Diário de Claudius

 

 

I

 

Pensa-me um estranho dentro de mim. A cabeça não condiz.  

Sinto que sou múltiplo e afável, jamais tão sério, comovido, fugidio, definitivamente menos triste do que pareço. Não há esta longa cabeleira em meus devaneios. Não a estatura incerta, nem cicatrizes.

Mal o nome. Ou a voz que me expressa, que pensa o imaginado fala e devolve para ninguém a sabedoria que esqueci.

O espelho é uma janela na parede alva do hospital. Quero chorar, mas a imagem evita. Retorce a pele esticada na cirurgia, incógnita sob a máscara de ataduras que só existe no reflexo. Os olhos que fitam dali não são os meus. Vejo outro homem na outra cama de outra enfermaria.

Ele percebe quem o descreve.

Cria que a figura escreve-o no ato de espiar-se por cima dos ombros daquele que rabisca o ser que lê.

 

 

Fogueiras na madrugada fresca. Sombras lascivas misturam-se nas lonas das tendas.

A mulher dança no meio da roda. Suas tiras de seda roçam as nossas barbas. A fumaça digere os restos bêbados, na apreensão exausta da tribo. Os giros coloridos, as rendas assanhadas, as lantejoulas e os sorrisos macabros. Perfumes, horas de perfumes de origens inauditas.

Ela me pisca um olho e se afasta na certeza de que a procurarei mais tarde.

Os líderes gargalham com piteiras nos dentes, de olhos caídos, montados em pilhas de almofadas. Não demora até que todos adormeçam, roncando pelas bocas abertas.

Bruxuleiam jantares nas tabernas. Alguém se lembrará de acender os castiçais no palácio em luto.

 

 

De novo entre as paredes brancas.

Boquiaberto de sono, atento na impaciência dos enfermeiros. Não percebo as feridas que parecem enojá-los. Meus sentidos ficaram tão rarefeitos que adormeço e desperto sem notar.

A primeira vez chega numa espécie de memória sem vínculos. Um susto calmo que se traduz em essência de plena lucidez.

De repente passeio quarto afora, feito balão preso à minha própria barriga.

Vejo a mulher séria, de avental, que esteve comigo desde o acidente. Sei que a conheço. Mas seu nome, sua natureza, é tão intangível quanto familiar.

E sinto que ainda não desistiu de nós.

 

 

Sábado meu amigo entornou vinte e dois copos de aguardente. Não quis me acompanhar no coche. Veio a pé desde o cais, abrindo caminho nos blocos. Ainda trazia o ás de paus na aba do chapéu.

Teimando em se fantasiar de palhaço, comprou um gigantesco terno rosa, costurou um aro de arame na calça, colou bolinhas vermelhas em tudo, calçou galochas de gendarme. Arranjou uma peruca loira. Melou a cafuringa de sabão, despenteou-a com os dedos musculosos, chacoalhou até ficar toda esperneada.

Conseguiu maquiagem de circo e pintou o rosto de branco, mancha vermelha borrando a fala, uma boca desenhada triste. Recortou papel de embrulho, fazendo longas fitas que cruzavam o cordão por sobre as cabeças. Saiu traquinas e alucinado, chafurdando com prazer nos montes de confete, rindo aos entrudos como se a água e o perfume espargidos fossem o seu sangue.

 

 

Os textos de Pulsac narram tempos em que as pessoas sonhavam. Seria ele hoje capaz de sonhar? Mesmo alguém que escreve, que lê e especula, que se exibe nas paredes cobertas pelos escarros dos imortecidos? Poderia, mesmo ele, sonhar?

Depois que fugi do hospital, jamais sonhei de novo. Não me faz falta, imagino, embora fosse uma oportunidade para retê-la na breve consciência matinal. Para arrancar-lhe aquela voz que sorvi no desespero da fuga.

Precisaria dormir o suficiente.

As câmaras mnemônicas não me ajudam a reter semblantes, paisagens, nomes. Porque os semblantes, as paisagens e os nomes que preciso não estão gravados em qualquer central. A Rede não se atreveria a derramar Isabela pelos canais de uso coletivo. Os campos de anônimos ficariam lotados.

 

 

Espero-a na rede, oscilando ao vento que enverga os coqueiros. As crianças brincam na areia. Às vezes jogam torrões no avô lesado, só para ouvirem minhas censuras inconvincentes. Os últimos pescadores atracam descrevendo a borrasca. O horizonte é uma parede turva que se aproxima.

Ela chega vencendo as dunas fofas com os passos vigorosos. Beija nossos filhos e puxa-os à cabana. Levanto-me. Recolho o pai, a canoa, os petrechos que não podem ser molhados. Saio catando lenha para o jantar.

Enquanto acendo a fogueira, ela conta as doces atribulações da vila moribunda. Ouço-a como um aluno deslumbrado. Espero os dias inteiros por esses momentos, meu pretexto acima de todos os outros numa vida sem surpresas.

 

 

Cinco minutos de ascensão. O visor do capacete uma tela perfeita, onde o menor sinal luminoso revela meu rosto oval no interior. A ausência de limites me paralisa. Sinto-a nas rugas das digitais, nos pelos eriçados, na estranheza atônita da qual duvido.

Inflo de hipóteses impossíveis. Sei que alguém nos observa.

A esfera azul desaparece na colcha de brilhos ínfimos. Subitamente faltos da sabedoria chã, de laços e de barulhos, silenciamos. Aterrorizados.

Bólides de carne apertada, prenhes de vida, soltos pelas distâncias absurdas.

Tanto esforço para atravessar a película que separa a gota azul da imensidão. Para aprisionar essa energia misteriosa nos corpos vetustos. Para explorar o miolo das nossas mentes primitivas. Sem que cheguemos sequer a admitir que existe um mistério.

Começo a me cansar destas viagens. Não reclamo, porém, não me treinaram para reclamar.

 

 

Homens nervosos fritam pastéis no trailer improvisado em botequim. Os assentos são calotas amassadas. Os fregueses debruçam no balcão que ameaça desabar, jogando as garrafas vazias sob a carcaça de lata. Sussurram, mas o barulho e o movimento continuam nos lembrando o toque de recolher.

O garoto ao meu lado parece bonito demais para ter coragem de conversar com um estranho, na madrugada urgente, os tanques roncando por avenidas desertas. Deixo que fume, pinçando fiapos de erva na ponta da língua. Espio suas meias. Sei reconhecer um militar pelas meias que usa.

O pugilista é figura habitual. Passa por mim fazendo um gesto de comparsa. Não sei se pensa que nos entendemos ou se devo temê-lo.

Todos parecem conhecer meu segredo, a jovem que abandonei para preservá-la dos inquéritos, da prisão, das torturas insuportáveis. Espera-me nalgum ponto da cidade. Entorno o gargalo com o copo ainda cheio.

 

 

O jovem astronauta defronta-se com os vazios quiméricos. Já não sente medo ou melancolia, apenas o triunfo natural dos neófitos. Flutua pelo nada e absorve-o, numa ansiedade irrequieta que extravasa em piadas chulas.

O piloto, crédulo, diz que imagina uma figura telúrica. Um ser idoso, de cachos ruivos, másculo. Nos olhos, furacões incandescentes. Língua réptil. Gigante.

Rimos de suas fantasias. Digo que não espero o que não vejo. Ordeno que silenciem para não gastarmos oxigênio, mas o fato é que as especulações me assustam.

O oficial finge que dorme. Sei que também cultiva ilusões. Todos guardamos alguma esperança.

Convivemos demais com o infinito.

 

 

Os bocejos do rei sepultam as chances do espetáculo. A platéia os traduz em palmas de luvas frouxas. Depois da mesura, o maestro cambaleia pelo proscênio. O violinista, magoado, apruma a peruca e deixa o teatro.

Aproveito a algazarra para subir às galerias lotadas. Chamo-a detrás da cortina. Ela inclina querendo me passar uma descompostura, vê minha calça enlameada e cobre o riso com o leque. Tão jovem. Faz um gesto sereno para que eu espere mais alguns minutos.

O pai estica a bengala e fecha abrupto o camarote.

 

 

Salta alguém da fachada escura de um hotel abandonado. Rola para ganhar impulso e no outro pulo mergulha por um vão nos edifícios. A arma enfiada nas alças das costas, o gorro preto de lã cobrindo o rosto. Um mercenário sem presa.

Escondo-me entre as colunas, avaliando a distância do prédio. Como sempre, me perco do cálculo, errando pela constatação da própria dificuldade em lidar com qualquer estimativa. Ou nomes. Como se faltasse ar nos pensamentos.

Estela ainda não saiu.

Um letreiro pênsil range acima da minha cabeça. É a ruína do velho cinema. No interior devastado, nas clareiras de poltronas, flamulam as labaredas que aquecem e distraem os imortecidos.

O portão da garagem começa a abrir e atravesso a rua. Quando o veículo sobe à calçada, espio pelas frestas do respiradouro. É ela. Trocamos olhares instantâneos antes que acelere e parta.

As curvas são íngremes o suficiente para que alcancemos a mesma velocidade.

 

 

Os homens de capuz gesticulam, pois não usam o mesmo idioma. Posso adivinhar o ódio que sentem uns pelos outros. Uma gargalhada, latidos, tosses. Duas mulheres conversam, ninando bebês. Os lacaios batem no couro recente, esticado sobre o varal. Não secará tão cedo. Nas brasas quase extintas, o peixe de ontem.

As famílias, vestidas para a neve, sussurram os últimos preparativos. As crianças choram enquanto os adultos irritados se apressam, pegando bornais, chicotes, arpões.

Ela respira dentro da cuia, soltando vapor. Bebe o chá devagar. Olhou-me várias vezes noite passada. O gorro agora esconde as mechas lindas. Tem o nariz e as faces rubros de frio.

Sigo-a com respeito. Foge. Vira-me um sorriso.

Monta em seu trenó e açoita os cães, partindo pela manhã branca.

 

 

Arranco os fios e os tubos que me prendem às máquinas. Antes de abrir a porta, refletido nela por um segundo, vejo meus cabelos compridos, o rosto coberto de ataduras, as manchas espalhadas no corpo nu.

Gritos na sala dos enfermeiros. Soa o alarme. Barulho de móveis caindo, objetos metálicos, apitos nos aparelhos que abandonei. Avanço através dos corredores brancos, escorrego no piso brilhante, esbarro em cômodos trancados, forço janelas gradeadas, clamo por ninguém na ala vazia.

Descubro um vestiário e me escondo sob os cabides com as túnicas dos oficiais.

 

 

Descemos à planície para receber os invasores. Quatro patas a conduzi-los, monstros comedores de ferro. As espadas impecáveis. O fogo nas mãos. As barbas.

Faltavam-nos mínimas respostas. Antes que houvesse motivos para rezarmos, os estrangeiros ceifavam cabeças, abriam as grávidas, chutavam os velhos.

Aprenderíamos a matar?

Corremos pela fortaleza devassada. Ela se perde na multidão, e seu rosto disforme é a última imagem que guardo no horror derradeiro. Neblina e suor estragados nos olhos que não podem fechar. Nas mãos, o sangue dos próximos. Os gritos na maresia.

 

 

A cápsula explode no retorno. Minutos imensos de labaredas, estilhaços, vertigens, a queda abrupta na água.

Continuo desperto, plácido, ondulando de bruços no leito salobro. Como se respirássemos um no outro, eu no mar em mim.

O helicóptero chega para cumprir a rotina de escombros e corpos. Os mergulhadores ficam assombrados quando me vêem refulgir na espuma suja.

A enfermaria tumultuada, as injeções, os exames clínicos. As raspagens para limpar a cinza dos restos de pele inútil.

Chora-se o necessário. Ao final me odeiam. As viúvas e os órfãos, os supervisores, os médicos, as enfermeiras. A gente das ruas.

Não espero reação diferente. Horas de luto depois, contrariando o próprio funeral, chegar íntegro e forte. Inumano.

 

 

Quando me alistei na infantaria, ela pediu que a matasse. Depois queria partir comigo. Aos poucos foi se cansando de chorar.

Desço da cama e visto o uniforme. Beijo-lhe as mãos trêmulas, prometendo que voltarei. Ela afasta as peles e vem a meu encalço, batendo os pezinhos pelo chão de pedra gelada. A avó corre abraçá-la no alto da escadaria.

Monto, ordeno que abram o portão e saio ereto conduzindo o grupo. Sigo lamurioso no barro encharcado, com o estandarte apoiado no ombro. O padre açoita os últimos cavalos, para que não haja refugos.

O castelo some na chuva. Os flocos de gelo tenro cintilam sobre os muros. A neblina encobre o povoado e, no cenário branco, diviso apenas os tufos de fumaça das chaminés.

Guardamos as conversas para a longa viagem que se inicia.

 

 

Os nomes começam a desaparecer. Talvez seja culpa dos remédios que me injetaram. Ou dos sonhos, tão vívidos quanto as memórias. Ou do acidente.

Leio os manifestos que certo Stênio Pulsac manda colar nas paredes. Há algo de pueril nesses textos. Remetem com nostalgia a tempos de fábula que ele mesmo não viveu. O tempo daquelas fotos coloridas. Mas a revolta do sábio é exposta apenas para os imortecidos, as bruxas e outros fantasmas incuráveis. Ninguém ali sabe ler.

Os cidadãos saudáveis não se aproximam de panfletos. Só eles poderiam realizar as utopias retrógradas de Pulsac, só eles poderiam averiguar as denúncias contra a Rede. E, no entanto, a cidadania despreza ilusões.

Julgo prudente imaginar que o personagem do rebelde é uma invenção para atrair nefelibatas, mitômanos e colecionadores. Não seria a primeira vez.

 

 

Para diante de uma colombina que assiste o desfile. Ela abana o pescoço, nobre e enfadada, mas perde os devaneios virginais diante do palhaço capenga. Indo e vindo com o tronco inflado, mantendo os pés pregados ao chão, mede-a de cima, como se usasse monóculo. Estende a mão oleosa para tocá-la.

A família precipita-se no alvoroço, misturando briga e jogo, berros e rimas. Os escravos dispersam por apuros catadores. As amas choramingam, as velhas pensam desmaiar. Finjo que não conheço o infeliz, atravesso o desfile e presto socorro às distintas senhoras.

Meu amigo fantasiado corre pelos dançarinos adentro, driblando golpes, empurrando um clarão no bloco. Sai a tapas e vira folclore.

Eu ganho uma esposa.

 

 

Pedem que explique o fato de ainda viver. Não regressaria a mim mesmo, se fosse evitável. Jamais profanaria o decurso do tempo apenas por deleite. Mas ele nos leva aonde quer.

O estranho me observa sério do espelho.

A coisa dentro inchou de vazios. Transbordante. Espalhou memórias estranhas pelo corpo dócil. Não vou justificar o que desconheço.

Os técnicos esperam captar imagens dos meus sonhos. Dizem que os exames indicam vigília dúbia, mesmo com os sedativos. Perguntam sobre a mulher que me transtorna. Mostram as explosões dos sensores na tela.

Calo. Finjo colapsos para que desistam e saiam. Tento não dormir, mas a própria luta se revela parte da viagem.

Temo nova catarse. Uma exibição involuntária de poder. Transmutar-me em algo inaceitável. Ferir alguém. Não retornar dos transes cada vez mais freqüentes.

Preciso sair deste hospital.

 

II

 

Todos reconhecem minha túnica rasgada no meio das costas. Valho-me do temor que inspiro, e é o bastante para ser deixado em paz.

Aguardo sob a janela. O interior apagado parece um lapso de noite no mármore negro de fuligem, poça de nuvens guardando o único resquício de firmamento sob o ocre eterno do céu.

Ignoro há quantos meses fico ali, julgo que diariamente, para sorver o vulto. Chamo-a Estela porque soa apropriado. Cerúlea. De sorrisos perdidos quando observa os horizontes crepusculares. E crepuscular é a sombra que vela os olhos cujas cores, andares abaixo, ainda não decifrei.

Estela demora. Nos cantos odorosos vejo os primeiros imortecidos da noite, recolhendo comida, roupas, tocos de cigarro, combustível. Procuro não estorvá-los. Tampouco se interessam por alguém de cabelos compridos, sob um capote militar cheio de avarias, encostado na parede do cinema de outrora, encarando um edifício residencial. Talvez até se divirtam comigo.

Lembro as florestas dos sonhos. O verde indescritível das árvores. Os jardins das cidades, as casas térreas, as crianças seminuas à beira-mar. As praças de convívio, repletas de gente e de animais. Alguns conjuntos a leste há um antiquário somali que possui fotografias dessa época feliz.

Quando Estela descer, tirarei os óculos para saber se me reconhece. Mas também para vê-la sem o vidro turvo, guardá-la por uma noite ainda, enquanto posso lembrar. Sinto que esvai numa saudade pesarosa. A memória retorna em ciclos mais e mais rarefeitos.

Sirenes próximas. Viro duas esquinas agudas, sufocando a audácia nociva que me arruína o fôlego. Os vultos encolhem para eu passar. Esbarro de propósito nos corpos apertados, como se quisesse puni-los pelo passeio desnecessário.

Contorno a quadra e chego de volta à mesma calçada. Alguém fechou a janela. Adiante, um veículo se afasta pela rua estreita de pedra. Corro, grito, ele acelera, envereda pelo conjunto vizinho. Sigo-o a distância segura.

A placa antecipa a fronteira dos bairros. Chego por trás e me encosto à traseira do carro. Discirno os olhos refletidos espreitando meus movimentos. Holofotes pendem das fachadas, câmeras oscilam sobre as passagens estreitas.

Abrem o portão do bloqueio. Ela hesita diante do sinal aceso. Eu também aguardo, num contínuo impassível. Uma voz eletrônica insiste na guarita, Luísa desperta, acelera e consigo acompanhá-la. Corro com o veículo como se conduzisse ancas dóceis. O portão encaixa-se logo atrás e avançamos. Os ruídos crescem, as luzes ficam, viram, desaparecem. Retorna a penumbra amarelada que cobre as vias.

Não vejo a outra barreira porque me preservo agachado. O veículo diminui, freia, para, meu corpo bate na lataria. Vozes fortes. Ordens. Isabela abre o vidro. Sim, de uma Isabela é como ecoa essa resposta aflita.

Os seguranças continuam a inquiri-la. Preparo uma fuga desatinada, mas falam alto demais e o momento carrega uma estranheza infesta que me paralisa. Grudo nos ferros, de respiração suspensa. Os guardas começam a circundar o veículo, empunhando as armas, discutindo entre si e com a motorista. Pelo retrovisor lateral, vejo a raiva dela numa proximidade linda. Um dos homens estica-se para dentro do carro. Os demais gargalham. Vozerio entre passos de bota rascando nos paralelepípedos. O portão aberto balança e range ao vento. O motor assobia soltando fumaça.

As luzes de ré explodem no meu rosto. Os guardas gritam mais quando percebem que ela ensaia um arranque. Ainda não me viram. Estapeiam o pára-brisa, querem que Isabela saia do veículo. Procuro-a no espelho e amalgamamos nossos instantes de horror. Então compreendo que a moça não pode sair.

Por minha causa. Obstruo sua fuga. Espera que eu reaja, acelerando imóvel no rosto do obstáculo, balançando o veículo na iminência da retirada. Espremo o peito à lataria, consigo impulso, as pernas doem no ângulo fechado, os pés arrastam nas ondulações da pedra, as armas engatilham, ela avança lentamente. Não me olha mais e assim compreendo o sinal. Pulo para o lado, o veículo arranca, o guarda tropeça em meu corpo, Isabela alcança a via, faz um volteio abrupto, desembesta. Ergo-me e disparo pelo pátio.

Salto as muretas que afunilam a passagem, busco as ruas laterais, entro numa galeria de lojas extintas. Agacho na penumbra e confirmo que não me seguem. Os imortecidos observam detrás das pilastras, tiritando, já fedendo a doença. Encontro uma viela e corro até o final. Quase despenco em outra portaria iluminada e recuo, espremido às paredes.

Soa uma buzina distante. Retorno e caminho por um labirinto de becos. As sirenes e os guinchos dos pneus se afastam pouco a pouco, até sobrarem apenas meus batimentos alucinados. Os minutos passam e sinto que estou prestes a adormecer. Mas algo me atrai a um ponto qualquer do cenário.

A sombra percorre a fachada em completo silêncio. Escorrega, oscila, agarra nas ondulações dos peitoris, joga-se por cima da travessa, gruda na parede oposta, pendura um pouco, arremete de viés e para numa frincha de janela. Todo negro, imenso, apenas o brilho sutil da arma presa às costas. E os pequenos globos acesos na máscara, indicando que me analisa. Puxo qualquer coisa que alcance na treva. A estopa infecta desprende do corpo inerte que protegia. Abraço o cadáver e nos cubro juntos, sustando o fôlego, à espera do pior.

 

 

III

 

Um êxtase indefinido. Remexo no compartimento exíguo e me descubro num dormitório. Paredes nuas, lençóis novos, música sutil, temperatura amena.

O recipiente murcho, no alto da cabeceira, com resto de fluído incolor, não possui etiqueta. Na tela repetem-se padrões de paisagens lúdicas. Florestas, parques e lagos, cenas urbanas de respeito e harmonia, objetos e edifícios de linhas graciosas. Como naquelas fotografias do antiquário.

Retiro a agulha do braço com um puxão. Sento-me na cama e desligo as imagens. Tenho sensores colados na testa, no pescoço, no peito, na barriga, nas coxas, nas canelas, nos pés. Ao movê-los provoco uma sinfonia de apitos suaves.

A porta corre para entrar um homem forte, de crânio raspado e orelhas cobertas de brincos. Usa um avental branco sobre o uniforme de militar. Puxa a cadeira para ficar junto ao leito. Não inspira temor, mas tampouco se esforça para soar amistoso.

— Lembra-se de mim, comissário?

Não ouso responder. Ele consulta os mostradores da parede lateral.

— Os sinais estabilizaram. Vamos esperar os resultados.

Aperta um botão, a porta se abre e surge uma enfermeira. Vem a passos rápidos, mas paralisa na entrada, segurando a bandeja metálica. Espera a minha reação, lívida e ansiosa, como se eu devesse reconhecê-la. Sorri por um momento, ameaça falar, percebe a expectativa do oficial e prepara uma injeção.

Dispara o conteúdo na minha carótida. Troca o recipiente de fluído por um cheio, introduz novamente a agulha que arranquei. Mexe nos controles do painel, erguendo a cabeceira até uma posição em que eu possa recostar. Depois se retira quieta.

O homem tomba um suporte que desdobra numa pequena mesa de refeições. Tira do bolso do avental uma tela estreita, com um fio espiralado prendendo o marcador. Antes de sair, acende uma luz sobre meus ombros. As imagens retornam no painel superior, com a música suave.

Novamente só, observo o caderno deixado pelo médico. Deslizo páginas incontáveis cobertas por caligrafias diversas, todas minhas, eu sei, mas de épocas que não ouso reconstituir. Leio as últimas anotações.

 

 

Preciso reencontrá-la, enquanto ainda chego aonde mora. Não posso perder a fisionomia, o desenho dos olhos, os traços que a distinguem. Mal a vislumbro, Andréa imersa num redemoinho de abstrações. Tampouco a ignoro. Tenho ciência de uma Fátima escondida no prédio imponente, de uma Daniela terna que sigo todos os dias, de casa ao trabalho e de volta, de uma Helena corajosa que me reconhece e aceita, que me espera nos cruzamentos, que abre seu veículo diante da garagem.

Mas não há feição alguma. Nem um nome que possa justificá-la.

Pergunto ao médico sobre a mulher que estimula meu desespero. Ele não responde. Manda que continue escrevendo, que tente desenhá-la. Que rabisque todos os nomes que possa inventar.

Acontece que o mistério, incerto, deteriora-se mais a cada esforço.

Flávia, silente, é demasiado fugidia. E, Marina, esvai numa dança etérea, que a leva consigo, quando vou defini-la. Volta, Lívia extraviada, Carolina de dulçores que te sopram adentro, Mônica irretocável, de cabelos que já não existem, de olhares que não imagino, de timbres que não concebo.

Qualquer mulher poderia sê-la.

Quem quer que me olhe com um lapso de ternura possui a essência da tal Camila mensageira, daquela Mariana impoluta, de uma Fernanda aflita, idêntica às outras, da Priscila bonita e suave que fantasio sob a alcunha.

Ou nenhuma delas. Ou mesmo a enfermeira dedicada e carinhosa que não cansa de sorrir para mim.

Amo uma ausência.

 

 

Pouso o caderno e descubro o médico sentado logo adiante, as mãos nos bolsos do avental. A cabeça, ligeiramente caída para o lado, possui um aspecto familiar. Não suporto encará-lo. Procuro refúgio nas cenas bucólicas do painel e agora os cenários me parecem verdadeiros, recentes, vívidos. Posso jurar que estive nesses lugares.

A situação se arrasta por um suspense fraterno. Stênio Pulsac me observa em silêncio. Ao reconhecê-lo descubro que não tenho mais razões para sofrer.

As pálpebras pesam. Ele percebe e aciona um botão, fazendo a cabeceira descer à horizontal. A porta se abre. A moça entra, recebe uma ordem silenciosa, assente e para junto ao leito. Contém as lágrimas, afagando minha testa. Beija-me no rosto. Sua voz flui, cheia de reminiscências aprazíveis, enquanto adormeço.

 

 

 

 

Bêbado

 

 

I

 

"Segue impasse entre governo e petroleiros".

Abaixo, com respingos: "Veja quem forma a elite científica do Brasil".

O resto da página rápido absorveu, quente ainda, o sangue da puta.

E ele tão chumbado. Errático, bamboleante, aprendeu a distância que o separava do

chão e desceu como podia. Dedilhou os fios de cabelo que grudavam no asfalto. Partido em dois, o globo azul do brinco. A orelha, pequena e rosada, estranho, muito limpa.

Ao redor, no tronco retorto, uma baba escura fazendo constelações de borrifos. Mexendo em presunto desconhecido, nos cus do Judas, mais pra lá que

pra cá, procurando nexos depois do terreno baldio, nos piscares prateados da cidade, e acima, na lua gorda, bocarra prateada de azia

vindo, e voltou, e irrompeu de vez

o jorro nojento. Golfou numa só, expurgando a inhaca putrefeita, recolocando-se, choroso e acostumado, nas urgências imediatas. Aliás

revolteou

por que não aparecia ninguém ali, no

um, dois

terceiro andar?

A janela, ameaçando bote, vertia seu olhar de luz sobre o mato à frente. Na face escura do predinho, apenas pálpebras de alumínio opaco.

Teria caído?

Stop breaking down!

Ouviu que era mesmo um Stones velho de guerra bombando em pleno pardieiro de subúrbio, perdido no meio do nada perdido nas franjas do nada maior.

Contou de novo e três. De cara é certeza.

Terminou de espalhar as folhas abertas sobre o cadáver. A visão rodopiou e ele devolveu os cadernos à pilha de lixo abandonado no meio-fio.

— Aí! Ô! Em cimaê!

Vacilou no rodopio da vertigem

e notou-se naquele estado seboso: calor de razão na medula. Endireitou com ar meio falso de percepção das coisas, pronto para interagir com estranhos. Já que estava mesmo disposto a levar o assunto às últimas, pegou

uma pedra e chegou de queixo caído, feito no dentista. Mirou puxando pipa, mirou puxando pipa, foi na parede do prédio, errado e torto. Fez barulho. Estariam dormindo?

Shine a light on you...

— Aê! Terceirô! Ei! Tomá no cu!

Ia e vinha, abanando os braços. Revezava o corpo esparramado

com a música na janela

cada vez mais o corpo, a janela, cada vez mais a

puta, caída.

Porra

veio se achegando, acocorou quase triste. Quanto sangue. Menina, ainda. Seus olhos arderam, golfaram de cera quente. A garganta doeu e fechou.

Que jovem.

Nem tinha coragem de fitá-la, tão disforme, coitada. Pegou numa ponta menos grudenta do jornal e descobriu centímetros de carne exposta. Tampou como se ela soltasse um grito agudo na madrugada.

Atravessou a ruela procurando uma pedra maior, um

tijolo. Muito? Descartou.

Jogou com raiva um troço mais leve do que parecia, fez pouco estrago. Lata. Podre. Continuou procurando. Roncos de manada na cidade em ganas de escalar o precipício. Meio tijolo?

Meio tijolo. Mandou girando.

A coisa entrou que nem bola. Estrondo seco, bastante. Mas, depois,

quietude.

Avisar a Pinguim?

Idéia que, se não apenas estúpida, vodca morna. Quente. Com a Pinguim! Bastava daquilo por hora.

Confirmando que guardara a chave dela na carteira, fez que sim e a boca torta parecia responder: és boçal?

Era. Com a gordinha tarada. Gente. Precisava depois lembrar que certas coisas não se conta pra qualquer um. Espalhava na primeira. Virava buchicho, fácil, fácil. Caraca. Só ele mesmo.

Destrancou a porta do prédio. Esgueirou-se para dentro do saguão apertado, negro, cheirando mofo e decrepitude. Apalpou até esbarrar no interruptor. Saltou pela escada antes da luz apagar, velhaco, atentíssimo para não encontrar com a Pinguim de novo, caso descesse por causa do barulho.

Sem problema. A guria morava no lado oposto do prédio, muito acima. Além disso, tão chaperdada quanto ele, deveria estar dormindo de roncar e babar (quase que não sozinha!) e, continuasse assim, continuariam assim. Perto dela a Isabel virava modelo de grife.

No terceiro andar, roquenrol ecoando pelo concreto, independente de vizinhos abstêmios. As portas fechadas, aquela com filete de luz por baixo.

Tocou a campainha e tocou pela impaciência afora. Bateu, bateu mais, esmurrou. E ficou esmurrando até perder o motivo.

Absurdo. Mas no exato instante em que pensou largar mão e sumir, ressoou:

deixa de conversa mole, Luzia

deixa de conversa mole...

e o pacóvio sorriu, mareado, estapeando o vácuo para religar a luz. Itamar veio como um bat-sinal da loucura galáctica. Tomou impulso e chutou. Mais para trás e nem se apercebeu da própria figura deixando pegadas na porta alheia. Assistia ao mundo através de uma neblina estroboscópica, peixe no aquário turvo respirando a própria excreta. Queria só recobrar o laço com a matéria, tomar porrada, tiro, faca no goto, sentir-se ferido e real para purgar a visão da gordinha de quatro e o fogo de vodca morna.

Quente. Por isso não deixou nem um derradeiro foda-se antes de arrombar. Com música naquela altura os de baixo não poderiam mesmo

a janela escancarada, buraco de céu preto. O tapete, estilo persa, ocupando o encaixe quadrado, rodapé a rodapé. Um negativo do apartamento da outra.

— Ô de casa!

Entrou soando aplausos, calcanhando forte no chão para acordar os vizinhos, o síndico, a rádio-patrulha. Queria porrada, tiro, mordida, furo no goto amargo. Queria delegado, revista no apartamento da Pinguim, os dois em cana fácil.

O indicador girou, hesitante, procurando o botão incerto no aparelho de som. Calou-o num baque de soluço. Ergueu o tronco aspirando uma tonteira de queda livre. Tão absoluto, o silêncio agora lhe pareceu opresso. E na giração com que emergiu a mesa de canto espatifada pelo tijolo, farelos de enfeite, um hematoma terroso na parede, as mucas desiguais do barro vermelho. Catou-as, dificultoso, flatulento, segurando nas duas mãos. Levantou imitando surfista que busca prumo na onda. Expeliu os pedaços através da janela, ouvindo o mergulho fofo deles no mato lá embaixo.

Corredor pequeno, quartinho único. Chaplins tristes nas paredes. Dois colchões mal ajambrados num casal que acordou com pressa. No carpete bege, quase uma estopa rala e encardida, manchas de cinzas pisadas. Camisetas e saias e cobertores e toalhas no embutido branco cheio de estrias de fita adesiva. No outro armário, maços de cabides com paletós, gravatas, jaquetões de couro. Um capacete de motoqueiro. Mulher peituda no pôster de borracharia colado à porta. Sorriu gostosa ajeitando o pau, despertando uma quina de enxaqueca. Cogitou mastigar chiclete, sintoma de paz interior.

Quem tinha falado aquilo? Um psico-alguma-coisa, tio de um sócio pernóstico, bicha e cocainômano, que apresentou uma enfermeira doidivanas, a Isabel, cuja prima era a Pinguim, vulgo Eleonora, que fugiria com a grana do estacionamento. A bicha, não a gorda.

Mas o lesado então, pelo menos ali, flanando no lar de outrem, não lembrou toda a história. Só a frase

menos: a idéia nela contida: você mascar chiclete: paz interior.

— "Eu vezjo izso".

O eco do próprio sussurro o fez gostar de si mesmo. "Eu vezjo iszo." Montou na voz e teletransportou-se para a anciã Ribeirão Preto dos tempos sem leis nem sisos, de apuros isabéis e chutação desvairada. Enrolando os lábios moles de baba etílica, dizia "Eu vezjo iszo" enquanto o doutor tentava convencê-lo de que chicletes ajudavam a parar de

apalpou os bolsos vazios, procurando embaixo na bagunça. Achou um isqueiro roxo.

"Lá na Vila, Isabel, quem é bacharel não tem medo de bamba..."

Costumava cantar isso pra ela. E, claro, fazê-la rir era meio caminho andado.

Agora sério. Catou o isqueiro e sondou cigarros. Teve, no criado-mudo, Pall Mall inteiraço, vermelho, no lacre. Abriu, tirou, surrupiou o resto.

Aspirou, sugando fundo, e soltou com barulho.

Foi ao banheiro. Não dava nem para um boquete digno. Sabia-o por experiência própria. Ladrilhos marrons de gastos, o aquecedor roçando quem está no vaso, as cracas de sabonete nas curvas da pia. Mijou nelas.

Queria sair fora, antipático e desgostoso da vida. Confirmou no espelho: bebaço, molhado, puto. Abriu-o, jogando-se de lado. Uma escova azul e uma rosa no copo de vidro. Fio dental, lâmina de barbear, pincel de espuma com mecha mais clara no meio.

Fechou o armário, puxando-se de volta. Os olhos numa curva de buldogue, tenebrosos.

Capengou à cozinha. Dois copos americanos enxutos no escorredor. Dois pratos, saca-rolhas, garfos, colheres. Na pia, um mingau de formigas em orgia sobre restos de miojo. Seco, fedorento. Salivou e largou ali uma golfada de cuspe.

Na sala, defronte ao sofá de boneca, prateleiras com o televisor recatado, tomos azuis dos "Tesouros da Juventude" e, embaixo, precisava quase deitar para vê-los

coelhinhos de porcelana trepando.

Pelo chão, muitas fotografias coloridas.

Nada que lembrasse aquela micro-saia justíssima de couro brilhante, as meias pretas rendadas, os saltos agulha. A maquiagem borrada, quase maior que os rasgos no rosto.

O mesmo rosto. Comprovou, remoinhando as fotos. Os mesmos olhos há pouco arregalados. Não os vira tão verdes. Admirou-a num balanço de parque, sorrindo, casaco laranja e calça brim. Feliz, maliciosa, singela

surpreendida, naquela cozinha, virando-se de costas nuas

os dentes tão

cabelos soltos e molhados, em tranças, revoando pudicos

gente estranha, famílias, moçadinha bebendo, aniversário

não os vira tão brancos.

"O mundo me condena, e ninguém tem pena

falando sempre mal do meu nome,

deixando de saber se eu vou morrer de sede

ou se vou morrer de fome..."

Puta coisa nenhuma.

Virou-se para sair, tornejou

abaixou em zigue

zague, pegou uma foto qualquer, meteu-a no bolso de trás. Repensou a pantomima incerta e olhou ao redor, atiçado no delito, querendo mais segredos. Não custava procurar pelo menos um documento. Conhecê-la.

Mas lembrou foi de si mesmo, encagaçado pela ressaca emergente, já não querendo mais porrada, mordida, ferro no goto cru. Estava frouxo, delicado, se afogando num romantismo de trovador. E convencido de que havia algo a temer, pairando na salinha esfumaçada, um vírus mortal inoculado pelos invasores sóbrios comedores de carne louca.

A face anônima do perigo. Fardas. Jalecos. Aventais. Togas.

Debandou batido, largando

a porta aberta, a luz acesa, uma trilha de fumaça.

Desceu rápido demais e precisou deixar um fio de bile na curva do primeiro andar.

O mesmo silêncio na calçada. A vida faminta de si própria, colinas além, respirando os fossos negros entre piscares prata e bronze, vermelho aqui, amarelo acolá, verde repente. As têmporas opressas, trêmulo inteiro, com dor. Vá

"se foder, Isabel. Porra".

Talvez até lúcido. Merecia uma cerveja, depois do coletivo, se é que a civilização lhe permitiria arrematar a noite ingrata.

Sentiu gotas de chuva e encolheu de frio nenhum. Passou fugido pelo corpo, fazendo-se transeunte assombrado.

O pó da Pinguim no embrulho fofo. Apertou-o entre os dedos e ganhou embalo com a sensação promissora de estar acompanhado.

Por último virou espiando

na silhueta estendida sob o lençol de notícias

os contornos suaves da puta.

Não, não era mais puta.

 

II

 

Descobriu uma biboca bruxuleante no mar de casebres. Àquela hora, sob um temporal zangado, verdadeiro oásis. Amigo e humilde, passou por forasteiro e recebeu guarida. Verteu a primeira num desafogo.

O dono sumiu pelas ruelas prometendo trazer um cheio. Pediu que esperasse com a balconista, dando-lhe segurança e companhia. Ele aceitou fazer as vezes, embora planejasse declinar do bagulho. Fome e sono enchiam o saco.

Não ofereceria o pó, em respeito à Pinguim. E porque estava egoísta, cônscio do tesouro, antevendo a manhã implacável. Nem queria saber de voltar para casa.

O futuro, minuto a minuto, nebuloso. Minuto a minuto a foto da moça na grama, olhando o céu como se estivesse num teto.

Um copo d'algo contra a idéia do corpo da puta. Nunca bêbado, nem sóbrio, "nem ama nem desama, Isabel!" Lembra?

Lembra.

Espaireceu fumando, lendo o futuro na enxurrada lodosa. Em certo momento quis posar de útil e quando cansou percebeu que tentava abocanhar goteiras com um balde. A moreninha de pés azulados arrastava o rodo no chão de pedra. Só os dois no recinto.

"Acabo comendo".

Sem condução até às cinco e quinze. Dormiria lá? Na Pinguim, a algumas quadras tortuosas?

Nem ama nem desama. Era o antropólogo dela, fazendo escarcéu para os outros casais na festa. Isabel tratava o maridão como se fosse um estuprador de freiras bebês. Que nem ele mesmo seria tratado, logo depois. Aquela maturidade falsa e incoerente, a monogamia vagabunda, a libido polida na casca safada. Ordinária.

Por ela falavam as narinas quando, atentas, os risos as puxavam. Lembra, fraco? Um ao outro fadados, traga, sopra, sorriso, olho na boca no olho na boca. O corno ali. Antropólogo e corno. Bela merda.

Tre-ze a-nos

antes, unindo suas brasas no pulsar cósmico de um ponteiro gigantesco de segundos, tombando atados, sem escapatórias nem freios, direto para o abismo. Incapaz de amar? De fato, um pouco, era.

Eram.

Nada que os submetesse. A âncora de um medo indizível atada às personalidades de eucalipto, centenárias. Simples

calma lá.

Encostou-se com mais corpo ao balcão, já que era lembrar: simples

mente complementares, metades de um mesmo egoísmo, fazendo-se íntegros no encontro de ocos. Tesudos até mandar chega.

Ô, se lembra.

Dos bate-bocas indecentes, deles sós, da mentira, do cinismo. Encontros furtivos e riscos desnecessários. Carinhos bandeirosos, vexatórias indiretas, brincadeiras de mão, apelidos pornográficos. Motéis à tarde para que pudessem filar um prato executivo cortesia.

O corno torrando na universidade, vendo lousa e letra.

Perguntou à menina encharcada se podia pegar um pouco de amendoim.

Japonês, atrás do balcão. Não podia, mas pôde.

Abriu o freezer, uma gelada. No mostruário, um maço de cigarros. E uma canequinha do tal amendoim. Quando falasse amendoim da próxima vez ela entendesse.

A chuva começou a rarear. A cabeça assentava, saciada. Baforou um arroto de vodca morna, quente, gorgolejando, e cuspiu no asfalto esfumaçado. Olhou a foto da moça na grama, o reflexo do céu nos pontículos dos olhos. Puta nada.

Morta no asfalto. O cenário vacilou.

Num golpe arrancou a nota do bolso e conferiu que era menos do que devia. A garçonete passou com o balde cheio de água turva em direção à cozinha. Seguiu-a, pegou o balde, verteu na pia, ela gostou. Beijou o ombro salgado, o pescoço raquítico, puxou pela cintura, sondou a boca, ela empurrou forte, as unhas cravaram de leve e ele entendeu.

Saiu do bar assim mesmo, deixando perplexidade e prejuízo.

Venceu as calçadas com o desprezo afoito de quem possui o que fazer. Reuniões importantíssimas.

Chegando à esquina, acendeu um cigarr

engasgou no susto e pendeu para trás do poste.

Duas viaturas: fachos espalhados girando nas paredes do predinho. Vozes roucas nos rádios, baforadas de tédio, passeios a esmo. Pelo ritmo dos guardas pôde sentir que estavam satisfeitos. No asfalto sobrava apenas uma poça marrom. Ou talvez fosse o barro do matagal lavado pela chuva.

Algumas janelas exibiam seus platônicos da miséria de outrem. Solidários na ocorrência. Braços de farda apareceram para puxar as venezianas do terceiro andar. As luzes apagaram.

Teria de combinar com a Pinguim. Estiveram juntos. Ponto. Com a dura não tem essa de vexame.

E as digitais? Haveria?

Decidiu que não, rindo. Só o mijo na pia, né, animal.

O primeiro carro saiu, o outro ficou mais uns quinze minutos. Um senhor de paletó sobre o pijama veio conversar. Os policiais ouviram, impacientes, apertando as pontas dos coturnos em falsas bitucas, lucubrando pretextos.

Foram embora, agradecendo. O velho fechou a porta com chave.

 

III

 

Esperou três dias para reaparecer ali.

Mas, antes, os três dias.

        

IV

 

O boteco de sempre.

Abriu o tablóide no balcão e ficou pinçando esquisitices.

"Mané folgado sai no tapa com vovó por causa da esmola."

Folheava, antevendo os títulos. Morta nenhuma. Bonitinha daquelas seria primeira página certa.

— Uma de carvalho, faz favor. E a parcial.

Para conferência. Uma vida financiando o empreendimento e ainda tinham a desfaçatez de roubá-lo. Ou assim lhe parecia, e ele tinha sempre razão.

Aproveitou duas fichas de esmola do português e discou a Pinguim, mas o gesto ficou romântico demais. Ele odiava carão, foras, sacumés. Desligou libertando a chatinha, não sem antes imaginar tolices isabéis que abalassem o tédio e fornecessem gargalhadas. Abandonou a ideia de acordar a ex, de resto impossível, mas sentindo-se felizardo pela perspicácia. Tanto fazia. Outra?

Outra.

Amassara sem querer a foto, sentando nela, por insistência de algum solitário. Não gostava de ficar nas mesas, ilhado e vulnerável, enquadrando a bunda. Seu elemento fulcral era o vidro morno sob os cotovelos, as rodelas liquefeitas pelos copos, os ires e vires dos pedidos, as bazófias da turma. Assim nunca se achava solitário. Talvez só um pouco abandonado, cantarolando

sou tímido e espalhafatoso

torre traçada por Gaudí

para quem se dispusesse a

não

entendê-lo. Sem mágoas estavam todos ali. Os mesmos, regulares e previsíveis. Bom se sentir em terreno pisado. Sorver o ardume vomitivo que sai da chapa quando os moleques a limpam com vinagre. Os golos careteiros, os arrotos de lava corajosa. Os cigarros abençoados, bastões de esquiadores mambembes que se entregam às colinas da incerteza, para derreter sua neve num aconchego discernível como falácia de quenga.

A palavra já não o fazia mais lembrar a moça anônima. Fazia-o senhor dos hábitos, das horas vadias, do eterno adiamento. Fazia-o crédulo, refém das teorias conspiratórias do cabeludo com fiapos de salame nos dentes, fadado ao azar ambíguo de começarem a falar de mulheres.

Ou seja, sempre, dos passados isabéis. Nunca foi tão bom quanto aflitivo. O próprio bar assim: a segunda sem terça mas cheia de quartas-feiras cheias de recomeços.

O mistério, o canto, a quaresma, coqueiro.

Não cantaria mais.

Acordou bêbado, embora tivesse mandado três aspirinas com bicarbonato antes de cair. Bêbado mas inteiro, o cachorro vivo é melhor que o leão morto. Viu num filme.

A sensação de estar participando de algo importante diluiu-se nas horas úteis, pelas mãos sádicas de uma entidade imponderável que o queria eternamente à deriva dos pudesse-seres. Tomou banho, viu televisão e ruminou dois croquetes na padaria, estalando os chinelos nos calcanhares. Telefonou para a Pinguim, que não atendeu. Teve medo de qualquer coisa repentina, e fermentou o pressentimento por toda a trajetória esquecível do sol.

No começo da noite prometeu, severo e probo, não cumprindo às oito e meia, de volta ao balcão. Manteve a foto em cima da vitrine de acepipes, o papel já meio zoado, umedecido pelos copos. O rosto no infinito e vice-versa, a grama quase da cor dos olhos, não tivessem estes céu no cerne.

Bifes batidos, ovos de codorna enterrados em vinagrete, uma peça amarela de gorgonzola, fazendo fundo.

Eu digo sempre que melhor

que apodrecer ao lado dela

é ir mofando entre o torresmo e a moela.

Roda de violão: perigo delicioso. A certeza de ter mil vidas notáveis.

Um pensamento não surgia, mas vingava, sem estorvos, no âmago das letras que ele sabia de cor. E conhecia-as todas, enciclopédico, tradicional e saudoso. A idéia que o ameaçava saía daquela imagem, feito uma entrega autômata que lhe vinha entornando bebida à garganta: a beleza da morta.

"Moça de atributos", dizia o português das melhores clientes.

Linda. Os recheios na blusa mal erguida acima da cintura, seu umbigo feito sombra pela copa de alguma árvore atrás do fotógrafo.

Ali aprendeu que o ciúme era igual a uma ressaca sem curas possíveis, um cagaço que o enfraquecia mais do que a gana de apanhar. Bebeu-o naquela madrugada, julgando-se o descobridor dos anéis de pólvora que levavam a brasa até seus dedos amarelos.

No dia seguinte era a resultante, ou melhor, suas cinzas. Um poço angustiado de vontades. Só queria correr ao encontro dela, poder assisti-la sem ser visto, horas a fio, até que dormisse, e então ficar mais um pouco, ter sono e desaparecer. Poder ouvir sua voz. Inalar o cheiro nos cabelos, nas costas das mãos. No pescoço. Nos pés.

Estava morta? Era o de menos.

 

V

 

Se tivesse planejado, não iria com as roupas de uma semana, os caraminguás insuficientes, os cigarros esmagados no maço. Foi de inopino, quando ficou inviável não ir.

Andou e andou, que nem trabalhador zumbi, para economizar os mil-réis do coletivo. Uma mulher varria a frente, expurgando a calçada arenosa. Mancha nenhuma no asfalto, mas ele continuava enxergando alguma coisa ali. Cumprimentou a faxineira com pose de morador.

Galgou as escadas e espreitou o saguão minúsculo. Tudo hermeticamente silencioso, maciço de vidas invisíveis. A porta sem trinco nem meio batente (os fiapos de madeira arreganhados), coberta pelas faixas amarelas da perícia.

Os olhos-mágicos espreitando, túneis de paciência delatora. Perdeu a coragem.

Meia volta, sem olhar, insuspeito. A Pinguim?

A Pinguim. Subiu até o nono.

Tocou duas, três, mil vezes, forçando o barulho caprino que ela tanto odiava. Sabedor, bateu de leve com os nós dos dedos (tun tun-tun-tun tun, tun-tun), chamando baixinho. O farol redondo escureceu.

A baixinha roliça, de arregalar bravio, faltou só despi-lo ali mesmo. Beijo seco, de fissura, esmagando os melões soltos debaixo da camiseta. Bateram a porta num coice, giraram apartamento adentro e caíram de joelhos, debruçados na mesa de vidro.

Três horas depois: o nariz latejando aspereza, a garganta morta, as pontas dos dedos faiscando marmóreas contra os objetos. Um tinir longínquo. Ondas de fervor e de ameaça que não existiam. Precisão de falar, andar, fungar, mexer, fumar outro, correr os canais da TV, de novo outro, falar mais, rir um pouco, vodca?

Vodca. Morna.

Desaconchego no sexo exausto de fricção, a pele vibrando nas bocas mole-duras, as arcadas palpitando com mordidas que se mordiam. Frio e calor em lados desiguais da alma.

Duas e meia. Sem busão. E ela vinha deitando seus lábios em bico molusquento, as mãos procurando corpos novos no corpo ainda suado, catando pelos nas costas, eriçando tudo menos a vontade.

— Dorme aí, gatinhô, puxa vida.

Jogou-a no sofá. Sem reparar nas dobras da barriga curva e na pelagem loira que subia do ventre, apoiou os pés dela nas suas clavículas. Encaixou o pinto meio mole, balançou e sentiu bem a fervura, satisfeito em se reconhecer ali dentro.

Recomeçou, exato, paciente, no consolo de achar que fingia, exibindo-se másculo e desejável, com a estranha sensação de que a Pinguim até que trepava bem.

 

VI

 

Cinco e quarenta e dois no rádio-relógio. Os fluídos volatizando púbis, umbigo, peito, sovacos, nariz acima. Teve de escorar na parede, as pernas bambas, para vestir a calça. A Pinguim dormia, finalmente, de bruços no sofá, desengonçando a nudez feia. O abajur de cúpula colorida velava os escombros da batalha entre as fumaças e os cheiros corporais, sem vencedores, nauseabunda.

Um clarão sutil, só perceptível quando se sabe das horas, antecipava a manhã fria na cidade ao longe. Tudo absolutamente ressonava. Ela não acordaria nem debaixo de murro.

Seria demais roubar o restinho da vodca? Levou a garrafa.

Abriu a porta com zelo. Outra visada no apartamento azul escuro.

E um pozinho, vá lá. Coisa pouca

no alumínio do cigarro mesmo

o grosso fica no vidro. Não dará pela falta. Saltitou suave até a cozinha, cheio de remorsos. Despejou a vodca num copo de plástico, deixou a garrafa vazia na pia e se sentiu correto. Saiu naquela suspensão de ouvir seu nome lá dentro, mas não recuou nem ficou dando chance.

Equilibrou o copo no terremoto da descida, bebericando para baixar o nível. Soltou as tiras de fita presas nos batentes. Empurrou de leve a porta, mas ela não andou. Empurrou

mais, e os quebrados rangeram. Lambendo nos dedos o líquido salpicado pelo empuxo, deu uma catada certeira no interruptor. Mas foi tanta clarividência que se arrependeu e desligou. Permaneceu por segundos num breu cheio de faíscas, recobrando o costume. Abriu a janela. Os postes da rua e a certeza tênue do firmamento nu revelaram as caixas de papelão, grandes cubos marrons no meio da sala oca. Haviam levado o sofá, o tapete, a estante anã com os livros e os bichinhos fazendo amor sacana.

Driblou os volumes e passeou pelo apartamento, pisando espaçado, antevendo sem ver. Quarto vazio, câmara de ecos. Cheiro de poeira antiga. E de cigarro amassado. Acendeu um e aproveitou a chama: nada nos armários escancarados. Tampouco papel higiênico, toalhas, sabonete no banheiro. A pia da cozinha imaculada, a geladeira muda secando aberta.

Sentou-se entre as caixas, olhando em volta, sondando ruídos. Querendo mexer, querendo já ter ido embora e mexido em tudo.

Abriu a abas soltas e meteu as mãos num conteúdo fofo. Pano leve e sedoso, estampas de flores assustadas. Cheirou-as, fungando até formigar. As meias, delicadas, passou na ebulição do rosto. Vestidos, camisetas, malhas, cada peça dobrada com zelo de passamento. Blusas. Echarpe. Um barrete vermelho de algodão. Vestiu-o.

Inclinou trazendo outra. Que horas seriam? Bateu em coisas duras. Pôs-se de joelhos, rodopi

ou até fincar o eixo. Riscou um fósforo. Batuque aflito no pescoço.

Envelope manchado, soltando uma algazarra enjoativa de perfumes. Cacos de vidro no interior. Um cachorrinho de pelúcia embolorada. Uma tiara. Estojo de madeira esculpida: pincéis de olho, batons, espelhos, pinças, alicates, lixas. Pasta entufada, fotos e cartões postais. Relógio parado, uma e trinta e nove.

Selvas de pulseiras e colares tilintantes e miçangas. Escavou o novelo movediço apertando e brincando na massagem de arestas e argolas e pontas e esferas.

Largou a distração. Amanhecia, quase céu, pássaros, latidos, um possível ronco de motor. Apoiando atrás para subir, ficou de quatro e foi vertendo os objetos no chão. Descobriu uma caixa de sapatos. Chacoalhou, pesou, apalpou a solidez dos volumes. Rasgou a etiqueta que vedava a tampa. Forçou a vista embaçada para discernir o conteúdo

levantou num pulo de choque

e saiu imediatamente, abraçado ao tesouro, com o gorro de saci na cabeça.

 

VII

 

CARNAVAL 89

 

Ela veste uma bermuda jeans muito curta, a barra desfiada contornando o diâmetro das pernas. Tênis brancos, pequenos, sem meias. O rosto de passeios suaves, contente, vermelho e suado. O batom, na primeira vez, cor de uva.

Um sol inca dourado sobre a camiseta de seda branca. Olhos erráticos, sérios quando alheados, estranhos no flagrar. Mais zoom neles e desviam, vivazes, fazendo que não querem.

Sua nuca no meio das tranças. Vira-se, pálida, talvez abatida. Polpas cansadas sob o lápis cleopatrino que a faz lúbrica e esguia. Um bico de beijo, agora róseo.

Multidão alvoroçada. Serelepe, a moça vai buscar alguém no meio das gentes. Acotovelam-se, alguns sem camisa, garotas enfeitadas, cabeças estranhas, ela para olhando em volta, o abelhudo costumeiro surge e acena.

Um grupo de mulheres cantando num êxtase incompreensível. Metais e bumbos atravancados misturam-se em explosões de roncos. Barulhos demais para discerni-los.

Semblantes alheios nos grupos de conversa e pândega. Um beijo cheio de línguas. Ali um gordo baba a cerveja da garrafa, aqui alguém tampa o rosto. Fecha nos rapazes, bolotas de pano enfiadas nas bocas, a gargalhada chacoalha. A voz dela, próxima, suas faces brilhantes, os lábios assados, olhos perdidos nas órbitas.

Traz um casal de piratas, lesos e safados, que sai correndo para a balbúrdia. Ela fica sozinha, tonta, sem graça. A lama de copos plásticos, bitucas e serpentinas, pés descalços, confete, abanadores de papelão.

Mexendo a dentição perfeita, inaudível, aponta. Multidão de braços para cima, saltando sem ritmo, luzes roxas e amarelas no fundo esfumaçado.

De mãos na cintura, ela finge impaciência. Um homem chega por trás e encaixa. Seus músculos são desproporcionais para aquela fragilidade alva, franzina, delicada. Aperta os olhos dela, como se fosse esmagar-lhe o crânio. Enfia o rosto sob a orelha

passou à frente.

Não. Jamais: veria tudo.

Voltou, congelando no rosto para que o olhasse, trêmulo, quase fechando os brilhos verdes, guardados num contínuo de paralisia.

Entreolharam-se desde seus mundos inconciliáveis. Ele de gargalo nos dentes, soluçando os goles temerários. E, quer saber?

Deixou que vivesse mais um pouco.

Então viu quando o brutamonte lambeu o pescoço e o lóbulo, quando a girou num rodopio delicioso, quando a jogou no ar para catá-la feito bailarina. E viu quando se beijaram, fundo, lambidos, eróticos.

Disposto, hipócrita, a fazer daquela a última vez.

 

VIII

 

016

 

Samantha rola escadas abaixo, empurrada pelo pai bêbado. Entra em coma profundo. Um rapaz apaixonado, gênio da computação, instala um poderoso chip no cérebro dela. A moça renasce numa criatura abominável de força inumana. Há uma velha, das vizinhanças, que coleciona as bolas de basquete que os garotos deixam pular no quintal. Samantha vinga-se das crueldades da velha explodindo sua cabeça com uma das bolas. No ápice da violência, acaba fuzilada pela polícia. Mas algo diferente surge no interior do cadáver recolhido ao necrotério.

Comerciais.

Eu tinha esquecido que trabalhar cansava tanto...

É. Meus pés estão ardendo nesses sapatos.

Vamos conversar com o doutor Fúlvio ainda hoje.

Sem falta. Imagina se o Thiago sobe e vê a gente ali?

"Coisa linda é mais que uma ideia louca

Ver-te ao alcance da boca

Eu nem posso acreditar"...

Inflou de coragem e lançou mão do controle remoto.

Rangel veio da cozinha com duas garrafas e deixou uma na mesa da sala. Quieto e respeitoso, mordomo fantasmagórico, sumiu de novo para o quarto, como se aquele não fosse o seu apartamento.

Ele sabia do estorvo, mas o Rangel tinha videocassete. E um coração gigante, de palerma sempre feliz. Ouviu-o rilhar a cama, até nisso cuidadoso para não melindrar o comparsa.

O Golpe no Paraguai, edição exclusiva.

Tentou adivinhar de quando seriam aquelas imagens. O apresentador era muito jovem. As vinhetas, de antanho. As propagandas, inverossímeis. Pôs tudo para correr.

Só não havia jeito de empurrar a sensação molesta, parecendo vômito engolido pelas narinas, azedando as respirações. Ergueu o tronco exausto, cigarro apagado nos lábios, e foi ter com o fim de tarde nublado.

Vapores nas ruas, o vidro embaçado com o calor de dentro. Olhou seu reflexo estranho, de gorro vermelho pontudo, misturado na alucinação urbana que ele fitava do sexto andar. O calor de dentro.

Abriu a caixa e pegou a próxima fita. Acendeu o cigarro, quase sem tragar, apenas para tê-lo fumegando na vista. Sentou-se de volta no carpete, a cara grudada na tela.

 

IX

 

08 MALUCA 1994

 

Deixou-a paralisada, os dentes maravilhosos ondeando na tela por minutos. De repente um programa surgiu berrando e ele se descabelou para achar o

ela rindo. Alguém muito importante a filmá-la, tremelicando seu rosto. Alguém que a faz corar, simpática e rechonchuda. Já bem mais madura, os olhos espertos, de um fitar entregue. Pousa o indicador no bico e se afasta na casa luxuosa. Tudo meio róseo sob o sol de frente. Volta embalando um filhote adormecido. Alisa-o, maternal. Sussurra.

Fala oi pra câmera, fala. "Oi, câmera! Eu não sou uma fofura?".

Retornou à sua vinda com o bicho. Duas, três vezes, quatro, tenra e tola, quase mulher completa, apetitosa. Minissaia escura, casaco preto masculino, de motoqueiro.

Forçou uma derradeira repetição, soprando junto as palavras, rindo com o riso, apertando os dentes ao notar minúcias inéditas.

Então a libertou num gesto solene.

Mesa de bar lotado e caótico. Rugidos de música exorbitante. Garçons depositam copos e mais copos de chope. Cinzeiros fumacentos. Sua voz, perdida na confusão, forjando solenidade.

Ao vivo e a cores para todo o país.

O riso evidente dos outros. Procura, brusca, rodeando as conversas. Assenta num rapagão corado que entorna um jarro de líquido amarelo, banhando-se de espuma. O som do ambiente uma só constância gutural.

Malucá!

É...

O Guzo! Rápido!

...filma o Guzo, filma o Guzo!

Encontra-o. Dentaduras cintilam na atmosfera sépia. Alguém deixa cair uma bituca apagada em seu copo, os outros explodem, o tal Guzo não percebe e continua bebendo.

Uma loira, de cabelos muito curtos e espetados, não gosta da brincadeira. Toma suco e abana. Procura alguém por cima das cabeças.

As toalhas manchadas, pontas de cigarro, cinza, copos vazios, pires empilhados. Um dedo girando a aliança na outra mão. Canudos mordidos. Fósforos extintos. Uma rosa de guardanapo, o caule retorcido, picotes diversos de seda branca.

Palma gigante escurece a imagem.

Os músicos no salão repleto. Aproximam, afastam-se, param dominando o quadro. Violão, atabaque, pandeiro.

"De tudo que é nego torto,

do mangue, do cais do porto,

ela já foi namorada..."

Fez a circunstância escorregar, afoita, numa confusão de ricochetes e vibrações e ademanes desinteressantes. Os tons mudaram de repente, ficando

granulados, suaves, oníricos. Um alpendre vazio. Das lâmpadas, manchas borradas, escapam siriris. Melodia romântica insinua-se de algum lugar distante. Grilos, sapos, conversas remotas, animadas. Uma silhueta na penumbra indecisa.

De vestido brilhante e garboso, o colo exposto, ainda pouco mais que aparição opaca. Taça borbulhando entre as unhas grenás. Cigarro longo nos dedos que acenam. Pede para não ser filmada.

Atônito, já meio borracho, decifrou a elegância da figura por segundos. Maquiagem carregada, cachos negros escorrendo junto às faces rubras de blush, pingentes, um colar sutil que ressaltava a tez lívida.

Você não para com essa coisa. Tá filmando mesmo?

Faz uma declaração de amor.

Declaração de quê?!

Riso alto, solto, gostoso. Balança as coxas sob o pano que desvela seus volumes. A barra nos joelhos, montículos de pele rosada. Canelas reluzentes: descalça.

Zoom nos pés juntos, nos dedinhos formando vírgulas, nas minúsculas unhas pintadas.

Sobe, desliza, brinca no côncavo do umbigo oculto. Nos seios redondos que seguram o vestido. Fecha no rosto feliz que solta uma baforada impaciente.

Declaração de amor pra mim, poxa.

Paralisou as covinhas afundando, a meio gesto de exibir um brilho simpático entre elas.

Tenta escapar, constrangida e falsa. Encosta no batente.

Eu não sorri.

A luz de trás ofusca o instante mágico. Ela some num vapor luminoso que borra a imagem. A câmera faz movimentos incertos, aproxima-se, o foco oscila até fixar o riso. Muito próxima.

Faz...

Não.

Faz uma declaração pra mim.

Te amo.

Retrocedeu.

Faz...

Não.

Faz uma declaração pra mim.

Te amo.

Pausou nos olhos sonsos, quase fechando.

Voltou.

Não.

Faz uma declaração pra mim.

Te amo.

...claração pra mim.

Te amo.

Te amo.

Te amo.

Eu também, ele murmurou, de olhos rasos.

 

X

 

Encostou as pontas dos dedos na janela fria. Como se quisesse despertar a madrugada barulhenta do pesadelo viaduto.

Deixaria uma graninha para o Rangel, quando entrasse alguma. Um mártir, o Rangel. Ela o detestava.

"Mas vocês rimam, Isabel". Lembra?

Infelizmente.

Decidiu não aporrinhar mais o coitado. Barulhos absurdos subiam do tráfego na metrópole infame. Exibiu-se rijo e severo para os carros indiferentes. Obelisco erigido à manhã vindoura.

Cala a boca, Isabel!

Porra.

Gritaria novamente, se pudesse antever a separação? Ou no fundo queria mesmo aquilo, um pretexto, uma chance de escapulir da barca furada? Mas e a vergonha? E o copo de chope gelando na cara um tapa de dia seguinte eterno?

Os faróis não paravam de passar. Ninguém queria vê-lo.

Chorou que nem um filho da puta por causa dela. Agora toda balbúrdia

roncos na vidraça

murmurinhos chocados no bar da memória

completavam-se numa única reverberação de angústias familiares. Um fosso que a janela separava a muito custo da loucura.

Duas lágrimas chegaram juntas aos lábios franzidos. As mesmas duas lágrimas que escaparam quando Isabel se levantou e abandonou-o, molhado, trêmulo de afrontas, diante de comensais perplexos. Jamais voltaria.

Mas descobriu um jeito de o notarem. Arrancou a fita do aparelho e escancarou a janela. Arrumou a carapuça no coco zureta. Mirou volteando um laço imaginário e

mandou: o volume desenhou uma parábola, sumiu no ar gelado, espatifou-se no asfalto em pedaços quicantes. Os pneus velozes trituraram as manchinhas de plástico.

Justo no apê do Rangel, que idéia mais imbecil. Outra?

Outra, fácil. Da pilha na mesa.

Fraca demais, perdeu-se debaixo do elevado, num estrondo surdo. As trevas berraram e ele ergueu-lhes o dedo médio.

Animado, foi buscar uma garrafa na geladeira, pé ante pé, rindo consigo. Entornou a cerveja, espantou a cascata do queixo, soltou um arroto aos motores que o desafiavam. Ah é?

Puxou a fita do carnaval, pesou, estimou e arremessou.

O projétil foi caindo

vagaroso

bateu numa via quando o carro despontou na oposta, fez um pequeno arco à frente e explodiu na lateral que passava. De susto o motorista guinou, derrapou até a sarjeta, voltou girando, tentou endireitar, outro vinha correndo e pau. O próximo reduziu, desviou por pouco.

Desfrutou as silhuetas gesticulando, o princípio de controvérsia, a correria para impedir novas colisões, o rebu armado. Calculou os alvos girabundos, virou-se para apanhar munição na caixa e nisso o vulto

do Rangel, boquiaberto, as mãos erguidas numa súplica desesperada:

momento caótico de explicações

que não havia, pulsando

no intervalo perplexo que o susto precisava para

desmoronar no gesto calmo

garrafa sobre a mesa

nas catadas aflitas

cigarro, fósforos, moedas

e nos passos quietos até a porta.

Fechou-a com extremo desvelo, pois não confiava naquele frenesi de miragens e raciocínios abortados: era possível que o Rangel ainda estivesse dormindo no quarto. Não queria acordá-lo à toa.

 

XI

 

Usava a gravata de apoio para pedalar nas coisas, pendurado no bíceps anônimo, suspendendo um

!

raivoso, salsicha esgoelada, soltando baba azeda.

Gargalhadas no goto, diva sensível, pensava esconder o orgulho ferido com a rispidez de tão inculta platéia. Estrebuchou como epiléptico até cair de queixo, mesureiro, sob aplausos de bofetes e pescotapas gratuitos.

Ovacionado, tentava emergir

tá difícil pra todo mundo, porra

e se feria nos ladrilhos

ô, nego chato

arrastado de bruços

joga na rua

quebrando as unhas

leva o filho da puta pra

no calçamento áspero

fora daqui senão eu

queimando as carnes quentes e lascando os ossos rebeldes nos cacos do trajeto

ainda faço uma besteira.

A dor o pôs de joelhos antes do primeiro chute

?

que passou raspando no ouvido.

Repuxou a esparramação gosmenta da sobrancelha para lembrar o resto do monólogo. Mas nem adiantou retomá-lo, porque o segundo chute acertou

...

gritando no oco do catarro

os pulmões.

Tudo aquilo passaria. Mesmo que o proprietário da baiúca não ajudasse, mesmo que ninguém viesse acudi-lo no matagal, estava decidido a recomeçar

mira a cabeça do lazarento

sóbrio verdadeiro novo em folha

acaba logo com essa merda

e miraram

(

a cabeça).

Não padeceria mais. Por ninguém. Retomaria as rédeas do cotidiano vulgar

levanta de novo que eu te furo

com agradecimentos solenes aos distintos espectadores. Rogando perdão pelas mentiras, pelos exageros e falsos testemunhos. Devolvendo os maços filados. Pagando cada conta pendurada. Nunca mais poetas vilões. Nunca mais saudades. Bastava de sofrimento inútil.

Convicto de que sairia daquela enrascada

mesmo que o panorama da coisa não parecesse exatamente animador

quis compartilhar a novidade com a turma: calma pessoal

porque ninguém vinha salvá-lo e já nenhuma extática

ele ainda podia ser

lhe restava das garrafadas, nem um fio de sangue culpado permanecia debaixo da nudez profana

um novo homem

onde os dentes de vidro mascavam

§

suas adiposidades imundas. Então notou que não ardiam mais, soltando nas gengivas o gosto repulsivo de acetona. Aliviado e generoso, como prova de majestade

se ao menos parassem para ouvi-lo

quis legar à turba o gorro de saci (cadê?) e até a foto amassada que ficara no balcão. Súbito quis mostrar

se ele conseguisse fugir daqueles ermos desconhecidos

como era bonita, refletindo o céu nos olhos felizes, certa de que

nunca mais choraria.

E repousou a cabeça aberta, imerso numa apoteose deslumbrante de recomeços.

 

 

 

 

 

 

 

 

[imagens ©jörg heidenberger

 

 

Guilherme Scalzilli é historiador, mestre em Divulgação Científica e Cultural. Autor do romance Crisálida (Casa Amarela, 2007), entre outros volumes de contos e poemas. Colabora regularmente com artigos para diversos veículos de comunicação. Publica um blogue sobre arte, política e atualidades: www.guilhermescalzilli.blogspot.com.br.

 

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