julgamento

 

um pequeno vulto pálido
surgiu das entranhas da maçã

no dia do juízo.
vinha mordido.

suas diversas bocas
abriam-se e choravam,

falavam línguas,
lançavam beijos pelo ar.


criança, ainda transparente,

voltou ao ventre da mãe.
aconchegou-se
e dormiu.

 

 

 

 

 

 

 

*

    ao amigo Wander Porto

 

uma gota de memória
fritou na lembrança
frishhhhhhhhh

de pulo em pulo
foi diminuindo
diminuindo


até
esquecer-se
no tempo

 

 

 

 

 

 

 

 

aquarela

era de todas as cores.
impossível dizer qual sobressaía,
se o rosa palpitava ao meio dia
sonhava noites, brilhos, flores.

do outro lado, apressado,
com medo que a vida fugisse,
vinha o moço de relógio, dizendo:
— tão amarela, descansa da correria.

olhava, então, a imagem no espelho,
a cor caindo em pingos rosa.
sentia o orvalho secando.
em instantes, amarelecia

 

 

 

 

 

 

 

 

em busca de Drummond

 

num rasgo de lucidez,
espanto-me ao encontrar 
meu velho rosto imerso
na crueza do corpo.

 

esperava que o tempo
plantasse 

sementes de espírito
em meu sorriso.

 

vejo, porém, no espelho
a cor plúmbea da ironia
beirando mesmo o sarcasmo,
velhice da alegria.

não suportaria ser pedra.
meu sangue

pela alma de Drummond
no meio do meu caminho!

 

 

 

 

 

 

 

 

variações

só temos essa dança
essa música
esse Bach
e essas fugas

 

 

 

 

 

 

 

 

instinto

 

em momentos arcaicos
vermes
disformes
seguem o rastro da história

saem do escuro

buscando uma poça d'água


bem cedo a vida
tem sede

 

 

 

 

 

 

 

 

desejo

 

lembra quando eu disse

que não mais
provocaria vertigens


ah, foi só
uma honestidade
passageira

 

 

 

 

 

 

 

*

 

    para Yeats

 

quando o tempo
enrijecer meus dedos,
articulações desobedientes,
tremores,
 
quando nenhum outro
amigo puder ler
meus desvarios,
 
saiba que ainda
farei versos
buscando seus olhos,
 
revendo lembranças
nas estrelas.

 

a noite é sempre azul.

 

 

 

 

 

 

 

*

 

    para um mito gaúcho conhecido como "Homem Arara"

 

         iguaria de amor

ingredientes


uma lua cheia

um ser amado

 

modo de preparar

corte a lua em pedaços pequenos
pique o ser amado e reserve

derreta a lua em fogo brando
espete os pedaços do ser picado

e mergulhe, cuidadosamente

na lua derretida

saboreie com vinho tinto
levemente gelado

 

 

 

 

 

 

 

 

ondas


movimento curvo
de águas
imensas  

 

o mar 
que eu engoli
me afoga
desde o instante
em que nasci

 

 

 

 

 

 

 

*

   

    para mônicas e lenys

 

enquanto dormem os anjos
formam-se prantos,
calam recantos.

eu, Dulce e Néia,
alço meu vôo
último.

do alto de um edifício,
manifesto meu sonho latente,
perversamente
interrompido.

 

 

 

 

 

 

 

 

honra

 

nenhum transgressor
rouba o amor de Julieta
a não ser
o cálice de veneno

 

 

 

 

 

 

 

 

conto de carnes

 

bem agasalhada,

uma benção
desponta na esquina.

 

chora ao ver
a menina sozinha
riscando a alma

 

na aspereza da carne,
pedindo ao frio
pra ir embora.

 

 

 

 

 

 

 

 

cemitério

 

nenhuma liberdade se iguala
nenhum direito é santo
nenhuma vala é rasa
serenô eu caio
eu caio

 

 

 

 

 

 

 

 

não

 

nenhuma letra chegará até a cidade azul
nada meu pode se aproximar
muros altíssimos
guardam o coração do mundo
seu pulsar não pode ser importunado

eu daria a vida
a morte
todos os meus livros de Shakespeare
para ouvir de perto
o ritmo
do músculo vermelho

 

 

 

 

 

 

 

[imagens ©ellipsisfish] 

 

Tânia Amares (Niterói/RJ) é poeta, psicóloga e educadora. Atualmente, mora em São Paulo.