©pawel kuczynski
 
 
 
 
 
 
 
 
 

©arthur bispo do rosário

 

 

Fascinante, provocativa e complexa, a relação existente entre literatura e loucura traz à razão de pensar a consciência crítica do homem sobre si mesmo.

O assunto loucura, antes de ser patológico, uma neurose, caso de divã, é a representação universal do imaginário fértil. Ela é, por si mesma, o modo de ser/estar no mundo, sobretudo na medida em que esse mundo evolui e expõe o homem a desafios em que a compleição humana é posta à prova através da fragilidade e da força dos sentidos em confronto com seus semelhantes.

Parece que de perto ninguém é normal, disse Caetano Veloso. E, segundo o provérbio, de louco e de poeta todo mundo tem um pouco. A loucura deu Dom Quixote e Policarpo Quaresma, Hamlet e Quincas Borba, Artaud e Qorpo Santo, Kafka e Guimarães Rosa, Foucault e Nietzsche, Van Gogh e Nerval, Erasmo de Roterdam e Álvares de Azevedo, Lya Luft e Autran Dourado, Bernardo Carvalho e Valter Goes, Arthur Bispo do Rosário, os gregos Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, Shakespeare e Bernardo Guimarães e tutti quanti.

"Toda arte é louca, embora nem toda loucura seja arte", diz Sébastien Joachim, que acrescenta: "A arte é louca, e especialmente psicótica, porque exige descentramento do ego narcísico e fratura do cerco institucional; porque recusa toda verosimilhança, toda 'naturalização' da verdade do saber, na sua procura de um inalcançável, de uma diferenciação absoluta, de um real irreal, de objetos inqualificáveis, sem contingência predicativa".

Existe, sim, a cumplicidade da escrita literária com a loucura, uma "evidência dos mistérios", segundo Jomard Muniz de Brito, porque no trabalho com o pré-reflexivo das linguagens, ainda segundo S. Joachim, há o "trabalho subterrâneo de déraison (Foucault), como um aquém e um além da subjetividade, com o transe, o entusiasmo, o sonho, com uma vontade que se confunde, paradoxalmente, com aquilo que a maioria chama de loucura.

"Ao longo das leituras, percebemos esses traços enquanto características comuns, através dos desvios da 'normalidade' linguageira, das ocorrências plásticas, rítmicas, das neologias, das recusas de padrões sintáticos, da superabundância ou da penúria de elementos na tela da página, através das energias do dizer, do fluxo e da correnteza das enumerações, das alianças de sons, de palavras e de pensamentos, através da pregnância repetitiva e contudo necessária, através de desmembramento e remembramento de termos ou de grupos de termos, das conexões 'aberrantes', inéditas, pela via da rememoração surpreendente, de apontamentos para o nunca-visto, o nunca ouvido...".

É desse modo visceral que a literatura estabelece relação com a loucura e assim faz sua "busca simbólica pelas linguagens (como) elemento resgatador por excelência do reprimido e dissolve os falsos laços e os determinantes opressores para instaurar estruturas mais verdadeiras".

Donde o poeta ter "percepções desdobradas", ter "acesso a perspectivas insuspeitadas a fantásticos remanejamentos", conclui Sébastien Joachim. Donde ser cabível, portanto, também a conclusão de David Cooper: um discurso é louco porque tenta repoetizar a vida.

Na acepção de Foucault a loucura fascina porque é um saber: "Este saber, tão inacessível e temível, o louco o detém em sua parvície inocente. Enquanto o homem racional e sábio só percebe desse saber algumas figuras fragmentárias — e por isso mesmo mais inquietantes —, o louco o carrega inteiro em uma esfera intacta: essa bola de cristal, que para todos está vazia, a seus olhos está cheia de um saber invisível". Isso porque, também conforme o autor da História da Loucura, essa é uma espécie de infância cronológica e social, psicológica e orgânica, do homem.

Em Literatura: mundo e forma, Massaud Moisés refere-se ao momento da criação literária como "transe criativo", "neurose artificial". Diz, então: "Ainda na perspectiva do escritor e não do homem civil, nota-se que um romancista, por exemplo, mergulha no estado de neurose ao inventar histórias, uma vez que o convívio com as personagens da imaginação corresponde a um distanciamento da realidade circunstancial. Durante o tempo da criação, processa-se um alheamento que se diria neurótico, uma turbulência equivalente à neurose (...) presente no ato criativo, a ponto de com ele se confundir".

Com base em Foucault, após afirmar que antes da medicalização, a loucura inspirava os loucos a escrever livros reputados, pelos homens sábios, como literatura com alto poder de revelação, Gislene Barral vai dizer também que o diálogo entre loucura e literatura, anterior à criação, condizente à gênese da obra, não autoriza estabelecer, entre as duas, nexos de causalidade ou relações de contiguidade. E se justifica: "Isso confundiria literatura, que é antes de tudo exercício da razão, com um discurso de vazão às alucinações e delírios, ou elevaria a loucura ao estatuto de um sistema ou instituição, quando esta é exatamente a negação de qualquer organização, coerência ou ordem. A menos que se tratem de textos escritos por loucos no momento do delírio e em sua linguagem liberada, qualquer obra que aborde a loucura reconhece-a unicamente em sua exterioridade, como experiência objetiva. A fala autêntica do louco é, porém, incompatível com a produção artística porque, nesta época racionalista, a loucura torna impossível a obra".

Não obstante tal assertiva, a mesma Barral indexa a seu ensaio Vozes da loucura, ecos na literatura uma citação muito pertinente de Antonio Cândido, que diz: "A ligação entre a literatura e a sociedade é percebida de maneira viva quando tentamos descobrir como as sugestões e influências do meio se incorporam à estrutura da obra de modo tão visceral que deixam de ser propriamente sociais, para se tornarem a substância do ato criador".

Ao mergulhar na arqueologia da loucura, Foucault vai de encontro à "loucura pela identificação romanesca": "As quimeras se transmitem do autor para o leitor, mas aquilo que de um lado era fantasia, torna-se, do outro, fantasma: o engenho do escritor é recebido, com toda ingenuidade, como se fosse figura do real. Aparentemente, o que existe aí é apenas a crítica fácil dos romances de invenção mas, sob a superfície, constata-se uma inquietação a respeito das relações, na obra de arte, entre o real e o imaginário, e talvez também a respeito da confusa comunicação entre a invenção fantástica e as fascinações do delírio".

Gislene Barral alude ainda, o que é de pertinência neste posfácio, sobretudo para leitores leigos, que loucura e literatura guardam entre si pontos de contato que ensejam novas relações. Um dos mais significativos diz respeito à linguagem tomada como forma de expressão. Ambas, loucura e literatura, ela o diz, são regidas por uma lógica própria, comportando, em seu código, elementos que não estampam uma significação literal. "O sentido de suas enunciações  transcende o imediato e tem implicações profundas porque, apesar de usarem linguagens diferentes, o louco, como o escritor, se expressa por meio de metáforas, símbolos, imagens. (...) O caráter transgressor da loucura também a aproxima da arte moderna, já que ambas se inscrevem como espaço privilegiado de manifestação da subjetividade, no qual os juízos de valor e as convenções de toda espécie mostram-se sem sentido para a consciência do indivíduo".

Sébastien Joachim, com base em Barthes, analisa que o texto literário louco possui alterações às normas sintáticas, cujos desvios têm valor funcional: sugerem ao leitor a inscrição de perturbações afetivas, de intensidade das paixões; representam o desabamento mental, o texto aparece costurado de morfemas, sintagmas entrando em relações singulares, fazendo explodir sintáticos e ortográficos, a ordem lógica, a pontuação; iterações incansáveis, redundâncias chocantes, superabundância de parênteses e de pontos de suspensão, uma estranha disposição tipográfica; junção indevida de palavras autônomas ou disjunção de palavras ou sílabas habitualmente ligadas, descontinuidades bruscas, silepses e substituição repentina do pronome esperado; "linguagem fundamental" do paciente de Freud chamado Schreber, da "língua total"  para além de toda linguística inscrita no vazio de todas as línguas com que sonhava Philippe Sollers.

A literatura pressupõe em si mesma o aspecto transgressor, ainda que o escritor obedeça por necessidade de recepção de sua mensagem ao código, o mesmo se dando em relação à loucura para que haja conteúdo de comunicação. Talvez tenha sido a isso o que Foucault chamou de pertinência da literatura e da loucura, uma vez que a transgressão é dada até o limite de sua compreensão. Contudo, diz Barral, a literatura moderna, sobretudo a lírica, aproxima-se da palavra da loucura "porque se propõe a ir além da transgressão, fazer-se tão ininteligível para a lógica racional que se avizinha de uma palavra vazia, da palavra sem sentido da loucura: "uma linguagem, segundo Roberto Machado, que não procurando se adequar a um código, mas escapando do código, comprometendo o código, a estrutura, a lógica da língua (...) enuncia a própria língua que a torna decifrável como fala; ou, dito de outro modo, é uma fala que inscreve nela seu próprio princípio de decifração".

David Cooper, diz S. Joachim, propõe que a loucura-paixão é estimulante para a poesia, pois ela pode contribuir para a melhoria da linguagem estética, para o progresso do indivíduo, ao dinamismo das formações sociais, uma vez que é suscetível de fomentar o sentimento da responsabilidade, à margem de uma normalidade redutora, de seguranças estéreis, da reprodução do banal.

Ao analisar o livro Laços, de Ronald Laing, Affonso Romano de Sant'Anna questiona se a própria escrita literária já não seria em si mesma uma "mórbida pretensão". A se conferir, ver-se-á que desde os relatos da Bíblia, passando pela filosofia e literatura gregas, do surrealismo à pós-modernidade, o homem busca respostas para a realidade fora do real, admira-se com o impossível e o toma por desafiador do seu imaginário, envereda-se pelo misterioso e perigoso universo da loucura, que é cada vez mais conhecer a si mesmo. Por isso, o que supostamente se presume alienação pode se descobrir revolucionário; o que a priori poderia ser objeto de temor e indiferença, pode encantar como a Ismália enlouquecida de Alphonsus de Guimaraens; o doido municipal tão importante quanto o juiz e a Dodona Guerra, de Drummond; o louco do Cati, de Dyonélio Machado; o alienista, de Machado de Assis; Policarpo Quaresma, de Lima Barreto; os loucos, de José Paulo Paes; o Bafo de Bode, de Jorge Amado; a Joaquina Maluca, de Jorge de Lima; a Darandina e a Mula-Marmela, de Guimarães Rosa; ou os personagens, fantasmas-fantasmas, fantasmas reais e "coisas" do Manual da Loucura, de Gabriel LAbbate Melo, conscientemente louco de que, na esteira taxonômica de Flávio Ferraz, seu livro enfeixa a consciência crítica da loucura e delimita os reinos do sentido e do não-sentido, da verdade e do erro, da sabedoria e da embriaguez, do sonho e da realidade; a consciência prática da loucura, uma espécie de herdeira dos grandes horrores ancestrais, representados pelos ritos que purificam e revigoraram as consciências da comunidade; a consciência enunciativa de que a loucura não pertence à ordem do conhecimento, mas do reconhecimento, pondo-se a refletir sobre a "familiaridade do estranho" (Freud) que a própria loucura rechaça; a consciência da loucura das ruas incorporada ao senso coletivo e à concepção de se fazer crítica contemporânea.

 

 

 

 

©Joe Shere

 

 

"Há poucos homens capazes de prestar homenagem ao sucesso de um amigo, sem qualquer inveja". [Ésquilo]

        

 

Há certos feitos que têm o poder de atrair a inveja. Essa que é o mais dissimulado de todos os sentimentos  humanos, o mais desprezível e o mais torpe, porque embute nela, além do desdém da autodesvalorização pelo valor alheio, a ignomínia do orgulho ferido pelo desprezo, a baixeza da espoliação, a carga negativa da inferioridade, o orgulho satânico.

Invejosos foram os fariseus e os saduceus, Judas e Barrabás, Caim e os cristãos que duvidaram da humildade de Cristo. Os que praticam o vício moral de "puxar o tapete" de outros, sobretudo no trabalho, os que praticam a vaidade, o orgulho e o egoísmo, esse "triunvirato repugnante e nauseabundo, espécie de tríade repulsiva e sinistra" que se apossa da alma de alguns.

Invejosos são os que desdenham os bens espirituais e culturais. Os que demonstram vulgaridade quando deveriam ser nobres. Os que se negam diante de grandezas, como "O homem subterrâneo" de Dostoiévski. Os que se comprazem com ciúme, ódio e dissimulação. Invejoso é o que tem o caráter mundano. "O proletário do espírito dado a encenação histérica", na acepção de Olavo de Carvalho.

Como diz Eugenio Lara, "não há dor de cotovelo que suporte o sucesso alheio". Por isso a inveja domina espíritos fracos com seu instinto de destruição degenerado, a conduzir os invejosos ao seu próprio extermínio. Porque é fácil reconhecer o invejoso. É aquele em quem a evolução intelectual nem sempre acompanha a evolução moral. Ao invejoso carece a apeirokalia: a falta de experiência das coisas melhores. Por isso, seu alcance é limitado a percepções corriqueiras, banais, similares à sua insignificância.

Diz Ramón Cajal que "a inveja é tão vil e vergonhosa que ninguém se atreve a confessá-la". E é verdade. A inveja cria inimigos silenciosos. Ela não suporta o brilho alheio, a vitória adversária, a consagração do mérito, o reconhecimento público. Ela é o espelho da morte. Como diria Quevedo: "A inveja é assim tão magra e pálida porque morde e não come". Ou, ao contrário: é gorda e excessiva em adiposidade mental que fica inoperante até para se comparar com a lógica de sua arrogância.

Diz Ovídio: "A inveja habita no fundo de um vale onde jamais se vê o Sol. Nenhum vento o atravessa, ali reinam a tristeza e o frio, jamais se acende o fogo, há sempre trevas espessas. Assiste aos sucessos dos homens e este espetáculo a corrói; ao dilacerar os outros, ela se dilacera a si mesma, e este é o seu suplício". Inveja-se não apenas o que a outra pessoa possui, mas o que não se é capaz de fazer melhor. Então se desdenha — finge-se não reconhecer para tentar abalar a grandeza alheia que só cresce com o reconhecimento público — a capacidade, a conquista, as qualidades pessoais de quem faz, porque a inveja tem o veneno do ressentimento. O invejoso não tem capacidade de sentir gratidão. Por isso, talvez, mas só talvez, "os ataques da inveja são os únicos em que o agressor, se pudesse, preferia fazer o papel da vítima", segundo Niceto Zamora. O que não se pode esquecer, todavia, é que a inveja é uma doença: a doença da pequenez, da inferioridade, do desdém, do menosprezo, do fingimento, do prazer mórbido com a própria mesquinharia. A inveja é um câncer que não tem idade para atacar a mente com sua raiva: se na velhice, é ridícula como ter vivido tanto para não ter aprendido nada para servir de exemplo; se na idade madura, é o escárnio de si mesma por alimentar-se com a própria estupidez.  

"Pior ainda, novamente com Olavo de Carvalho, é aquela inveja mal confessada que, pretendendo esconder-se, rebaixa e corrói não somente a imagem da pessoa invejada — como seria do estilo da inveja consciente — mas o próprio padrão de julgamento, enaltecendo o que é estúpido e cinzento para não se confessar humilhada ante o brilho, a graça e o talento de ninguém". Tiago 3:15 diz: "Mas, se tendes amarga inveja, e sentimento faccioso em vosso coração, não vos glorieis, nem mintais contra a verdade. Essa não é a sabedoria que vem do alto, mas é terrena, animal e diabólica".

 

 

 

©zé oliveira 

 

 

Não obstante os movimentos verdes fazerem o maior alarde e caracterizar o catastrofismo em torno de questões ambientais, a situação na verdade não é assim tão alarmante como é exposta e "vendida", sobretudo no que diz respeito à questão climática no planeta.

Essa é a tese do geólogo Geraldo Luís Saraiva Lino, experiente livre pensador do assunto que afirma não ter o catastrofismo fundamento científico, além de só servir para desorientar, promover lavagem cerebral nos jovens, ser economicamente contraproducente e de desviar as atenções dos problemas e das emergências reais.

Segundo Saraiva Lino, nunca houve nem haverá clima estático, 90% dos últimos 600 milhões de anos transcorreram sob condições mais quentes que as atuais e em  escala global a tecnologia humana está muito longe ainda de interferir no clima. Para o geólogo, o efeito estufa não passa de um título catastrofista, assim como cumpre saber que nos últimos 150 anos, o nível do mar subiu 20 centímetros. Diz ser barbaridade afirmar que o derretimento da calota polar do Ártico influi no nível do mar, pois o Ártico não tem calota polar, mas uma banquisa de gelo flutuante. Diz também que somente um cataclismo cósmico poderá elevar a temperatura terrestre acima de 35ºC. Afirmando haver livros didáticos com até 45 erros escandalosos em relação a informações ambientais, o geólogo adverte em separata incluída na revista Problemas Brasileiros (nº 420, dez 2013) ser preciso ter o pé atrás em relação às afirmações catastróficas. Uma delas de que a ilha de Marajó, no Estado do Pará, poderá perder 30% do seu território por causa do derretimento das grandes geleiras, o que é grande falácia. Outra, de que a Groenlândia perdeu 97% de sua camada de gelo, também notícia inconsistente. Saraiva Lino aponta as tecnologias de captura e sequestro de carbono na exploração do pré-sal, que só favorecem as empresas fornecedoras de equipamentos e serviços, "uma idiotice, diz o geólogo, tirar carbono da atmosfera e injetar em camada geológica profunda, pois se torna hiperfluido e sai por qualquer frestinha na rocha. Significa enterrar dinheiro".

Para o geólogo, o maior problema ambiental é a deficiência de saneamento básico, uma vez que menos da metade da humanidade, em pleno século 21, tem acesso a esse serviço. No Rio de Janeiro, cidade sede das próximas Olimpíadas, em 2016, metade da população não tem esgoto tratado. Outro problema sério apontado é o lixo, seguido da ocupação irregular de áreas de risco, várzeas de rios e encostas.

Para acabar com o oba-oba catastrofista, propõe Saraiva Lino à ciência climática voltar a ser orientada pela ciência baseada em evidências, a fim de se orientar por políticas públicas de alcance global, além de dotar o Brasil de um satélite próprio, o que o país não tem até hoje.

Ao fazer advertência de que o clima em escala global é influenciado por uma interação de fatores astrofísicos, atmosféricos, geológicos, geomorfológicos, oceanográficos, biológicos, tudo muito complexo de que a ciência apenas começa a vislumbrar, Saraiva Lino é categórico ao afirmar a maior poluidora do ambiente: a pobreza. Isso significa que a concentração de riqueza faz (muito) mal.

 

 

 

 

 

©vitor teixeira

 

 

         O rolezinho não é só o resultado da maciça convocação virtual para jovens fazerem uma suposta e inocente baladinha em shopping centers e assim saciarem, quase por pressão social, o direito de ir e vir no templo do consumo da pós-modernidade. Essa história teve início com o "homem unidimensional", de Herbert Marcuse, em 1964, que chamou atenção para a ditadura da mercadoria em função do capitalismo pós-industrial, que privou o ser humano do senso crítico por idolatrar o supérfluo. Logo em seguida, viria o que Guy Debord chamaria de "sociedade do espetáculo". Hoje o shopping center é a vitrine do ego: ver e ser visto. Ainda no final da década de 1960, após o grande surto das drogas, da liberação sexual, do choque das ideologias e de gerações, o estilo de vender do consumismo chegaria à origem do que ainda hoje prevalece, sobretudo em meio à juventude: a contestação.

         A reivindicação da massa de jovens é por dominar o espaço do shopping center porque eles agora representam R$130 bilhões por ano e se transformaram no principal cliente dos lojistas instalados nesses locais. Ainda que demandem da classe C e que a maioria ganhe R$800,00 e sustente por sonho de consumo ter, ou melhor, celebrar a aquisição de celular, tablet, tênis da moda, máquina fotográfica e, claro, dispor de um ou mais cartão de crédito. E ainda que sua renda seja mínima, dividida em casa quase sempre, esse jovem do rolezinho, como aponta recentíssima pesquisa do Data Popular, quer mostrar que não passa dificuldades, que desfruta de ascensão social, apesar de sofrer preconceito da elite consumidora.

         Ao invadir em massa um shopping, os jovens da classe C estão, na verdade, exercendo uma espécie de vingança contra a elite, porque, com palavras de Olavo de Carvalho, eles rompem por instantes o isolamento que os humilha. Essa constatação é irrefutável: não há convocação para um rolezinho em função de doar sangue; de se fazer coleta de livros para uma biblioteca pública; para se trabalhar por um dia em um hospítal infantil contra o câncer; para se melhorar os parâmetros do ensino público; para se discutir com vereadores as questões prementes do município. O que se sabe que acontece é, segundo Luiz Felipe Pondé, "polícia demais no começo, sociologia demais no fim". E que, se há "obscenidade de portas cerradas" de shopping chique em pleno sábado, isso é "expressão da histeria que domina a psique do urbanoide acuado", diz Barbara Gancia, ambos da Folha de São Paulo. Na opinião de uma engenheira frequentadora de shopping, agora os jovens "são orquestrados", o que é verdade, pois põe em risco as consequências a que pode chegar uma invasão, aliadas à falta de educação, ao oportunismo, ao recalque, à gana de violência e furor contra tudo aquilo que modela o mundo do consumo.

         Por trás do rolezinho pode haver ideologia, propensão à arruaça e ao tumulto, à depredação e à violência, permisivismo, interesses escusos contra o sistema estabelecido e a ordem pública, a perda da dignidade humana. A obsessiva cobrança da supressão das desigualdades, através da promoção quase imediatista e forçada de uma sociedade mais justa, num país de disparidades absurdas como o Brasil, acaba sempre levando os movimentos organizados ou não ao desmantelamento de suas causas e à degradação de suas melhores intenções na vida social.

         Há uma grande parcela de jovens frustrada neste país que a priori, por falta de oportunidade ou por políticas erráticas, é capaz de atos extremos: cerca de 20% de 15 a 17 anos estão fora da escola: 9,6 milhões compõem a geração nem-nem: nem estudam nem trabalham. Dos 80% que começam a estudar, 9% abandonam o curso e 12% são reprovados; 40% desistem porque acham a escola desinteressante: 27% porque precisam trabalhar e 11% porque o acesso à escola é difícil.

         A esperar para ver, mas é certo que infiltrações ultrajantes no cerne do fenômeno já têm feito e poderão aprofundar o sentido do rolezinho como massa de manobra, não como direito legítimo da população jovem de ir e vir no espaço de lazer que lhe falta na periferia, depois que o espaço existente foi ultrajado por bailes funks e manifestações indevidas que apavoram até a própria juventude.

 

 

 

 

©duke 

 

 

Existe um Brasil que se pauta na Lei de Gerson e quer tirar vantagem de tudo. A lição disso vem dos políticos, cujo jogo, quase sempre espúrio, faz da troca de favores uma negociata nos poderes constituídos em detrimento das reais necessidades porque passa a população do país.

Por 39 segundos a mais de propaganda eleitoral de TV a presidenta pode vir a negociar um ministério de R$8,5 bilhões com o PTB. Ou manter a pasta das Cidades, com orçamento de R$24 bilhões com o PP para ganhar 1 minuto e 18 segundos na TV. Na pauta da negociação, os importantes 21 segundos a que tem direito o recém criado Pros no horário eleitoral. Isto sem contar os 2 minutos e 18 segundos que tem a oferecer o PMDB, que já tem 5 ministérios, mas, guloso, quer mais um para fortalecer o Partido e a bancada no Congresso. Em contrapartida é a forma de senadores e deputados federais e estaduais fazerem pressão para fortalecer suas decisões regionais nos pleitos que escolherão governadores e assim melhorarem suas performances junto à liberação de verbas para as quebradíssimas prefeituras e o apoio correligionário aos vereadores como grupos de sustentação nos municípios.

Tudo, enfim, é uma barganha coletiva feita em função do loteamento do tempo na TV e de espaço na mídia impressa. O toma lá dá cá funciona para que os majoritários confirmem sua hegemonia e os pequenos, mais uma vez, sejam engolidos pelo jogo do poder. Haja estômago. E consciência.

Em meio à desfaçatez dessa legitimada falcatrua do poder, instituída pela lei do dinheiro que compra tudo e todos existe, de modo igualmente acintoso e vergonhoso, o que Marina Silva alcunhou de degradante agressão verbal contra candidatos e lideranças políticas em anos eleitorais. O que se vê por parte de quem manda e detém o poder — e deveria, ao contrário, justamente dar bom exemplo — é a indústria de dossiês, as notinhas maledicentes nos jornais, as reportagens encomendadas para expor as fraquezas dos adversários, a guerrilha virtual criando territórios perigosos na internet, além do fomento diário de mentiras, difamações, injúrias e tudo o que puder desonrar os rivais políticos nessa disputa que pauta seu marketing pelo fascismo.

Não existe um pacto de não agressão, porque o poder já se corrompeu e se degradou ao máximo por aqueles e naqueles que o defendem a qualquer preço. Cenas brasileiras realistas que exigem soluções políticas como a falta de segurança cada vez maior, o drama anual de milhões de pessoas atingidas pelas enchentes, o mais caótico trânsito urbano do mundo, o PIB incipiente, o desenvolvimento estagnado, o desemprego, os índices comparativos da educação, a situação aviltante da saúde e dos presídios — entre muito mais — se vêm a conhecimento público é graças a uma imprensa investigativa, atenta com acuidade e comprometida com a verdade de informar a população sobre as mazelas profundas que os governos tantas vezes fazem por esconder ou escamotear.

Vive-se agora em um Brasil onde os políticos não podem mais tentar ludibriar a real situação do povo, com pena de serem rechaçados com esmagadora derrota eleitoral (o que é justo e louvável!), ou de darem origem a novas manifestações populares como as de junho de 2013. Por isso, na negociação do voto já não é mais cabível o eleitor admitir o candidato paraquedista, o candidato sem identidade com a sua terra de opção, o que não tem por ela uma ficha de serviços prestados e uma relação de amizade comprovada com segmentos do município.

Esse tipo de negócio com candidatos a toque de caixa, empurrados goela abaixo por vereadores inconsistentes é o que faz com que a terra da gente fique sempre mercê da negociata com políticos sem escrúpulo, sempre sem poder realizar suas obras básicas, sempre dependendo de uma nova eleição para elegê-los e ficar na eterna dependência de seus favores eleitoreiros. Que Câmara ou grupo de vereadores já convidou os políticos majoritários para, por exemplo, discutir as soluções práticas do Plano Diretor? Pode-se contar nos dedos das mãos quantas reivindicações anuais do Executivo esses majoritários atendem para o município. E na verdade qual prefeito é eleito sem que seja acusado de ter comprado votos? Quanto do eleitorado não se vende por mixaria e às vezes para dois ou três candidatos? Enquanto a política for um negócio haverá negociantes e fregueses. Por isso há fichas sujas e corrupção, mensalões e colarinhos brancos, nepotismo e benesses, continuísmo e negociatas.

 

 

 

 

março, 2014

 

 

 

CORRESPONDÊNCIA PARA ESTA SEÇÃO

Av. Américo Leite, 130 – Centro

35540-000 – Oliveira/MG