Eles se reúnem, os insones, em torno de uma mesa de bar, num canto apertado onde claro e escuro se alternam. Eles, os que nunca conseguiram dormir cedo, embora nada encontrem na rua. Eles, os últimos a sair de qualquer bar, jamais convencidos da impossibilidade que não cessa de ser comprovada, evidência após evidência. Eles, os derradeiros crentes.
Não, não são a raça eleita, os escolhidos da noite, dignos de uma atenção maior do Destino apenas porque mais ansiosos de vida. Essa crença é ingênua, antiga muleta dos que se organizam em rancoroso rebanho para desdenhar de outros rebanhos, opondo seitas a seitas, formando minoria apaixonada para defender pontos de vista sem defesa — pois tudo é discutível — com uma histeria que tenta compensar a fragilidade de tudo pelo excesso de gritos.
Mas não importa a duvidosa validade das ideias que se joga, pois, no fundo, a preocupação sempre foi uma só: sair do Inferno, apunhalar o coração inatingível do tédio, não se entregar ao horror da vida bem dormida, não se render ao encanto das ilhas, ficar em alto mar, exigir nobreza, heroísmo e risco da noite que, ao se abrir, sempre promete o mapa do tesouro, o roteiro do Graal e na madrugada os devolve ao ponto de partida com um pontapé de ressaca, as estrelas zombando do malogro com assovios e guizos de meretrizes ardentes. E os vira-latas, humildes acompanhantes de bêbados só em literatura, arreganhando-lhes dentes hidrófobos ou olhando-os com a ternura interesseira da expectativa de um osso.
O quê há para fazer? Estão todos juntos, mas só os corpos se tocam, as mãos se apertando com esperança de transcender o aperto, pernas se roçando sob mesas estridentes, um excesso de interesse mútuo que resulta mais em ódio que em conhecimento, confraria de mutilados que gesticulam muito, sociedade secreta aberta a todos os ventos cujos estatutos podem ser mudados de momento para momento, pois a inconvicção é substancial.
Se amam, seu amor não vai além do desejo de amor e todos os truques de lubricidade e carinho não garantem a posse de nada ou ninguém; a paixão é exaltada demais para renunciar a si mesma e aprender a fragmentar-se em pequenos bocados no cotidiano — explode em cega felicidade, e, sempre insaciada, só encontraria seu alvo na arbitrariedade absoluta — seu sonho é um fogo que as cinzas infalíveis a cada gota de hora frustram e desesperam. A ternura esconde grunhidos de afiado rancor, o tédio prepara facas em suas oficinas de inatividade, os demônios não permitem ilusões quanto à verdadeira natureza dos desejos.
Lânguidos, maltrapilhos em ouro e seda, o que oferecem uns aos outros é só a petulância triste dos Narcisos, esperando que da carne informe do mundo saia o beijo do reflexo. O que querem é ser endeusados por bondade, martírio masoquista ou crueldade exemplar — qualquer coisa menos o anonimato, a discrição, a severidade, a insipidez de uma vida de renúncia real. Pois bem sabem que falta charme ao verdadeiro ascetismo e só se interessam pelo despojamento que não os despoje de seus Eus meticulosamente precários e adorados.
Caminham no frio dessa madrugada ancestral e futura como eternos trôpegos e desajeitados que não cabem no tamanho de seus gestos, remando custosamente contra os fantasmas tangíveis urdidos pelo seu medroso ectoplasma. A imaginação doente trabalha contra eles e os premia com o que mais temem, o que foi urdido com paciência involuntária, ganhando consistência cada vez mais densa através da rejeição.
Ei-lo, o espectro do Grande Assassino, emergindo de uma esquina imprevista. A visão, quando não mata de susto, produz uma adesão apavorada e servil. Os mais sensíveis sucumbem, pois só os vivos podem morrer, e os empedernidos sobrevivem, devorados pela aridez que os justifica. A expedição catatônica avança pela noite anêmica, buscando nos ossos lívidos um resto vago de sangue e nas catacumbas luminosas uma visão não contaminada pelo Mal — esse Mal elétrico e hiperativo do qual são vítimas e prosélitos. Com olhos gratos e furiosos.
O último ônibus da metrópole seca os apanha num ponto desolado, estacionando com seu leve rumor de coche mortuário. Sobem, e ali estão os passageiros de fim de linha: esqueletos sérios, rígidos e objetivos que consultam relógios de pulso e folheiam jornais indiferentes, os ossos lustrados, a calma dos que se entregaram ao cuidado das normas. Avançam para o fundo do madrugada, o motorista cego assoviando o réquiem; conhecem a escuridão nuance após nuance, sua meta o repouso imerecido.
São despejados ao ar livre e vão friccionar seus frios num terreno baldio, buscando o aconchego dos ratos, a tepidez do lixo. O anjo da guarda olha para esses destroços adormecidos bocejando, um pouco aborrecido pela função de vigiar que lhe foi imposta pela burocracia do céu. Acende um cigarro e perambula entre os corpos, chutando algum de vez em quando para dissipar seu ódio contra os superiores da hierarquia.
No sono, são visitados por uma presença leve que provoca um vago tremor de agrado nas sombras enrodilhadas. Amontoados como peças desleixadas de chumbo, ainda assim, momentaneamente, têm a impressão de levitar.
É o vento.
O vento sempre é perdão.
março, 2015