes].

 

Seja [ou sê] a mulher[-estrela]

a me levar [ou levares] inteira,

dessas mulheres-meias que

pela Ilha passeiam.

 

Se nenhuma pode me gerar um filho,

adentre a tua luz por entre o vão [sim,

adentre no meu ventre] do meu desespero

[como se movimenta a cadela ou o cão], e

fareje aqui [dentro] uma chuva, um salmo,

uma poça lisa [ou leitosa] de meu mel no

[interno] chão.

 

Lamba-me [e me lambe]. Estou nua.

E não resisto à primeira luz que me

toca.

 

[Inquieta e lisa,

nessa Imensa

Ilha].

 

 

 

 

 

 

Wutai

 

 

Quando ainda era menonita, Larry

Darrel foi torturado e morto, nos idos

de 1570. Hoje, quando lhe perguntam

se este é o melhor dos mundos possíveis

[quase cinco séculos depois], ele diz que

não, e acrescenta: "sequer é o vice".

 

Larry Darrel é doido. Ele bebe coisa.

 

Quando Larry Darrel escreve, há muitas

vírgulas que lhe olham de soslaio. As vírgulas

o denunciam. Mas ele ri e não entende.

 

Larry Darrel é viciado em beberagem.

 

Seu avô faz cem anos hoje. No entanto,

eu vejo T'an-luan, o camponês, passar à

sua frente, conversando com outros

camponeses, até cair doente, até

os céus se abrirem.

 

E os astros não são os

que sabemos.

 

Larry Darrel junta papéis que

lhe caem, afiados, no meio dos

dedos dos pés. De seis bibliotecas

já se desfez. E diz assim: "Se li livros

que já sei, deles não mais preciso;

se guardo os que não sei, isso me

serve ainda menos".

 

Larry Darrel exibe a lógica dos hospícios.

 

De ano em ano, Larry Darrel esvazia seus

armários. Cada gaveta é sala e arena. Lu-shan

[a Montanha de Lu] cabe na quina esquerda

de uma delas.

 

Seu avô se conserva em

secular travessia: nuvem,

mar e areia.

 

Curdos marcham em protesto.

Flores murcham. O olhar da naja

paralisa antílopes. A música de

Schubert exibe a silhueta mais

precisa. Larry Darrel se lembra

do filme que não houve.

Ele bebe coisa.

 

E sempre é hora de abrir-se para o lado,

para cima e para fora [hora pressaga: o

desabamento das codornizes] e ver o que

não era. Dor na têmpora. Vento molhado

de chuva. Larry Darrel não pensa em

curar-se do vício. Ele dá risada.

 

Serras e soldas asfaltam seu quintal

de terra roxa, arquitetam luz e sombra,

erguem vigas: o ríspido cântico do

esmeril a lhe fazer companhia.

Nunca se ouviu falar de coisa

parecida.

 

Porque não provamos a bebida.

 

Dores atrozes de artroses interiores;

janelas de contorcionista. Larry Darrel

faz pose: repousa no barco de quintal

asfaltado, de tudo afastado, esperando

a morte do lado de fora do mundo.

 

Larry Darrel não quer se curar do

vício.

 

Sentado no barco-de-quintal, descreve

catedrais e as descasca com a ponta dos

olhos. O que era terra agora é desterro:

civilizado alicerce pra sustentar o barco.

Oito vagas para cada leito.

 

Jovens amamentam mendigos.

 

O mundo lá fora parece laboratório

de pesquisas: estádios agitados de

babuínos e boates sem saída.

 

Acentos em queda

acentuada.

 

Larry Darrel repousa em barco

e contempla o palco, sem ser plateia

ou público. Ninguém comanda o

espetáculo.

 

"Antes de sair, entreguem

as comandas".

 

Larry Darrel extrapola.

 

Longas fileiras em fuga derrubam

grades ao rés da rua, anseiam e assoam,

apresentam tortos retratos ao fotógrafo que

não veio.

 

Caminham fileiras horizontais em Linha

Reta para a Solidão do Horto: Natureza

Morta.

 

Larry Darrel bebe coisa.

 

E murmura, em barco-de-quintal,

para cada vulto: "Quero trabalhar

teu rosto em laca, colocar sobre teu

peito o escudo, devolver-te a força

derrotada".

 

Sentado em barco-de-quintal, ele calcula:

"Oito quilômetros até o escritório, trinta

passos até a porta de emergência, doze

moedas para o mendicante; cinco

décadas até a infância".

 

E murmura: "Na flor d'água, a gota que

cai, justamente porque sai, é a que mais

conta".

 

Larry Darrel tem nas gavetas seus extratos

do imposto de renda. E, curioso: ele é isento.

Desce do barco-de-quintal, senta-se sozinho

no chão, em círculo. Respira fundo.

 

Setecentas partículas por

milímetro cúbico.

 

Larry Darrel tornou-se especialista em

escafandros, miniaturas e gestos

manufaturados. E murmura que

há gestos industriais. E afirma

que há homens descascando

indústrias com os olhos.

 

Larry Darrel é viciado em coisa.

 

Tivesse mais tempo, tornar-se-ia

especialista em rodas, cilindros e

guidões.

 

Tivesse forças, jogava garrafas de vinho

sobre os para-brisas, garrafas de vodka

sobre os limpa-trilhos, fechava boates

que errassem nas contas pra

calcular seus erros.

 

Tivesse tudo isso, mas não.

 

Ele bebe e insiste: "As pessoas

entendem minhas tolices como tolices,

por isso não me entendem. As pessoas

não conseguem me supor, dos meus pais,

o artífice".

 

É difícil, Larry Darrel, pela ausência dos

diagramas mentais, pelo sentar no muro

do estacionamento nessas longas conversas

a dois, com as expulsas de casa. É difícil, Larry,

pela escassez de recursos humanos e

ambientais.

 

É difícil, pelo irmão mais novo correr

atrás do mais velho, gritando palavrões.

 

É difícil pela extensa conjunção de fatores:

aos vinte e poucos anos, enfileiramos falsos

nomes; aos trinta, somos risos e sarcasmos.

Aos quarenta, os melhores colecionadores.

Aos cinquenta, abdicamos da caça, se já

crescemos.

 

Passam os anos e largam a fumaça.

O fogo arrefece em mornidão de brasa;

depois, ela mesma adormece em cinza.

 

Quinze mil partículas por milímetro cúbico.

 

É difícil, por tudo e cada coisa. Por se contar

da visita à casa de Victor Hugo pra se entreter

os amigos, quando não se quer falar do Louvre

ou se está sem assunto.

 

Dormem as lápides em Paris,

enquanto irmãos perduram em

luta feroz.

 

Guindastes e betoneiras aceleram a

construção dos prédios, fora das horas

legais.

 

Larry Darrel fala do biscoito do café e

do barbear da manhã.

 

Mas ele bebe coisa.

 

Quando chega a chuva, dura três semanas

e enche o barco. Seu avô navega passeios

em líquidos anéis e tornozeleiras. O ciciar

da chuva supera o som das lixas. Cai a luz

como some o som da voz. Larry Darrel

tornou-se especialista em quedas de

voltagem e índices pluviais.

 

Chega um quimono azul pelo correio.

E a chuva antecipa as casas sem telha:

um ponto na curva de Gauss.

 

Uma tarde de sono, um trago,

um jato direto no para-brisa.

 

Ruas enlameadas.

 

"A água que goteja e vai [justamente

porque sai] é a que mais conta".

 

Água demais ou de menos, e as sensações

se abarrotam. Larry Darrel já odeia coleções,

inclusive as coleções de ódios e de "eu odeio".

Larry Darrel é extremamente sensível a lugares

novos e homens velhos. Há um que faz viagens

sozinho e se perde. Outro que compra estátuas

florentinas por deleite. E aquele que acena para

as chamas de gás.

 

Seu avô experimenta lentos passos

cognitivos. Por isso, é ultrapassado

por T'an-luan.

 

T'an-luan não coleciona móveis, nem

fotos sobre os móveis. Ele olha acima

da mobília, aquilo que achata a presunção

humana ou seus deslizes. O que sobrepuja

a biografia, sem desvios ou repetições:

a montanha de Wutai.

 

 

 

 

 

 

Kilimanjaro

 

 

Hora da visita: oito horas.

Você quer olhar tua vida com

meus olhos, drenar o Sangue da

Quimera e de todos os Monstros,

esvaziar-se daquele impulso.

 

O que há, no fundo, é drenagem

e não mudança de curso.

 

[Secagem a Frio].

 

Precisas falar com meus quatro

eus, nas oito horas do dia, nas oito

celas de cada hora do dia, pautadas

por meus olhos. Tirar o dedo da boca,

recolher a bituca do assoalho.

 

Recortar as falas dos filósofos [apenas

um punhado], enquanto te digo as coisas

que passsaram. As tuas coisas.

 

Tua saga cercada por livros, tantas falas:

a Calma e a Chama indissociavelmente

Juntas. Ausente a alegria de esperar por

filhos. Outra alegria a tua: Confeccionar

Alturas de Escadas a Cada Dia, deixadas

à Sombra, na Planura.

 

[Silenciar ao término do Fio].

 

Horário da visita: oito horas.

 

Trazer aqueles diários, experimentar

Idiomas. Reunir cavernas, rouxinóis, bisões,

visões bifrontes [Jano à espreita], forças nas

pernas pra escalar Kilimanjaro: A Montanha

Branca dos Masai.

 

[As intempéries podem ser cruéis].

 

Hora da visita. Mudas pelas portas

que fechas. Encontras outra palavra

à medida que, da velha, emudeces.

Não há mistério: só escolha.

 

Sonhos discorrem sobre as frestas

e escorrem sobre as folhas. Verdes

sonhos: descaminhos de Ítaca,

Assombros de Hades.

 

Alguém te ouve e pensa em Ilha.

Quem dera. Não vê quem te beijou

a face.

 

Alguém vai à farmácia para ver a

atendente. Ouve, na fila, uma frase

de Borges. São assim as filas: cheias

de lanças, tropéis, tropos e alquimias.

 

Alguém vai à farmácia e pega a fila,

sem spleen ou tédio, mas nada esplêndido.

Da Palha ao Azul, do Azul à Palha.

 

[Passiflora].

 

Alguém te ouve falar e se esquece

do sino, deixa de acreditar no silêncio e

no branco definitivo do marfim.

 

Divaga, chama por alguém e pede um

chá, abandona moedas sobre vasos de

plantas, recita os Vedas e Upanishads,

conta as cores das chamas nas manchas

solares, abre as mãos pra mostrar as

palmas.

 

Alguém te olha e pensa em Ilha,

cansado de jogar, ao cão, a toalha,

cansado de medir a extensão do atelier

de pintura, cansado de contar números na

borda do sono, as notas rasgadas; das cólicas,

cada fisgada.

 

Alguém te ouve e pensa em ilha.

Quem dera. Deixa ir a penhora,

a tradição histórica, o verde da

pupila, a cega sede sobre o

copo de urina.

 

Alguém te ouve e abandona

o sonho do traçado retilíneo.

 

Não dá pra carregar tanta coisa.

 

O segredo de largar não se acumula.

Todas as pedras se aclaram. O peso maior

que o peso quebra a adaga em pequena

poça e afunda o vergalhão no plexo.

 

Não dá pra coligir tantas recusas.

 

Seja cada forma a última para, no

fim, deixar de ser qualquer uma.

 

 

 

 

 

 

Indício de pessoa

 

 

Procurei pela pessoa e não havia

pessoa. Não estava nas paredes

descascadas de outrora. E não

adiantaria escrever epitáfio,

pois não estava nos

cemitérios.

 

As árvores se dobravam em gestos

tortos por sobre os muros [em ramos

aflitos e pedidos bizarros], tentando ouvir

seus sussurros [qualquer indício de pessoa]

por entre os mortos. Mas ela não estava na

terra. Nem por sob a terra. Nem desfeita em

cinza, luz ou poeira.

 

Não havia pessoa que se pudesse embalar

ou reconstituir num painel, numa túnica,

numa unidade tocada — pensada ou ideal.

 

Não estava atrás dos descascados das paredes

ou do tempo. Daquilo que já estava se indo, antes

que houvesse nada no lugar. Ou alguma coisa. Nem

no que estava pra vir, sem que chegasse nunca.

 

Não seria possível resumi-la no horizonte do

provável, no pico da neblina ou da memória,

nem guardá-la em memorável utopia, em im

-permeável inviolável embalagem de alumínio

ou plástico. Pois que não havia quem ocupasse

espaço ou vácuo, nem que o constituísse.

 

Quedo-me olhando o teto mofado, aquietado

e triste. Não há túnica que lhe sirva [à pessoa

que não vejo], nem túmulo. Nem frase final

[gravada em lápide ou voo em ziguezague

de grafite, chumbo ou cinza vegetal] que

possa abordá-la, abreviá-la ou à sua

indecifrável passagem, entre a vã

percepção e a falta de

hombridade.

 

Não há pessoa [ainda que eu raspe

as unhas nas paredes] pra carregar

comigo [além dos fungos no ar

contido no exíguo espaço dos

meus sonhos]: aquela

presença que nunca

esteve.

 

 

 

 

 

 

O Antípoda

 

 

Para Manuel Bandeira

 

 

O mais sensível [e bonito],

no poeta, era sua postura

inclinada. Até mais do que

as sextilhas.

 

Bom poeta, também, porque

meu antípoda: hóspede de outros

pavilhões [anfitrião e conviva].

Pasárgado poeta [frágil e

grácil] da Viagem

Definitiva.

 

Poeta das estrelas e da

mesa posta, sobre a qual

posso chorar

Maysa.

 

E posso evocar [no breve

choro] sua original postura.

Tanto melhor [e tão mais fino

o seu apuro] por nem de longe

me lembrar.

 

[Sequer no Escuro].

 

Antípoda dos meus gestos

por me ensinar [pelos avessos]

o que não sei, o que não faço, o

que não peço.

 

Mais sensível que seu verso:

o impulso involuntário [quase

caído] com que me impele a

dizer [sem nem bem saber

se sou eu mesmo]:

 

Antípoda.

 

 

 

 

 

 

V

 

 

Onde as ruas se encontram e

os homens fazem suas apostas:

no V. Com liberdade de serem

enganados ou enganar.

 

No V, distintos e presentes,

supondo juventude incessante

ou acolhendo a morte.

 

No V.

 

E o coração amansa a voz

que ruge do estômago. E a

mãe lança fora o seu bebê,

enquanto outros lançam

da(r)dos.

 

Sentados no vértice,

purificam-se.

 

Sentados no vértice,

contaminam-se.

 

 

 

 

 

 

Caput Corvi

 

 

E veja ali: o esmalte descascado

diversas vezes, diversas vezes

descascado. A cor: cabeça de

corvo.

 

A língua amarela desenterrando

brincadeiras de morte, videogames

de assassinos, assassinos em

videogames. A língua desativando

o Mal que em nós resiste, que em

nós reside: cadeias e filamentos

de ácidos nucleicos.

 

A língua que viabiliza o Bem decorrente

pela soma das desativações, e pensa-se

que não, porque não se sabe pensar a

língua nem o amarelo.

 

Pela língua, liberte o que lhe deu

calote. Pela língua.

 

Pela língua, alcance o azul ritmado

que pisca, sem roçar o céu da boca:

Placa de Hotel. Libere o azul pela

língua. Quem não o cogita, nada sabe

do amarelo roçando a placa pela

língua e só por ela.

 

O outdoor que pisca sem repouso,

avisando o longo itinerário, feito

de diversão e pouso, tacos de baseball,

chicletes colhidos ao lixo, luminosos

pelo azul mais restrito. Libere-os

pela língua e pelo amarelo.

 

Cabeças de corvos navegam por

caminhos adornados. Libere-os,

pela língua. Caminhos cobertos

de dísticos imperiosos: sintomas

do mundo tão complexo.

 

O giro ininterrupto até cair ao

solo. A lembrança-ainda-sem-fala

no longo itinerário da estrofe acima,

carente de liberação, de ser cuspido

em escarros de ouro e coleções de ouro

até que se ache a língua amarela.

 

Luminoso azul-ritmado e os carros

transitam, sem qualquer aura. O

corredor polonês em plena escola,

esmurrado por dezoito

bandidos: labaredas

em alarido.

 

Cancele-os pela língua, em

amarelo.

 

A insistência do azul, a força

do outdoor e o teto despencando.

As coisas caem a partir de dentro.

Cá fora, pousam na linha do

Equador.

 

O azul-ritmado e furioso e

O hotel já falido. Roubado

no primeiro negócio, traído

no segundo. Quando se descobre

o tiro pelas costas e se pensa

que morrer seja o mais digno.

 

Quando só há tempo para juntar

as mãos.

 

Catar os chicletes do lixo,

um a um.

 

Cada rosto esfregado

retirado ao chão, sem uso

da força ou qualquer

reparação moral.

 

Cada frase interrompida ao meio

por uma outra dita mais alto, que

interrompe o que nem sabe.

 

Palavra de ordem.

 

Até a interrupção da fala

pela língua: o derradeiro

paradoxo. O corte da última

opinião.

 

Amarelo: espada de fino gume.

 

Cabeça de corvo em sua expressão

fundamental: o negro recobrindo

o azul-luminoso. A melhor tradução

do que não foi dito, para que possa

partir.

 

Em definitivo.

 

 

 

[imagem ©eduardo kobra]

 

 

 
 
Marcelo Novaes é paulistano, nascido em 1961, geração X, psicólogo de formação há um quarto de século e atuante na área, egresso da ECA e Farmácia, prosador poético que de vez em quando alinha sua prosa como poema. Também interpreta sonhos e oniriza textos, o que é verso e reverso de uma só e mesma coisa, valendo a redundância. Autor do ensaio clínico-cultural O Olho Que Nos Olha Nos Olhos [olhoanalitico-marcelo-novaes.blogspot.com.br], o texto que considera o mais importante dos que escreveu, no qual há links para outros textos seus em verso e prosa. Presente na web desde dezembro de 2007, pulverizado em espaços literários vários: portais, revistas, blogues. Partidário da livre impressão de seus textos [em papel] conforme o gosto, interesse e necessidade individuais, sem mediadores de mercado, nem lucro: sequer para o autor.