©andré kertész
 
 
 
 
 
 
 

 

AFINANDO O SANGUE

 

 

lamento mas meu coração

    não quer mais saber de lamentação

quanto mais ele for coração

    mais ele irá cantar essa canção

 

sinto muito mas meu coração

    não irá cortar outro coração

meu coração não quer

    mais saber de escoriação

 

quanto mais ferido ele tiver

    mais ele irá cantar essa canção

amor, eu vou cantar e cantar e cantar

    até calar essa sede de canção do meu coração

 

meu coração não irá cansar

    até encontrar outro coração

quanto mais perdido ele tiver

    mais ele irá cantar essa canção

 

meu coração não será mais um encouraçado

    atirando para tudo quanto é lado

ele estará mais para uma fronteira frágil,

    uma fortaleza fácil entre a flor e o aço

 

afinando o sangue eu vou pedir perdão

    até que meu coração fale como uma oração

amor, eu vou cantar e cantar e cantar

    até calar essa sede de canção do meu coração

 

 

 

 

 

 

UNIVERSIDADE FEDERAL

 

 

primeiro

eles amarraram

o poema

na mesa de cirurgia

e o drogaram

e o intoxicaram

durante semanas

com toda forma conhecida

até o momento

de artigos ensaios teses e dissertações

 

eles se dedicaram

eles realmente se esforçaram para anestesiar

as simples e naturais

capacidades expressivas do poema

 

depois

seguindo o procedimento padrão

eles tentaram retirar cada um dos seus órgãos

isolaram verso a verso as veias

artérias aurículas e ventrículos

enfim todo o sistema vascular e circulatório

do poema

 

mas mesmo assim

os órgãos continuaram pulsando

separadamente

 

para surpresa e desgosto de todos os doutores

em literatura presentes

os órgãos internos

do poema

apresentavam

de forma insuportavelmente musical

e intoleravelmente ritmada

a mesma arritmia lírica

que o autor havia denunciado

em muitos momentos simples espontâneos

e aparentemente sem significância

de sua biografia

 

como isso era possível?

 

eles simplesmente não compreendiam

como aquele poema

sem rigor científico algum

depois de completamente

e meticulosamente esquartejado

poderia ainda estar

vivo

 

o que eles fizeram então?

 

eles isolaram a área

lacraram as portas

cimentaram as janelas

queimaram todas as evidências

distribuíram cianureto para todos os envolvidos

pois não poderia haver registro

ou testemunho futuro

que comprovasse uma falha assim

 

um fracasso como esse

poderia muito bem comprometer

seus currículos lattes para sempre

e arruinar suas carreiras na universidade

 

depois disso

os poucos que restaram

após semanas e semanas

de muitas mesas de discussão

de literatura

chegaram à seguinte conclusão

lida em ata pelo mediador

ao final da sessão:

 

— visto que ele não pode mais ser apanhado

e que os seus poemas

não quiseram colaborar conosco,

teremos que pôr em prática

o plano B...

 

algum dos ilustres doutores

que acompanharam o caso Koproski...

por acaso sabe onde mora

a sua musa?

 

 

 

 

 

 

CANÇÃO DE AMOR E ÓDIO


onde você estava que ainda
não notou que em Curitiba
suicida que é suicida ama a vida
só não vê sua paixão correspondida

onde você estava que ainda
não notou que nós passamos a vida
sonhando em se mudar desse lugar
mas quando chega a hora da partida

ah, a gente ainda hesita demais
às vezes diz que vai mas não vai
até que um corvo suspira: nunca mais
e a gente vai pra São José dos Pinhais

mas se o sol hesita, a gente aflita
dessa cidade só pensa em se matar
de vinho, vodka, solidão, neurose
tomo nas veias uma overdose de inverno

e sonho em ser eterno uma vez mais
e sonho em ser eterno uma vez mais
e sonho em ser eterno uma vez mais
e sonho em ser eterno uma vez mais

antes que mais uma vez eu repita
Curitiba, um novo toc agora tanto faz
mas dá um tempo nessa obsessão
de fazer eu te levar nas costas, no coração

não espero que você um dia coincida
com minha dor, só quero que você
deixe de ser nos versos convencida
eu sonho em ser eterno só uma vez na vida

 

 

 

 

 

 

COMO É DIFÍCIL FAZER UM REFRÃO

 

 

se teu coração está com fome

se teu coração está cansado

se teu coração parece que foge

a cada novo machucado

 

coração, toma cuidado

coração, fica aqui do meu lado

canta pra mim uma canção

alcança pra mim outro coração

 

se teu coração esfria com razão

se teu coração ferve teu sangue

se teu coração procura outro coração

como uma canção de Neil Young

 

como é difícil fazer um refrão

quando você não está aqui,

e pra que serve uma canção, se

meu coração não alcança teu coração?

 

 

 

 

 

 

AS FLORES EM GREVE DE FOME

 

 

enquanto você me fala

que entre nós

as flores em greve de fome

forçada

o sonho ainda com sede

as gatas ainda com sono

a gente na mesma sintonia

da antena da tevê quebrada

 

enquanto você me fala

que meus poemas são tão necessários

quanto um relógio parado

 

ainda penso que mesmo parado

o relógio

marca 2 vezes por dia

a hora certa

 

enquanto você me fala

sobre dias sem piano

da roupa amassada

da casa desarrumada

do sonho de uma vida inteira

 

das árvores estourando a calçada

da pia enchendo de pratos

ou da chuva há dias

comandando uma verdadeira invasão

através das goteiras

 

enquanto você me fala

disso tudo

 

ao invés de lavar a louça

ainda fico aqui lavando palavras

nessa página em branco

encardindo dia após dia essa página

com meus versos

 

enquanto você me fala

do livro do amor

 

o evangelho do desejo

se abre à minha frente

e eu

 

ainda com as mãos

nas coxas pálidas das páginas

 

leio com os dedos seu rosto

seus braços suas mãos

seus olhos fechados

acesos

 

leio com a língua seus joelhos

seu umbigo sua nuca

suas pernas

seus tornozelos

 

leio toda a sua pele

 

toda a epiderme das páginas

desse livro

 

que sou eu e você

 

enquanto você me fala

que entre nós

as flores,

 

seus dedos brisam

por minhas costas

 

e uma suavidade impera

sobre todos os segredos

 

 

 

 

 

 

YOU'RE MY WOMAN


assim que você chegou, eu vi
você é a mulher para mim
porque entre suas pernas, amor
sou todos os sóis que se põem

assim que você voltou, eu vi
você é a mulher para mim
porque entre os seus seios, amor
sou todos os céus que se sonhem

sim, você é a mulher para mim
por ser entre todas as mulheres
todas as mulheres para este homem

sim, você é a mulher para mim
por abrir e fechar meu coração
como uma canção de Leonard Cohen

 

 

[Do livro Retrato do artista quando primavera. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014]

 

 

 

 

 

*

 

De 5 em 5 minutos

enquanto chove

passa todo ônibus que não é o meu

de 5 em 5 minutos

a máquina do mundo engasga,

as suas engrenagens perdem fôlego

e ela tosse sangue e óleo queimado

de 5 em 5 minutos

a máquina do mundo vê

mais um poeta no meio do caminho

e sem pensar duas vezes o atropela

de 5 em 5 minutos

chove e chove e chove

de 5 em 5 minutos

se passam muito mais do que cinco minutos

de 5 em 5 minutos

uns morrem de câncer

outros de solidão

de 5 em 5 minutos

a solidão foi tomando

um a um os seus órgãos

de 5 em 5 minutos

a solidão foi comendo

mastigando ele por dentro

até que um dia acabou morrendo

de solidão generalizada

de 5 em 5 minutos

ainda chove

de 5 em 5 minutos

os sonhos crescem como ervas daninhas

em teus mais belos e conformados

jardins da mente

de 5 em 5 minutos

novas formas de beleza

são inauguradas e perdidas para sempre

na tua frente

de 5 em 5 minutos

em pleno inverno

os ipês têm a sublime audácia

de expor suas pétalas roxas

para nós mais uma vez

de 5 em 5 minutos

a vida não pode perder seu tempo com esse poema

de 5 em 5 minutos

a menina de 4 aninhos

tem seus bracinhos e costas queimados

por pontas de cigarro

de 5 em 5 minutos

há mais de três meses

a menina de 4 aninhos

está sendo estuprada

de todas as maneiras

que se possa imaginar

de 5 em 5 minutos

um caminhão se perde na curva

e esquarteja gérberas

quando corta de fora a fora

pela linha de cintura

uma mulher grávida

que esperava o ônibus

de 5 em 5 minutos

as árvores são asfixiadas

pelas sombras tóxicas dos edifícios

de 5 em 5 minutos

os rios morrem afogados em triste sujeira

e suja tristeza

de 5 em 5 minutos

a chuva não limpa mais nada

de 5 em 5 minutos

a chuva suja muito mais

do que simplesmente a roupa no varal

ou a inocência dos desavisados

ou a ingenuidade dos distraídos

de 5 em 5 minutos

violências inimagináveis passam a ser imagináveis

por alguém

bem perto de você

de 5 em 5 minutos

almas de alfazema morrem

de doenças seguramente erradicadas

há mais de um século em meu país

de 5 em 5 minutos

a menina de 4 aninhos

vê uma minipétala de sangue crescendo

no lugar do que um dia seria seu seio

ao ter seu primeiro mamilo arrancado

de 5 em 5 minutos

se passam muito mais do que cinco minutos

de 5 em 5 minutos

ninguém mais se lembra

do que aconteceu com a menina de 4 aninhos

ou com a mulher grávida

ou com a chuva

ou com as árvores

de 5 em 5 minutos

somos intoxicados por um amor

que nunca será o bastante

de 5 em 5 minutos

você pode optar pela urgente

veloz e ingrata corrida dos ratos

ou pela sábia e paciente renúncia dos gatos

de 5 em 5 minutos

novas doenças estão sendo criadas

para conter o avanço de seus filhos

e dos filhos de seus filhos

para evitar que o nosso inadmissível fracasso

se prolongue por muito mais tempo

de 5 em 5 minutos

nossas ideias de felicidade

se espatifaram entre a gente

de 5 em 5 minutos

hoje eu ando devagar

com cacos de sonhos

fincados nos pés

de 5 em 5 minutos

volta a chover novamente

de 5 em 5 minutos

enquanto chove

eu vivo aqui

esperando o ônibus

junto com a mulher grávida,

a menina de 4 aninhos

e a chuva

 

 

 

 

 

 

LIVRO DO SONHO

 

 

o sonho está conquistando células, inaugurando músculos e ossos. o sonho está tomando corpo, ocupando espaço em mim. o sonho não pede licença, quando menos se espera está abrindo caminho entre livros, discos e fotografias na estante. o sonho está rasgando seu caminho entre as coisas certas e conformadas que se decantaram ano após ano em mim. o sonho agora está revirando meus pertences, desafiando e desfiando a segurança que eu vestia, desarrumando um a um meus armários de resignação. o sonho já conquistou artérias, angariou veias e músculos dissidentes em mim. o sonho nesse momento está persuadindo outros órgãos com suas ideias febris. o sonho não se contenta com pouco. o sonho aos poucos está tomando corpo. e mais uma vez estou em desvantagem, tentando inutilmente equilibrar do lado de dentro essa pilha de ideias perecíveis, certezas solúveis e crenças falíveis entre frágeis catálogos de musas em desuso. eu tento andar sem deixar nada cair. mas o sonho se levanta com sangue, músculos e ossos num corpo a corpo sublime e inglório contra mim.

 

 

 

 

 

 

POEMA PARA AS MÁS LÍNGUAS

 

 

busque teu ódio novas mágoas,

mais invejas e mesquinharias

pode mirar toda a tua artilharia

em mim ou na minha poesia

 

pois eis que visto apenas

uma armadura de epiderme,

só o que o coração me der

à prova de teus beijos de berne

 

se teu coração tem cãibras

de tanto ódio acumulado

ou é apenas sua estupidez

entupindo as veias e vasos

 

não sei mas em todo caso

contra ti não levanto a mão,

poesia, muito menos coração

dou só a outra face da página

 

ou o verso de meu rosto

estampado na lâmina da lágrima

pois onde você apenas vê

uma página em branco,

 

eu sei a pureza inabalável:

minuto a minuto da multidão calada,

os séculos de silêncio em cada

página sonhando acordada

 

 

 

 

 

 

VERÃO DOS VENCIDOS

 

 

só queria acabar infinito

no céu aberto de qualquer livro

a me fazer perceber isso:

se vou viver depois de vivo

 

amor, não sou convencido

às vezes nem sei se consigo

convencer a mim mesmo

de meus delírios ou delitos

 

os vencedores que fiquem

com suas súplicas e pedidos

a eles prezo o meu desprezo

só sei do meu amor aos vencidos,

 

aos que têm cacos de vidro

debaixo da pele, entre os ouvidos.

um dia a vida ainda vai ser isso:

noite mais noite o fogo ri o teu brilho

 

 

 

 

 

 

CAMÕES, VEJA SÓ ONDE FOMOS PARAR

 

 

enquanto as vítimas cumprem pena de vida

os estupradores têm aposentadoria garantida

policiais matadores ganham por periculosidade

e assassinos e torturadores morrem tranquilos

 

no país onde Menguele morreu dormindo

os medíocres é que são bem-sucedidos

eles têm uma vida financeira estável

e uma velhice pra lá de confortável

 

aqui os farsantes ganham prêmios literários

e cobiçam o dinheiro de leis de incentivo

escrever não é mais uma questão de estilo

mas uma barrouquidão de tantos ais

 

Camões, veja só onde fomos parar:

agora só os idiotas se tornam artistas

passam a vida esculpindo inconstâncias

um a um cada qual imortaliza seu nunca mais

 

os mais idiotas pensam em mudar o mundo

e morrem por isso e por isso morrem demais

enquanto os artistas se contentam em sonhar

com seu nome em mármore nos jornais

 

 

 

 

 

 

Os piores poetas morrem em grandes salões ovais, com roupa de gala e ao som de impecáveis quartetos de cordas. Os piores poetas morrem laureados por inúmeros prêmios da academia, reconhecidos pela crítica especializada como dicções únicas da literatura de sua língua ou de seu país. Os piores poetas, quando morrem, deixam seus bustos e poemas esculpidos em mármore no hall de entrada das universidades.

Os melhores poetas, quando morrem, deixam apenas seus poemas esculpidos em sangue.

 

Os melhores poetas quando morrem,

deixam apenas

seus poemas esculpidos em sangue

no meio da rua,

no meio das nuvens,

no meio das árvores no fim de tarde

e no meio das páginas de tuas coxas,

poesia

 

sim, poesia,

os melhores poetas morrem

desvendando as palavras

em tuas pernas cruzadas

 

sim, primavera,

os melhores poetas morrem

com teus seios pequenos em suas mãos

enquanto seus dedos dizem

em sigilo em tua pele uma oração

 

sim, primavera,

os melhores poetas morrem

enquanto você cruza as pernas

e espera

pintando as unhas

com o sangue das gérberas

 

os melhores poetas quando morrem,

deixam apenas

seus poemas esculpidos em sangue

 

sim, primavera, porque

os melhores poetas quando dormem,

sonham com

seus poemas esculpidos em fogo

 

no meio da lua,

no meio das nuvens,

no meio das árvores no fim de tarde

e no meio das páginas

de tuas coxas

 

 

[Do livro Retrato do amor quando verão, outono e inverno. Rio de Janeiro: 7Letras, 2014]

 

 

 
agosto, 2014
 
 

 

Fernando Koproski (Curitiba/PR, 1973). Publicou a trilogia Um poeta deve morrer, composta pelos livros: Nunca seremos tão felizes como agora (7Letras, 2009), Retrato do artista quando primavera (7Letras, 2014) e Retrato do amor quando verão, outono e inverno (7Letras, 2014). Organizou e traduziu as antologias poéticas de Charles Bukowski Essa loucura roubada que não desejo a ninguém a não ser a mim mesmo amém (7Letras, 2005) e Amor é tudo que nós dissemos que não era (7Letras, 2012), bem como a antologia poética de Leonard Cohen Atrás das linhas inimigas de meu amor (7Letras, 2007). Mais aqui.

Mais Fernando Koproski na Germina
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