*

 

O silêncio do ar

parece rachar

o abandono

dos meus sentimentos

 

A cabeça conclusivamente vazia

ilha de fel feliz

resignada

sem soluções

sem as cercas dos dias

 

O olhar ao nível da terra

plenitude roxa

a arder de esquecimento

 

Nada ao lado de nada

é a pedra

a rigidez da sua lava

que afasta 

quem contempla o rosto

 

 

 

 

 

 

*

 

O lenço do orvalho

oh voz finíssima

que acalanta as feridas

cambaleantes ainda

da noite em claro

 

A boca da brisa

seduz meus ímpetos

por isso caminho

onde o ar faz ninho

por assim dizer me sinto

um espelho vivo

 

 

 

 

 

 

*

 

Luz eneblinada

quase faz com que o ar

se recolha dentro de si

 

Claridade insuspeita

egressa do cinza

rima hermética

inerte

num facho de sol

 

Minúsculo calor opaco

partículas de frágil resistência

onde a alma de pedra

boia

fita a neutralidade

de todas as coisas

 

e se apoia

 

 

 

 

 

 

*

 

Vivo desses pulsos do vento

são hastes que seguram meus dias

sem acontecimentos

 

Há um ponto de equilíbrio

na limpidez do vazio

onde vítreos insetos da paciência

perduram

 

Abro, às vezes, as portas do ar

apenas para imaginar

de leve, ousar tocar

o nada do tempo

 

 

 

 

 

 

*

 

A mais absoluta ausência de sensações

conduz a esta diferente estirpe

de delírio

circundução alinhada ao torpor

que a tarde pressiona

até o fundo da pele

até o fêmur arder

por nada

a troco de nada

com o nado a nada

 

O tumor no esôfago do vazio

lancinado diamante

por quem

as horas se derretem

as mãos pasmam-se

em míseras ocasiões até escrevem

com um pássaro na próstata

 

Toda a palavra então obtida

é pequena

quase nula

é suspiro indeclinável

articulação malhada

que aprende

nascer

e morrer por dentro do corpo

 

 

[Poemas do livro A Coerência Das Águas, inédito.]

 

 

 

Mera Intuição Em Ação Vegetal

 

 

Jogo setas de dardo no meu destino

não tenho nada melhor a fazer

Sei precisamente onde ele vai dar

destarte, dedico-me a não me mover

 

São tão lindos os pontos do vazio

tecem teias de lã no quadragésimo cigarro

perdem a noção da impossibilidade

O tímpano em seus próprios pés

ergue-se difuso no orgulho

em não mais distinguir

o orvalho de Bizet

do riff do Black Sabbath

 

Tudo é poeira que não empoeira mais

nem preciso retirar os dardos fincados

no que não me foi destinado

Tenho até bolinhas silentes

forradas em fugaz Araldite

as quais posso atirar no feltro

ou no fel que jorra da Mãe

quando assim a vislumbro

 

No espaço cheio de lembranças desabitadas

sorvo a consequência de estar aniquilado

o prazer em não querer compreender mais nada

a vontade com que tranquei todas as portas

 

Finalmente espero ouvir bem alto

todo o silêncio disso que chamamos Mundo

Juro que Nunca mais mudarei

de coisa nenhuma para coisa alguma

 

é tão sábio

o arbusto

que parado

espera morrer

 

 

 

[Do livro Pedaços De Jazz Na Noite Aberta, inédito.]

 

 

 

Deserto Incomodado

 

 

Li quase todo o mal do século, dissestes

indaguei porque insistias em ser

a última-única após os derrames

de tempo e incompatibilidades

 

Com olhos cortados pela cor roxa

riscos em perspectiva-De Chirico

um pouco de sangue nos cabelos

trazias o cadáver da Essência

 

(nesse instante

dez fuinhas de alcaloide

na porta do vento

a passar louco

sem nunca ter visto

a casa)

 

Mesmo assim achei que seria cansativo

ficar o dia todo com pêras na boca

andar com raízes nos bolsos

também me causaria desconforto

 

Dei-te assim adeus

sem pensar que havia te dado adeus

queria tê-la mantido entre as aproximações

e o vazio que reside no direito de sonhar

 

 

 

 

 

 

Analogia Ao Pé Da Metafísica

 

 

Me lembro passados tantos anos

— sem qualquer inflexão a respeito —

que estive alguns dias

em Chicago

completamente sem propósito

e sem nadinha a fazer por lá

 

Coloco agora

no meu jazigo de vida perdida

mais esta lembrança

que não ultrapassa o fato

de ter ficado dias a fio

num quarto de hotel

sem mesmo ter conhecido

patavinas da cidade

 

O deslocamento a outro país

esvaziava os rios, os ritos

de minhas hesitações

e às margens incolores

do nada

eu regressava à obscuridade da infância

 

Pensando bem

repeti este mesmo hábito

em outras capitais

— as mais cosmopolitas, em função de ofendê-las-

dos Estados Unidos

ainda que furtam-me as recordações

de seus nomes

 

Era algo

como estar suspenso, lasso ao ar

— com o vento prateado de Lake Shore Drive

a me curvar à terra-

a cingir, a vagar

apenas com uma relíquia da mãe

no calor do sangue

 

Ah! Maravilho-me em anotar

que me fartava

de uma realidade cheia de vazio

plena de dias parados

de charcos refletidos

no espelho verde garrafa do quarto

sem qualquer incômodo

com o real

 

As únicas coisas em movimento

nessas viagens

eram as moscas

que escapavam da música

de Sam Rivers

 

e em cadência de fuga

rente à primeira boca

em diluição de infinitos

despencavam

na puta que as pariu

 

oh lugar tão primeiríssimo

recôndito de bálsamo

sempre, abismo em ventre

disfarçado

de Chicago

 

 

 

 

 

 

O Incêndio Das Horas

 

 

O lento, inaudito embate

de nossas propositais solidões

Dois espelhos frente a frente

refratômetro de tempo sem lugar

 

A morada, a obstinada cruzeta

de dois olhares de águas

Dupla paisagem sem horizonte

declive aos ossos da comiseração

 

Se o desejo abstrai-se do habitual

catamos as brasas por ele imaginadas

Harmalas sopradas em bolhas de sabão

as sobrevivas se aniquilam em palavras

 

Troca de lírios de luz por miosótis de instantes

há sobrevivência e encanto no incorruptível

Lençol de clepsidra, espectro do que se foi

ai, relva-topázio na indagação do despertar

 

Assim essas solidões morrem

pela fala concreta ou, quiçá, abstrata

Por muito pouco ressucitam na beleza

de sangrar no branco dos dias

 

De Alexandrias reais a Alexandrias imaginárias

aprendemos a perder as míseras conquistas

ah, como Kavafis mui distraídos

não notamos os muros que a realidade construiu

 

 

 

[Do livro Musgo E Luz Do Dia, inédito.]

 

 

 

Orvalho De Lince

 

 

Oh água-sem-lugar,

tua força é ainda maior

aqui (!)

entre os que se despediram

e

os que ardem-de-viver

 

Fui daqueles

que sempre quiseram sumir

ser o pó da prata

num latido sem vestígio

 

Não mais o sou.

 

Oh água-sim-luar

a banhar-me

em plenas unhas da tarde

na essência de ficar

fincar-me (!)

além do remorso

 

no sorriso sobrevivente.

 

 

 

 

 

 

Luz Sobre Tabuleiro De Xadrez

 

 

Tudo que lhe peço é:

ponha o sol no copo, por gentileza

 

Deixe-me clarear

antes de tragar

o brancouro em silêncio,

silenciar o amor-espinho

 

que tão somente ao pé

da cachoeira-em-cristal-quente

sedado, escapou

de meu coração

 

Te peço: espera!

deixai que ele se misture ao musgo

ou uma criança possa

nele pisar

 

Destarte, Sim

estarei branco para beijar-te,

tecer a última lua de marfim

entre teus seios

 

 

 

 

 

 

Irradiação da Tumba Surda

 

 

O cheiro-breu do curral dos mortos

apareceu de brincos-de-veias

no Centro do sonho

 

Fiz de conta que não o vi

— qualquer coisa,

berraria que o odor é invisível-

minha não era

a inquietação, a obrigação

de ser morto

 

Mesmo assim (argh-aja!)

em pés-de-vela a luz Cega

veio ter comigo

 

Com os olhos da voz

gritei em vermelho-ave

mirei o fim do mundo

empurrando

com a respiração da fala

o último fantasma

 

e a sua faca.

 

 

 

 

 

 

Thanatos-Celeste Desmembrado

 

 

Cravei um rubi-azulíssimo

na derme-fralda da água

 

Ornamentado retângulo-circular

caminhou até minha fé

provou do grito-grama

todos os sóis que viviam escondidos,

soterrados na patética morte poética

que houvera sido a Vida

dos que um dia, em tantos dias

quiseram morrer

 

 

[imagens ©cheong-ah wang]

 

 

 

 

Fernando Naporano. Cursou letras em São Paulo e Lisboa, mas sempre atuou desde a adolescência como jornalista. Em Portugal, escreveu para revistas e fanzines musicais. Ao regressar ao Brasil em 83, ingressou na Folha Ilustrada. Fez parte da primeira equipe do Caderno 2, onde exerceu críticas na área de música e cinema. Escreveu para revistas e jornais como Trip, Bizz, Around, El Pais, Isto É, A-Z, Interview e muitas outras. Em 1984, criou a banda Maria Angélica Não Mora Mais Aqui, com a qual gravou três LPs. Em 1989, mudou-se para Londres. Entre 1989 e 1992, atuou como International Label Manager da gravadora Continental. Vivendo em Londres, além de escrever para publicações musicais americanas e inglesas como Amplifier, Popsided e Bucketfull Of Brains, tornou-se correspondente assíduo (por nove anos) do Correio Braziliense, atuando nas áreas de  cinema e, principalmente, música. (Entrevistou centenas de celebridades do mundo artístico, entre as quais figuram Marianne Faithfull, David Bowie, Richie Havens, Julia Roberts, Robert Altman e Spike Lee). Em Londres, produziu programas radiofônicos. Entre eles, alguns para o Brasil como o programa Zig Zag (Brasil 2000FM) e Magic Buzz (Rádio Ipanema, Porto Alegre). Regressou ao Brasil em 2005. Entre seus principais livros inéditos de poesia estão Abandono Devolvido, Estrelas De Gin, Apresentação Da Febre, Como Uma Lâmpada Na Pele e Nas Colinas De Valdemossa Com O Fantasma De George Sand. Tem um antirromance — também inédito — chamado Não Era Uma Loira Era Uma Garrafa De Cidra.