Temas que ferem as consciências são sempre delicadíssimos. A repressão no Brasil e a luta contra ela estão evidentemente entre eles. Sobretudo porque é memória viva. As personagens continuam em cena de algum modo, questões criminais continuam no ar, enquanto muita gente não percebe ou finge não perceber que a divisão entre maus está longe de funcionar como gostaríamos, pois há uma objetividade a ser considerada, além das nossas vontades, dos nossos sonhos e pesadelos. A ficcionista Guiomar de Grammont ousou tocar no tema guerrilha, focando portanto a região do Araguaia, e escreveu o romance "Palavras Cruzadas" (Rocco), que pode desconcertar, pois coloca em primeiro plano a questão das emoções, isto é, acima das paixões-obsessões políticas quando pretendem resolver qualquer questão moral por meio de racionalizações simplistas e brutais.

Em outras palavras, ela faz o que a literatura tem de fazer: põe o humano em pauta. Isto é, as contradições latentes ou não, que devem ser sufocadas em nome de uma ou outra ordem baseada nesta ou naquela ideologia cujo alcance muitas vezes está além da percepção daqueles que as incorporam, tornando-se joguetes de algo inominável. É com esse tipo de material que se cria uma obra literária, sobretudo. E é dessa maneira que o romance deve ser lido. Não como uma análise histórica ou uma reportagem romanceada. As lógicas ficcionais são de teor diferente e a verossimilhança só pode ser dada dentro da narrativa, ou teríamos uma grave falha artística, que no limite reduziria o romance a um texto referencial e ponto.

É esse um dos aspectos melhor realizados do romance, muito bem arquitetado com o uso de técnicas do suspense sustentadas até o final de maneira segura. A autora não se esquece do compromisso assumido, no caso, que é contar uma história capaz de prender o leitor em torno do drama de pessoas desaparecidas e o que isso representa para as famílias, considerando-se a expansão abrangente do conceito de vítima. Grammont optou por escrever com distanciamento. O estilo é neutro. A dramaticidade vem sugerida por pinceladas e o resto fica por conta do leitor. Ela não procurou mimetizar "Os Possessos", de Dostoievsky, felizmente. Evita qualquer tipo de panfleto. A figura extremamente discutível do Che, por exemplo, aparece de modo discreto como instrumento de um marketing tão desastroso quanto "bem sucedido" do ponto de vista dos manipuladores do poder. Mas a ironia sutil — e brilhante — está na presença de uma escritora frustrada (pelo marido e pelas circunstâncias), uma poetisa que escreve só para si, à sombra das estantes carregadas de clássicos.

A escritora Luísa é a mãe de um rapaz desaparecido que teria deixado um filho com uma companheira. A irmã do desaparecido é quem se incumbe de levar adiante a busca da verdade sobre o rapaz, a companheira e o possível filho, que não era tão santo ou herói como gostariam que fosse. Pois bem, com artimanha de mãe e de leitora dos grandes romances, ela se imiscui na trama da vida a fim de alterá-la. Ela se torna uma espécie de "coautora" na condução das personagens e, não tendo conseguido publicar nada em vida, fica com as últimas palavras do romance, num estilo melodramático e... verossímil. O estilo artificioso da poetisa não anula a dor de seu desespero e da sua insignificância diante dos manipuladores do poder. Para isso ela conta com uma ajuda inesperada, o que torna o cruzamento de palavras um jogo lancinante e insuportável: o que fazer diante da abjeção? 

 

 

 

 

 

 

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O livro: Guiomar de Grammont. Palavras Cruzadas. Rio de Janeiro: Rocco, 2015, 239 págs.

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outubro, 2015