*

 

Estar em pé diante da porta entreaberta

À espera de decidir o gesto que nos empurre à vida.

Estaria confortável em outra pele,

não tão marcada por ter amado.

Então, com um gesto leve de quem desiste

Abre-se a porta para que o corpo saia

E desfrute um pouco do  ar da cidade.

 

Árvores verdes, o mesmo céu azul, calçadas

Bem comportadas e seus lares.

Todos estão conformados com seu destino,

nenhuma angústia os consome.

Nenhum mal os atinge.

A felicidade conquistada perdura.

 

E há a porta: tento abri-la.

Vacilo entre pensamentos,

porém a verdade está na rua,

algo  que pulsa um ritmo estável.

Aqui dentro o mesmo turbilhão adormecido.

Nossas marcas, nosso choro

E a esperança como um sol

Que pede que estejamos vivos.

 

 

 

 

 

 

*

 

Ancorada nas pedras próximas ao cais

Uma mulher chora o pranto salgado de sua terra.

O lamento — como fado — curva seu corpo frágil

trêmulo pelo vento que esbarra na mata, como as ondas

encharcam a paisagem de névoa.

As águas coíbem o avanço da pedraria (imponente),

com seus braços que alcançam todo o litoral.

Aquele é o canto mais pesado que se ouviu — pensa o

homem que a observa.

Vestida de negro, os pés suspensos,

compreende ali sua ligação com aquela pátria

inerte na desolação e crise.

Memórias corrompidas pela arquitetura que se impõe,

rosto cindido pela tristeza que a corrompe.  

Queria ter a força de um varão

E a solidez daquele cais que a sustenta

Diante do abismo do oceano.

 

 

 

 

 

 

*

 

Procuro por temas importantes

Todos são engajados

E realizam algo frutífero para o mundo.

Procuro por temas importantes

Para não sentir menor na vida.

Para que meus inimigos me admirem

Ou ao menos se sintam impotentes

Com minha presença.

Não faço diferença — o que escrevo

É para aplacar o medo.

Não faço diferença — o que escrevo

É nada além que necessidade.

Temas importantes são trazidos à tona todos os dias

Pelos jornais, pela imprensa, pelo noticiário das oito.

À baila dos fatos,

A pequenez do que escrevo me corrói.

E ainda assim há que se temer por dizer o que se pensa.

A modernidade,

A farsa do homem repleto de certezas.

Temas importantes passam por mim como um coelho

Correndo num pasto verde.

Estamos perdidos:

Ainda assim nos olhamos nos olhos.

 

 

 

 

 

 

*

 

Pássaros cantam próximos à janela

E os sonhos duram séculos —

Tensão do verso que se anima em folha em branco

O corpo cede aos ruídos.

No sonho persiste a lembrança

De um anjo que  nos espreita

Cada amanhecer, ciclo contínuo, floresce na presença dos pássaros

E estes chegam mais perto para que não esqueçamos

Aquilo que persiste.

Deitar a noite,

Correr o dia,

Tudo aquilo que queima por dentro.

Pássaros cantam próximos à janela

E dentro do alvorecer um corpo pende

E sustenta o mundo.

 

 

 

 

 

 

*

 

A aproximação tal qual uma bomba relógio,

ele olha para mim com desconfiança.

Palavras em nosso vocabulário precedem a guerra

De vaidades cortantes.

Estamos no ringue: não se reconhece o limite

Do que é válido.

Dois entes que se equilibram entre pratos vazios

Que serão quebrados na festividade

Com fúria ao som de gargalhadas que nos firam por dentro.

Sabemos onde pisamos: cacos, navalha e pólvora nos animam por dentro.

Achamos graça no final depois de ter concluído o estilhaço

Do que nos corta,

Mutila

E sangra.

 

 

 

 

 

 

*

 

Em um dia limpo de novembro

Flores nos jardins

Cada folhagem com a relva mais pura

As nuvens brancas desenhavam seus bichos

E a criança adivinhava o que brotava de cima;

a pureza existe.

Ainda é tempo de acreditar no amor

E os pais lançam suas mãos ao bebê que aprende a andar

Sobre cimento áspero e rude.

Cães dóceis percorrem o bairro

E o olhar da criança entende a maquinaria das tardes.

Toda criança está à salvo.

Os adultos percorrem outras trilhas:

Linguagem que vacila e atravessa à sombra de qualquer desgaste.

 

 

 

 

 

 

 

*

 

Dias difíceis aqueles em que soltei as amarras do que me prendia

E parti em busca de um sonho que nem sei intuir qual fora

Diante milhares de pessoas anônimas à espera

De um gesto qualquer que me permitisse viver

Do que me engrandece e amedronta.

Sobraram palavras – estas se alastram

Recompõem um trajeto primevo

Que disfarça o pranto e a lástima de nunca ter desistido de mim.

Dói construir-me pouco a pouco e cada verso é uma conquista

Ao alcance de muitos:

Há um teatro no qual todos se despem.

 

 

 

 

 

 

*

 

Atravessar o arco da saudade

Recompor a espera pela imagem austera

Que me guarda na fé do sonho

Que me embala:

Eternizo sua memória sempre como prova

Do amor que protege nossas trilhas.

 

 

 

 

 

 

*

 

Sua imagem sou eu no espelho

Reflete aquele abraço amigo

Que sempre nos preservou

Do medo

Da dor

Da angústia da partida.

Nossa casa era seu chão

E parti.

Pude lhe encontrar ao distanciar-me

Hoje o eco do que escrevo

Nos salva da ausência

E lhe encontro em sonhos

Com um sorriso doce

A fitar-me:

Tornei-me o que sou.

 

 

 

 

 

 

*

 

Ancorar um navio pesado que flutua nas águas

Densas,

saber remar em rios cujas profundezas  refazem

O movimento da embarcação.

Receber todo esse céu azul que nos anima

Frente ao ar puro —

Invisível.

Planícies contíguas ao norte imóveis

Serenam.

 

 

 

 

 

 

*

 

Reina a paz.

Ao seu lado está a guerra.

Não há salvação:

Ainda assim nos chamamos,

procurando um no outro o que nos fere e consome.

 

 

 

 

 

 

*

 

Não sei pra que lutamos.

Um rastro de pólvora nos acompanha

E sua ausência é como o fogo.

 

 

 

[imagens ©kristian schuller]

 

 
 
 
Fernanda Fatureto nasceu em Uberaba, Minas Gerais, em 1982. É autora do livro de poemas Intimidade Inconfessável (Patuá, 2014). Bacharel em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero. Possui poemas publicados no Jornal RelevO; R.Nott Magazine; Diversos Afins e Mallarmargens. Integra com dois textos a antologia virtual Essas Águas, organizada pelo poeta e designer Vagner Muniz.