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ABA

 

 

Seu rosto estava úmido. E não havia sido a chuva. Talvez as noites e os dias — aqueles dos quais se deseja esquecer a escuridão ou a luminosidade.

 

As revelações eram indubitáveis quando se transportava para o mar. O distante. O graciosamente colhido no último verão entre os delfins. Haveria de retornar tantas vezes quantas fossem necessárias, todas as que a sorte lhe permitisse. Ainda que em futuros longínquos.

 

Andou em direção das coisas sem direção seguida de perto pelas histórias que lhe emolduravam a voz. Distraia-se ao ouvi-la. Doce. Mesmo em silêncio.

 

Chegou a um ângulo agudo perto da praia. As areias dormitavam inclinadas. A lua emitia um afago sobre as embarcações. Levantavam-se mais adiante algumas pedras inconformadas. Parecidas consigo. Sonhadoras.

 

Sentia-se repleta de vida. Cada vez mais brandamente, enquanto o corpo se esquecia na transparência fugaz das ondas, elevava a fluidez de si mesma numa empolgante alegoria de algas. Acolhida pelo mar.

 

 

 

 

 

 

 

ALMO

 

 

Resolveu que também faria silêncio e reconheceria o seu novo estado. Julgou quase sem chance de falência que tudo era falso e sem medida. Estava convicto de que os tempos se dispunham de forma inapta. "Hoje se esbanja a assepsia, sempre ao alcance de um toque mecânico, de uma troca de espaço, de uma second life". 

 

Refutou a engenharia do engano. Como se temesse fracassar em sua tentativa de repelir o absurdo. "Talvez eu saia correndo para comprar "O peixe dourado" e dourar ainda mais a glória de Jean-Mari Gustave Le Clezio. É. Não gosto de nomes pela metade".

 

Pensava se a não concretização de algo mais palpável era realmente uma circunstância ou um descaso deliberado.

 

Permanecia só. Indo depressa ou devagar. Nada era tão leve quanto a distância alheia. Protagonista de si próprio ponderava insistentemente sobre as páginas não lidas: "sou apenas o que tenho por realizar".

 

 

 

 

 

 

 

ORQUÍDEA

 

 

A esse alguém que jamais resistirá ao meu perfume.

 

Uso as árvores para driblar a escuridão. Elas me agradecem por tornar seus caules mais belos e atraentes. Minha família é a maior que existe entre as famílias botânicas. Eu tenho alma também, assim como as minhas irmãs. Compartilhamos características as mais marcantes: cores, folhas, inflorescências, frutos. Sou adaptável, muito. Ao contrário do que se imagina, não sou parasita. Minhas raízes sobrevivem no ar. Estranhamente perfeitas. Do ar é de onde retiro os nutrientes. Jamais esqueço de exercer minha nobreza epífita.

 

Às vezes vem alguém e me leva para dentro de um vaso qualquer. Eu me sinto só. Mas esse alguém que me leva também cuida de mim; não com a mesma eficácia do meu habitat natural. O carinho que recebo costuma suprir-me a essência. Tornei-me quase humana. Dizem que tenho as formas mais provocantes da Natureza. Mesmo quando sou esquecida, o carinho que recebi me ajuda a aguardar o próximo que virá em forma de nuvem ou pássaro (não posso prescindir do pássaro nem da nuvem, seria o meu fim).

 

Sei eu que não se escusará  à chegada... o devir e seus obséquios fascinantes: abelhas, borboletas, besouros. Minhas estratégias de polinização (o jogo amoroso) são infinitamente belas. Minha herança está em todos os continentes.

 

Tenho segredos infinitos. Por isso não investigue sobre a melhor forma de cultivar-me. Antes procure identificar-se comigo. Somente o necessário. E tudo nascerá. 

 

 

 
agosto, 2014
 
 

 

Tere Tavares (Cascavel/PR). Escritora e artista plástica, publicou os livros Flor Essência (poemas, 2004), Meus Outros (poesia e prosa, 2007) e Entre as Águas (prosa, 2011). Participante de três coletâneas editadas em Portugal: A arte pela escrita III (2010), Cartas ao Desbarato (2011) e A arte pela escrita IV (2011). Integrante da antologia Saciedade dos Poetas Vivos, Vol. 11 (2010) organizada pelo portal Blocos onLine. Teve trabalhos selecionados no Banco de Talentos Febraban com o conto "Sem pena de ter", em 2007, e com a poema "Eu em mim; de um outro lado", 2009 — ambos publicados nas antologias da Febraban. Ainda em Portugal foram publicados poemas e textos seus em diversas edições do "Debaixo do Bulcão Poezine". Na antologia Contologia, da revista Arraia PajeurBR 4, 2013, teve a publicação do conto "Ainda sobre Margaridas". Possui trabalhos de poesia e contos espalhados em vários sítios da Internet, dentre os quais os portais Cronópios, Histórias Possíveis, Blocos on line, Ver-o-Poema, Musa Rara, Diversos Afins, e jornal on-line O liberal, de Cabo Verde. É colaboradora do blogue Dardo. Participa do portal lusófono litero-artístico EscrtArtes. Integra a Academia Cascavelense de Letras, onde ocupa a cadeira de número 26. Edita o blogue M-eus Outros.

 

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