Antes

 

 

Quando o coração. Vem e vai.

Ressaqueado por tempestades. E temporais.

Fica uma maré doída demais.

Do que está lá. Atrás.

Distante.

 

 

 

 

 

 

*

 

Quando o coração iça vela. Em paz.

Enluarado. Por ancoragens e corais.

Guia ao léu. De seus ais.

Com a bússola expulsa. Do cais.

Amante.

E um mar de amor adiante.

 

Meu mar de amor adiante.

 

 

 

 

 

 

Adiante

 

 

*

 

é preciso apegar-se à mão de um amigo

a qualquer sinal coletivo de gratidão

a qualquer minúscula evidência empírica de solidariedade

às raras empatias capazes de comungar os homens e as mulheres

é preciso apegar-se às flores e às frutas maduras

e à manga rosa que é as duas

 

faça outubro ou faça verão

 

não há outro jeito, compadre

comadre, de algum jeito a insanidade se apossou da razão

e tudo começou quando vendemos o último naco de nossa dignidade

por um prato de arroz e feijão

 

quem consegue esquecer desse dia?

os olhos abrindo-se fatalmente após uma noite de tormenta fria

ainda assim desejando retornar a ela e matar os sonhos de hipotermia

como esquecer a maré cheia e súbita

ao abrir as duas densas cortinas?

uma de couro e outra de insolência intempestiva

e deixar que a luz inunde as ideias

e da nascente dos olhos verta

a garoa antes seca

de realidades fundas 

tão logo trovoem-se os cílios

e do atrito, a fagulha

faz brotar a manhã depois da manhã

numa ressaca de amanhecer

trazendo de volta tanto ontem

trazendo um hoje pra tanto talvez

 

é preciso acreditar na petulância do adolescente

é preciso acreditar na coragem

do sorriso esperançoso de um velho trabalhador

capaz de vencer as memórias e o cansaço de viver delas

e nelas restar-se um pouco maior

desgarrar-se da brevidade da existência, arrancar-se

das próprias raízes

já abraçadas à morte

para dedicar à vida uma homenagem de quem

caso pudesse

jamais a esqueceria, jamais

a deixaria à míngua

e a ela voltaria

quantas vezes ela quisesse

 

é preciso creditar o amanhã

aos que ontem acreditaram

é preciso creditar o ontem

aos que acreditaram no amanhã

mas também é preciso creditar a fé

ao presente

mesmo estando ele

mais desacreditado do que a gente

 

 

 

 

 

 

*

 

abro uma garrafa de rubras dúvidas e enquanto despejo um quarto de seu líquido         vício

estranho o colorido tingido de tinto mas bebo-as com o capricho de um admirador 

"é tanta coisa prum solitário agora"                                                                         penso

"e um despropositado depois"

 

em cima da mesa a taça já vazia de um longo gole

na superfície nascem virgens as circunferências concêntricas

antes de refletirem o lampejo trôpego do jovem primata

refestelado sobre a existência pós-moderna e suas questões inéditas:

a dialética do átomo

a primeira insurreição no território da utopia

o charme da coincidência e a sincronicidade dos encontros

somos mais humanos ou mais terráqueos

e até quando

o delírio talvez não seja exclusividade nossa

porém, até o momento

eis aqui os únicos capazes de elevá-lo às margens do possível

e na arte das possibilidades desafio qualquer outro

neste latifúndio de galáxias ou para além do feudo de estrelas

a ombrear nossas façanhas

 

o caleidoscópio mirador de infinitudes, são seus sonhos, jovens, nos seus olhos, primatas

 

 

 

 

 

 

*

 

o poeta que amo é comunista

não tenho dúvidas sobre meu coração anarquista

e assim seguimos de versos dados

 

apertamos o caudilho e disparo

meu pássaro negro vara a tempestade

num desespero libertário de vida

e de morte

 

rima no poente sangue de nosso povo sul-americano

as tintas sílabas em teu vermelho de oceano

rebelde que nunca se rende

não sei se somos

ou nos tornamos

 

tua poesia tem densidade de cobre

verve vulcânica aflora na altura dos andes

pura lava de copihue

que lavra

a brava terra mapuche

 

 

 

 

 

 

*

 

querida

é importante que antes que me beije

saiba

fique ciente

nunca me arrependo de apostar em sonhos

ainda que impossíveis

tampouco em ideais

sou rapaz simples

poeta proletário

mas dado a estes caprichos caros e fatais

 

quero ser agora

um pouco daquilo

que talvez

                                         jamais serei

                                                        depois

 

sei que em breve estarei velho

decifrando o fim pelas lupas de aro grosso

para reler históricas rugas na tez de meu rosto

e jogar com as vogais entre as cruzadas que perdi

também sei que serei o que me resta e não o que me basta

mas aposto com o destino

 

e sua cavalaria de abutres famintos

 

que ainda seguirei hasteando a mesma rebeldia

após dobrar a bandeira da juventude

e tremular a experiência tardia

de um domingo que já muito tarde entardeceria

               anunciando uma década inteira

de segundas-feiras seguidas

 

 

 

 

 

 

V

 

 

[Ela ali, na mesa do canto. Ele no banco da frente do bar.
Ela cansada, cerveja gelada, um dia feliz.
Ele triste, cigarros e beques, pela revolução, outro pileque e o fim.

 

Ela samba, suingue e bolero.                                                            Ele boteco e Rimbaud.
Ela miradas piscadas de lá.                             Ele de cá, sorriso incômodo.


Ela azul claro, vestido rodado e futuro.
Ele presente e quebrado, só Nietzsche no bolso e saudade.
Ele poesia. Ela descrição.
Ela negra, sensível de prosa, guardanapo com bossa pelo balcão.
Ele leminskiano distante, versos interessantes, bom tom.


Ela oi. Ele olá.
Ela Valentina.                               Ele Bellé.

Ela mãos e dedos.
Ele beijos, suspiros e mais.
Ela ui, ai. Ele vem e vai.
Ela vento e caos. Ele vela e cais.
Ela muito.                                                         Ele demais.]

 

 

 

 

 

 

*

 

meu pau palpita na tua boceta
você boceja

minha língua limpa teu desprezo
sabor desejo

minha tristeza entra na tua entranha
manha sacana

meu toque tateia teu peito
arrepio por dentro

meu ego ecoa teu eco meu ego ecoa teu eco meu ego ecoa teu eco meu ego ecoa teu eco
incerto berro oco incerto berro oco incerto berro oco incerto berro oco incerto berro oco

minha porra lambuza tua garganta
nem puta nem santa

meu beijo suga teu hálito
e os pequenos lábios

meu braço abraça teu ombro
aqui, nosso escombro

 

 

[Esse poema tornou-se música na voz de Daniel Groove. Clique aqui para ouvir.]

 

 

 

 

 

Sim e Não

 

 

O amor sim. Eles não.

...

O amor neles. Tesão.
O amor deles. Senão.
O amor reles. Paixão.

 

 

 

 

 

 

Eu e Você

 

 

Eu te. Escrevo.
Você me. Esquece.

Eu te. Esqueço.
Você. Enlouquece.

Eu. Te beijo.
Você. Me deixa.

Eu. Te deixo.
Você. Se queixa.

 

 

 

 

 

 

*

 

quero estar em algum canto da tua memória, em cada momento, em todo lamento

no teu poderia ter sido, onde possa ser um pouco tua dor, saber se sofri demais, ou se depois

 por mim, você chorou, quero teu pranto, ser o espanto da centelha surpreendente

que se acende de repente, e como cicatriz deixa a certeza de que voltará

quando entre suas coxas, com os lábios assoprando meus verbos

e desejando seus arrepios, digo que já não sou mais o mesmo

afago seu rosto e bato a brasa no cinzeiro

anoiteço

não ignoro nossas revoluções, apenas as temo, explico isso com cuidado ameno

 dizendo que te amo de qualquer jeito, tua lágrima deságua 

debaixo da tua tempestade

adormeço

 

 

 

 

 

 

T

ã

o

 

E

u

 

e

 

V

o

c

ê

 

 

 

 

 

 

Isso é tão. Eu e você.

Morrer de noite. E renascer.

Quando já não haja abraços.

 Entardecer. Em despedaços.

E então amanhecer.

 

 

 

 

[imagens ©virginia chihota]

 

 
 
Jr. Bellé é poeta nascido no Paraná e radicado em São Paulo. Graduou-se em Jornalismo pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), especializou-se em Jornalismo Literário pela Academia Brasileira de Jornalismo Literário (ABJL) e é mestrando em Estudos Culturais pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP). Em 2010, publicou de forma independente seu primeiro livro de poesia, O Sonhador Que Colhe Berinjelas na Terra das Flores Murchas. No mesmo ano, ocorreu o lançamento do livro-reportagem Balaclavas & Os Profetas do Caos (Livro Novo), resultado de seu trabalho de conclusão de curso pela UEPG. Como jornalista, costuma escrever para a Revista da Cultura, Piauí, Almanaque Abril e Brasileiros, além de Playboy e Status, das quais foi editor. Sua mais recente obra é um poema em forma de romance chamado Trato de Levante, publicado em julho de 2014 pela editora Patuá. O livro ainda se tornou um curta-metragem homônimo, que estreou em maio/2015 no Mammoth Lakes Film Festival, na Califórnia, e foi exibido também no Festival Literário de Paulo Afonso (FLIPA), na Bahia, e na Austrália, no Queensland Poetry Festival. Clique aqui para comprar ou baixar os livros gratuitamente. E aqui para ver trailers e mais informações sobre o curta-metragem.