INGENUIDADE

 

Ainda me iludo:
Cá estou
Com o meu tear
Obsoleto
Em ensandecida
Tentativa
De tecer a lenda

Que nada!
Qual a graça
Disso tudo
Onde a raça?
Sempre rala
A urdidura
Não suporta a trama:
Antes
Mesmo
Do final
Se esgarça

 

 

 

 

 

 

NO LIMITE

 

Mastigar o tédio
Engolir o sumo
Cuspir o bagaço
O caroço
Fingir que o espírito
É forte
É de aço
É moço

Sair por aí
Pelo mundo
Sem GPS
Sem mapa
Sem rumo

Será o remédio?

 

 

 

 

 

 

FORÇA

 

De onde vem
A força
Com que torço
A roupa
Com que lavo
A louça
Com que faço
O pão:
Amasso
Bato
Sovo
Asso?

Com que varro o chão
Tão áspero?

Com que estendo camas
Tantas
Em tão pouco espaço?

Com que giro contas
Todas
Com recursos parcos?

Com que rompo
O cerco
E passo
Para o outro lado?

Da represa de lágrimas

 

 

 

 

 

 

UNS AZUIS

 

Uns azuis tão azuis:
Cobalto
Cerúleo
Ultramar
(Até se ouvia o marulho)

Rolinhas
Se não revoavam
Pousavam aos pares:
Um só arrulho

O colorido da vida
Cantava alegre barulho

Um dia
Espargiram-se
O cinza e o silêncio
Por sobre tudo

Teceram-se as teias
Que pendem
Do teto do mundo

 

 

 

 

 

 

OLHAR ANTIGO

 

Eu não percebia
Que a água era 
Opaca
Espessa
Quase pântano

Os peixes
Invisíveis
Dada a ausência
De translucidez
De transparência
Naquele lago 
Lúgubre

Que não era condor
Mas corvo triste
O pássaro escuro
Pousado
Sobre o tronco 
Oco

Não percebia
O palmo de poeira
Roxa
A terra ressequida
Trincada
Em frestas 
Definitivas

O figo-da-índia
Até ele
Já 
Desidratado

*


Tudo o que havia
Meu olhar
De juventude
Umedecia
Orvalhava

E eu vivia
O aguapé florido
Em flores violáceas
O colorido da coral
Verdadeira
O voo rasante
Exato
Do gavião valente

Que só eu via

 

 

 

 

 

 

DUAS ESMERALDAS

 

Houve um tempo

Em que ela prendia

As madeixas

Escuras

Num coque irretocável
No alto da cabeça

Usa
Ainda
O mesmo penteado
Mas

Agora
Estão os cabelos
Prateados
E
Chumaços rebeldes
Escapam das ramonas
Por todos os lados


O sorriso também 
Sofreu avaria:
Mostra falhas

Os olhos verdes
Enormes
Reduziram-se:
Tanto que
A netinha
Volta e meia
Alarga-os 
Um a um
Com as mãos
Acende sua lanterninha
E
Fazendo as vezes
De oftalmologista
Fixa o facho de luz
Sobre eles
A despeito
Dos protestos da avó

Orgulhosa
Ufana-se a menininha:
Duas esmeraldas
Vejam só

(Duas esmeraldas
Os olhos de Marina)

 

 

 

 

 

 

LUZ

 

Muita vez
Era 
Pequena espiriteira
Que 
Nos alumiava
A vida:
Um pouquinho 
De álcool
Uma faísca
E a anunciação
De um Fiat lux
Bombástico

Não há 
Queima de fogos
Não há
Show pirotécnico
Que supere
Esse registro

 

 

 

 

 

 

POESIA COMBINA COM TUDO

 

Poesia
Combina com tudo
É coisa
Que nunca prescreve
Artigo
Que não cai da moda
Desde
A invenção da roda
Até
Os estertores da terra

Poesia
É carta curinga
No jogo repetitivo
No moto-contínuo
Da vida:
Não há fase
Não há sequência
Em que a mesma
Não se encaixe

Poesia
Combina com tudo:
Com vestido
Herchcovitch
Com roupa
De índio apache
Com lírios d'água
E do vale
Com violetas-dos-alpes
Borboletas
Do Camboja
Do Himalaia
Da Sibéria

Com crianças da Nigéria

É fio fino
De pérolas
A pulsar
No mesmo ritmo
Da jugular
Da artéria

Fulgura
Com luz do sol
Cintila
Com luz de LED
Rutila
Com luz da lua
Lucila
Com luz de vela

 

 

 

 

 

 

O PÁSSARO

 

Parece empalhado
O pássaro
Que
Ensimesmado
Pousa
Sobre o mourão
Da cerca
De arame farpado

Suas tênues penas
(Só as penas)
Sutilmente
Movem-se
Ao sopro
De uma leve brisa

Ninguém precisa
Perguntar-lhe
Em que pensa

Vê-se:
Com os olhos 
Embaçados
Fixos num ponto
Tenta decifrar enigma

Seria a vida?

 

 

 

 

 

 

MANHÃ DIFÍCIL

 

 

Minha cabeça:
Emaranhado de lembranças
Turvas
Pensamentos toscos

Difícil convertê-los
Em versos:
São novelos diversos
Com os quais
O bichano do tempo
Brincou

Água do café
Pulando na chaleira
Fumegando
Secando no fogo
E eu
Campeando maneira
De pôr ordem
No barraco mental
E/ou psicológico
(Tanto faz
Dá no mesmo)

Se ao menos
Abrisse
A flor
Da flor-de-cera

Se ao menos
Abrisse
A flor
Da flor-de-são-miguel

Ai
Este papel em branco
A me encarar
Olhando feio

Socorro!
Onde
Mesmo
O tal caminho do meio?

 

 

 

 

 

 

VITRINA



Não entro:
Da rua
Olho o brilho
Dos cristais tchecos
(Lustres
Móbiles
Estábiles
Luminárias
Bombonieres
Cálices)

Dezenas de nuances
Do translúcido
Ao rosa-shocking

Uma enorme
Mas frágil borboleta
(Não sei se pink ou lilás
Tanto faz)
Presa por fio invisível
Finge liberdade:
Flutua ao sabor da aragem
Dança pra lá
Dança pra cá

Tudo tão supérfluo
E
Ainda assim
Me comove

Esqueço que o tempo é ruim:
Chove

 

 

 

 

 

 

CORES E VERSOS

 

Quero
Ao menos
Um dia
Que seja todo feito
De cores e versos

Um dia sem temas
Sem assuntos
Sem eventos
Adversos

Os pensamentos
Submersos
Num mar de chá
De canela e maçã

Um dia leve
Sem ontem
Sem amanhã

Um dia florido
Assim
Meio Amsterdã

 

 

 

 

 

 

 

[imagens ©esculturas de giovanni strazza] 

 

 

Zélia Guardiano (Ourinhos/SP, 1944). Casada, três filhos. Formada em Pedagogia. Professora aposentada. Escreve contos, crônicas e poesia. Nos anos 90, classificou-se duas vezes no Mapa Cultural Paulista, na categoria Poesia. Integra diversas antologias. Publicou os livros Poesia combina com tudo (São Paulo, 2011), Trem-bala (São Paulo, 2012) e As horas (São Paulo, 2013). Em 2011, foi a escritora ourinhense homenageada no 3° A(o)gosto das Letras, de Ourinhos. Em 2012 e 2013, participou do 3° e 4° Salão do Livro de Presidente Prudente.