Contraindicação

 

Escrever é um impulso ruim.

 

É negar a si próprio do solaz coletivo e se deixar levar por uma necessidade incontrolável de reclusão, de se afastar da realidade do despertador, dos noticiários, dos momentos compartilhados e das fotografias de família.

 

É resignar-se a uma força que lhe atrai a cadeira (a mosca e a teia) e mente, sem pudor, que a confabulação será igual à tinta, ao papel e ao formigueiro dos tipos.

 

É calar uma voz em queda livre.

 

Escrever é enganar-se com fantasmas criativos. Apostar que os acessos repentinos trarão um susto de admiração no teatro cotidiano que atuamos com os pais, os amigos e a atendente da padaria que sempre esquece o adoçante.

 

É aventurar-se num mundo obscuro, em construção à sua ventura, e ser refém de seres inventados que ditam as configurações da trama, o labirinto de palavras.

 

É caminhar sobre o anteparo, sonhar sem sono.

 

O escritor é um tolo. Um escapista que busca asilo em horas maldormidas, vícios e estamparias bibliográficas. Um presunçoso que acredita na irrealização do real.

 

Escrever é encontrar um infinito conveniente. Eternizar-se entre pontos e vírgulas.

 

 

 

 

 

 

 

Cotidianos 

 

Acorde e suspenda as necessidades de qualquer espécie — as urgências fisiológicas devem ser suportadas —, antes de vestir a máscara. Arraste-se na locomotiva das sapatilhas de felpo até o banheiro, e tome o mesmo banho, começando pelo mesmo braço esquerdo, com a mesma água no processo das invenções retrofuncionais.

 

Ainda não calce os sapatos. Sentado à mesa do café repassado, corte a mesma fatia de pão, passando a manteiga no mesmo lado, depois beba da xícara com o mesmo movimento semicircular. Pegue a mesma pasta e o paletó formal e saia para o dia, esse espelho dividido em ir e vir.

 

Não falemos do tráfego. Na portaria do edifício público, dê o mesmo bom-dia convencional, assine o mesmo nome e retire a chave da mesma sala de trabalho. Ali é o centro das repetições. São 8:00. Acione o modelo automático do dispositivo de passar horas, sempre as mesmas, pastosas.

 

Nada é imprevisto. Sempre o mobiliário de patrimônio, o carpete surrado, os objetos ultrapassados: você não está lá. A sombra tornou-se a mancha na parede, não espere variações. Releia os comunicados internos arquivados, redija os mesmos processos empacotados. Não há sentença a ser declarada. Saia do módulo às 18:00. Podemos falar do tráfego, ainda que não seja uma boa ideia, parece que vai chover.

 

De volta em casa, apenas exercite o inverso, começando pelo braço direito. Calce as sapatilhas de felpo, corte outra fatia de pão, passando a manteiga noutro lado, depois beba da xícara, invariavelmente. Quando a esposa perguntar como foi o dia, responda normal.

 

 

***

 

 

Compre um maço de cigarros (os sem filtro, de preferência), posicione-o estrategicamente sobre a mesa do escritório, entre o porta-lápis e o mata-borrão, ligue a luminária e saia no meio do dia sem comunicar ao chefe.

 

Ande a esmo por cerca de uma hora, assobiando a cada cachorro que lhe cruze o caminho, depois compre um jornal, reserve os classificados e jogue todo o conteúdo fora, batendo as mãos na lateral da calça para que lhe desgrudem os tipos.

 

Sem maiores motivos, adentre uma rua, dessas abarrotadas pela multidão que vaivém com ímpetos diversos, e escolha alguém, ao acaso, vindo em direção oposta. Caminhe em contracorrente, suportando os protestos alheios, determinado a refazer cada passo do escolhido, cada guinada, cada parada repentina até finalmente se encontrarem a um palmo e meio de distância.

 

Neste momento, vai se suceder uma série de pantomimas risíveis e embaraçosas, que não dura muito e se embrutece à percepção de que nada daquilo é casual. Mas, antes que a propagação do medo estrague a beleza da situação, suspenda os classificados e diga: "Já foi publicado o anúncio".

 

 

***

 

 

Vá à estação do metrô e embarque em vagões lotados, cumprindo viagens sem destino, até capturar, numa conversa furtiva, um número de telefone.

 

Durante uma semana, ligue para este número, sempre às 22:36, e, quando o desconhecido atender, desligue imediatamente.

 

No oitavo dia, espere o atendimento e, antes de qualquer intervenção, diga prosaicamente: "Ainda estou aguardando a sua resposta", e desligue.

 

Não ligue durante três dias.

 

No dia seguinte, ligue, na hora habitual, e desligue.

 

Espere mais uma semana, então ligue e diga: "Não preciso mais, estou lhe devolvendo pelos correios", e desligue imediatamente.

 

 

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Ligue para o Carlos, convidando-o para ir ao teatro e diga para passar na sua casa às 19:00. Em seguida, ligue para a Elenor e pergunte se não gostaria de jantar contigo às 20:00. Depois, vista a jaqueta e compre o passaporte para a maratona de filmes de Dario Argento, no CCBB.

 

No intervalo entre ‘Profondo Rosso’ e ‘Suspiria’, ligue para a Elenor e pergunte se ela se importa se o Carlos jante com vocês. Depois, ligue para o Carlos e diga que a Elenor vai ao teatro também, se ele pode passar para pegá-la às 18:30. Compre mais pipoca e não se esqueça de desligar o celular durante as sessões.

 

 

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Compre o presente de aniversário do seu tio num antiquário. Um relógio de pulso, com o botão danificado e dois minutos de atraso, segundo o fuso-horário local. Lembre-se de não lhe revelar o detalhe e aguarde até os cumprimentos e as amabilidades. Perto do fim, ligue para ele, com voz de alarmista, e revele: "Estão lhe usurpando o tempo".

 

 

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Procura-se um poodle branco que desapareceu nas imediações das ruas Nilo Peçanha com Presidente Pedreira, de porte médio, com aproximadamente quatro anos, que atende por Lupo. A dona mudou-se de casa faz poucos dias e ele não se adaptou ao novo lugar, e fugiu.

 

É um cachorro de estimação de uma criança, que está sofrendo muito, assim como toda a família. Pedimos que se alguém tiver qualquer informação, por gentileza, entre em contato conosco.

 

Contamos com sua sensibilidade. Pagamos recompensa.

 

 

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Estabeleça um relacionamento cordial com o seu vizinho. Cumprimente-o com saudações gentis, acaricie a cabeleira crespa do seu filho menor e não estacione próximo a sua vaga. Faça-o por dois meses. Depois, pegue suas cartas e comece a depositar na caixa de correios dele.

 

Não se assuste, pois não vai tardar para ele bater à sua porta e, num misto de constrangimento e confusão, entregar-lhe as cartas. Agradeça e diga-lhe para não se preocupar. E, no mês seguinte, antes de depositar as cartas, abra-as.

 

Quando bater à porta, o seu vizinho estará quase de joelhos, jurando por sua trigésima geração que não imagina o porquê disso estar acontecendo, implorando mil desculpas. Apenas abra um sorriso cortês e diga para não se preocupar. E, no mês seguinte, escreva uma carta para ele, recheando-a com uma folha em branco, seu número de telefone e uma recomendação para ligar às 22:36, pontualmente.

 

Atenda o telefonema com uma saudação gentil e, depois que ele descobrir, tartamudo, que é você, pergunte se, por acaso, não encontrou uma carta desaparecida.

 

 

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Programe o despertador para tocar exatamente às 03:15.

 

Livre-se dos lençóis, levante da cama sem fazer barulho e caminhe, nas pontas dos pés, até a sala. Abra cuidadosamente o janelão, ponha a metade do corpo para fora, as mãos em concha sobre a boca e grite a plenos pulmões: "Se todos não saírem, eu saio!". Depois, volte a dormir.

 

 

 

 

 

 

 

 

[imagens ©alekseyn] 

 

Sérgio Tavares (Niterói/RJ, 1978) é escritor e jornalista. Escreveu os livros Queda da Própria Altura (Confraria do Vento), finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e Cavala (Record), vencedor do Prêmio Sesc Nacional de Literatura - Categoria Contos. Tem textos publicados em jornais, revistas e sites literários nacionais e internacionais.

 

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