A Hora Púrpura

 

 

Contrariando previsões, a manhã de meados de outono é de céu azul e ensolarada. O barulho que vem de fora não é de chuva no telhado. Tanto melhor. Alegra-se. Desliga o despertador e fica mais um pouco na cama. Brincadeiras de crianças, sons imprecisos de algazarra e vozes de passantes se confundem entre o sono leve e a vigília.

 

É o dia da partida. Destino, o lugar onde nasceu e viveu sua primeira infância. A antiga fazenda de traços coloniais, edificada nas fendas da geografia curvilínea, entre o mar e as montanhas, e de onde ela, há anos, não tem qualquer notícia.

 

A longa viagem, por anos desejada e por meses planejada, inicia-se sem tropeços. Ignorando sua solene falta de talento para a música ela faz coro com a engasgada Judy Garland, em Somewhere Over the Rainbow, que toca repetidamente no som do carro.

 

A estrada de terra seca, estreita e poeirenta, rasga a densa cortina de manacás floridos. Ao longo do trajeto, cirandas e cantos de lavadeiras se desprendem das velhas fotografias em sépia espalhadas no banco ao lado. Avalanches de emoções a invadem, a cada lento avanço.

 

— Pare já de fazer arte, que já deu muito trabalho para nascer. Não queria sair de jeito algum — repetia sua mãe, incontáveis vezes em um só dia. 

 

Severa e zelosa, a aguerrida mulher cumpriu, sem dívidas, o árduo ofício com os oito filhos, nascidos pelas mãos da mesma parteira. A dureza dos dias, iguais aos de tantas outras matutas, era amenizada na magia da hora púrpura. Assim a mãe gasta se referia ao entardecer, quando nada mais existia, a não ser a novela épica que vencia o chiado do rádio de pilha. Ignorando o avental, divagava nas aventuras da heroína do folhetim, uma princesa do Egito, terra que, de tão longínqua, soava imaginária. Sua existência se esvaía. Era um jorro de água fresca na aridez da rotina inglória.

 

Das diáfanas brumas azuladas emergem, místicos e imutáveis, os montes guardiões da eterna paisagem. O coração lateja, pulsa acelerado. Indiferentes à métrica, diluem-se as horas. Em pouco tempo, e a pouca distância, estará no estreito corredor que conduz aos degraus da porta principal, ladeado por hortênsias em seus matizes variados. A via lilás, como aquarela na parede da memória.

 

Frases mudas, despontuadas, esmagam o seu peito no tempo em que permanece como estátua, diante da velha porteira. Sequer sente os pingos da súbita garoa rala. O cheiro do mato molhado mistura-se ao cheiro viril do etéreo cavalo baio, aos galopes na pradaria. 

 

— Ah, o pessegueiro me espera, recoberto por flores em festa. A figueira perfumada está lá, majestosa, de frente para a janela da sala. As roseiras estarão prenhes em seus talos entumescidos pelas pétalas temporariamente aprisionadas. Quando menos se espera, libertas, serão rosas amarelas. Os sabiás, obstinados, buscam a perfeição na minuciosa construção de seus ninhos engenhosos. As jaboticabas, ametistas recheadas, estalando sensuais, entre a língua e os dentes.

 

O pensamento não se aquieta. Aromas alados do café de pilão coado na finda madrugada mesclam-se aos odores do seu sonho, no espreguiçar da última gota de aurora. Chamas indomáveis agitam-se na boca do fogão de taipa. 

 

Ela toma fôlego. Segue em frente. Adiante, alguns pés de araucária, esguios, desnutridos, estéreis e tristes. Por onde voarão as gralhas que deixam cair os pinhões e perpetuam as famílias dessas árvores, mais antigas que os dinossauros? Hibiscos mirrados são as flores que encontra na alameda descuidada. E o caminho de hortênsias? Onde está o pessegueiro? E as joboticabeiras? Pergunta à brisa. Indagações ao vento. Diante dela, uma edificação metálica laureada por antenas, construída no lugar da casa grande demolida, é um centro de estudos meteorológicos desativado. Deserto e silencioso, irradia solidão.

  

Sentada, aos pés do pilar que sustenta o arco da entrada ela é Alice, despencando em seu país de maravilhas evaporadas. Odores e sabores, alaridos de cigarras e grilos, joaninhas indefesas, dias de dezembro à espera do Natal, cantos assombrados, medos, descobertas, futuros imaginados, tardes de primavera. A efêmera florada das cerejeiras, contos de fadas, anjos da guarda, céu de lua cheia, mitos e lendas, estrelas cadentes e os pedidos sem juízo, grinaldas de flor de laranjeira. Tudo dança à sua volta como vaga-lumes em noite escura.

 

Ela chora. Desintegra-se em lágrimas. Aos soluços, lava o rosto no fio de água do córrego que fora o sinuoso rio de águas claras.

 

Retoma o caminho de volta. No banco de trás do jipe empoeirado, a menina com cabelos de milho verde e olhos limpos de opala acalenta a sua distônica boneca de pano. E com um sorriso antigo, desaparece na névoa de suas lembranças. 

 

A luz do dia que se despede cintila no rosáceo horizonte. A hora púrpura, nas dobras de uma longínqua saia de chita desbotada.

 

 

 

 

 

Capricho da Natureza

 

 

Amarílis é uma flor. Amarílis, ou açucena, floresce em sua exuberância colorida, apenas uma vez ao ano.

 

É uma flor a Amarilis. Esta outra é Amarilis, sem acento, tão bela quanto a amarílis, com acento, a flor que floresce, de vez em quando.

 

O pai de Amarilis, sem acento, farmacêutico por sustento e jardineiro como refúgio para insanidades compulsórias, não apreciava o nome científico da flor que mais gostava: hippeatrum hybridum — imagine um nome desses na certidão de nascimento — mas, como era boticário, sabia que nomes científicos nunca são conhecidos, tampouco pronunciados. Afeito ao significado das coisas, frente à pia do batismo, desejou à filha todos os signos de uma florada: altivez, elegância e graça. E assim, assim mesmo, se cumpriu, como assim o pai fervorosamente rezara.

 

Amarilis, sem acento, obedeceu, desde sempre, aos desígnios florais. Sua mãe, como toda beata, é sabido, se agarrou à efeméride de o caule se dividir em três e foi logo se adonando da canônica mensagem, a Santíssima Trindade. Delirava vendo a filha, em um futuro distante, como a adorada padroeira de alguma paróquia. Mãe, subtraindo-se as lunáticas, é tudo igual. Ou, quase.

 

Amarilis, sem acento, traz em si os predicados conferidos àquele espécime botânico: altivez, elegância e graça, embalados na aura de sua feminilidade explícita.

 

Flor-de-Liz, assim o japonês da quitanda, um cara com hábitos e shape de monge, apelidara a moça bonita com nome sonoro. Garantiu, inconteste, que no outro lado do mundo, onde o sol nasce primeiro, é como a flor bela e arredia é conhecida.

 

O italiano da Cantina Fortunata, seguindo a mesma cartilha, chamava a Amarilis, sem acento, La Beladona.

 

Bella Donna é o nome dado a toda espécie da flor bela e arredia, que floresce, de vez em quando, na sua amada terra das gôndolas. Não raro — seria estratégia? —, se entendia "peladona", ao que o velho Fracalanza retrucava. E não convencia.

 

Virgílio, o célebre poeta romano, mais velho que Jesus Cristo, contou o vigário numa conversa fora da igreja, deu o nome de Amaryllis, com ípsilon e dois elles, a uma pastora, assim como Ovídio, outro poeta, esse, latino, alguns anos mais novo que o primeiro.

 

Nos mitos gregos, contou o tal vigário, ninguém se lembra quando e onde, a amarílis, com acento, está associada ao deus Apolo, conhecido pelo seu orgulho.

 

E assim cresceu Amarilis, sem acento, cercada de lendas. E de laços de cetim cor-de-rosa. Suave como uma pétala, assim era Amarilis. Sem acento.

 

Do pai, o dono da botica, que também vendia alguns exemplares de velas para procissões de festas religiosas, não se teve mais notícias. Da mãe beata, há desencontros. Uns dizem que faleceu. Outros que, para curar desgosto, virou freira Carmelita.

 

Amarilis, sem acento, vive hoje em Bora Bora. Deixou o noivo esperando na igreja e foi embora com a fotógrafa. Muito mais divertida. Adotaram uma menina. Qual será o nome dela?

 

Amarilis, sem acento, não se lembra do japonês da quitanda. Não se esquece é do dono da Cantina, que a chamava Beladona. Amarilis, sem acento, prescinde de ser bela. Dona ela é. Da história.

 

 

 

 

 

Os Olhos Tristes de Monalisa

 

 

O que acontece contigo, Monalisa, que tristeza é essa, menina? O que te passa, que por teus olhos ao mundo perpassa? — Já sei, a solidão veio lamber as suas entranhas. Conheço essa saliva. Você já devia ter aprendido que solidão nada tem a ver com falta de companhia. Solidão é a essência da condição de todo ser que respira. Companhia é apenas um afresco, uma obra pictográfica na parede da nossa existência. Um remédio, é certo. Jamais cura. E não adianta me olhar assim, com essa cara de aquarela que caiu na poça. É isso mesmo, não tem muito o que fazer. Esse seu olhar triste não muda o script; a gente nasce só, vive só, morre só. E só, irremediavelmente só, a gente vai para o buraco, onde uma brevidade impiedosa nos reduz a solitários ossos que por outros ossos ficam esperando.

 

Ai, que silêncio! Não gostou do assunto? É meio chato, concordo. Mas hoje, decididamente, você não está boa de conversa. Eu também não lá essas coisas, mas falar ajuda, mesmo que o outro não responda. Esvazia o vazio que se acumula. Não sabe?

 

Você ainda tem sorte. De não ter filhos. Explico. Você tá aí, sozinha e triste, é fato, mas seu coração lá, no lugar exato, do lado de dentro do seu peito. Se você tivesse um filho que insiste em manter sigilo absoluto sobre o seu paradeiro, viaja e não deixa recado escrito, não diz para onde foi e não atende ao celular, você teria o seu coração, assim, como o meu, vagando, sabe-se lá por onde. Além da solidão, a angústia. Isso, minha amiga, é a treva.

 

Eu aqui, pensando. Sabe, Monalisa, pensando naquele projeto de lei que pretende incluir na Constituição do País o direito à felicidade. Como fez, há mais de dois séculos, Thomas Jefferson, na Declaração de Independência dos Estados Unidos. Então, acho que,  em tempos de lógica difusa e quebra de paradigmas, não dá samba uma proposta como essa. Vivemos tempos diferentes daqueles, do presidente americano. Raciocina comigo. No seu caso momentâneo, e no meu, a felicidade dos outros, outros estes que são os nossos, constitui em fazer as malas e ir curtir o feriado em outras pradarias. Pradarias, não padarias, ouça bem. Continuando o raciocínio. Lá foram eles em busca da felicidade, ainda que pleonasticamente passageira. E cá estamos nós, amargando nessa síndrome do abandono. Você acompanhando, Mona? Não, claro que não. Não acompanhando a ideia, sei disso. Tudo bem, eu entendo.

 

Voltando. Por enquanto, é um projeto. Eu , no mínimo, curiosa. Como seria firmada essa lei? Como seria definido o impalpável objeto a ser legislado? Quantos artigos, incisos, emendas, cláusulas, itens, adendos, recursos e instâncias seriam necessários para garantir que a felicidade de alguém não venha a ferir a felicidade do próximo?

 

Você tá nem aí com essas pendengas, certo, Monalisa? Sorte sua. Sorte a sua, que tudo o que precisa, anseia, e espera, é que eu me levante da soleira desta porta e despeje os dois copos da sua ração balanceada nessa vasilha aí, que eu troque a sua água e dê um daqueles biscróquis em formato de tíbia que estão ali, naquele pote, enquanto o seu dono não volta da sua viagem. Sorte a sua, Monalisa. Sorte a sua. 

 

 

 

 

 

 

[imagens ©jeff randall rosenfield] 

 

Maria Balé é pós-graduada em Comunicação Corporativa pela PUC-SP, produtora de textospublicitários e fotógrafa. É cronista do caderno Cotidiano do jornal eletrônico Algo a Dizer, edição mensal. Integra o elenco dos oito autores do livro Damas de Ouro & Valetes Espada, da MG Editora. Mora em São Paulo, Capital.