[rio antigo: urca & pão de açúcar]

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Um grupo espetacular de escritores; um conjunto de obras excepcionais, canônicas — Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antonio de Almeida; Casa Velha, de Machado de Assis; Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto; A alma encantadora das ruas, de João do Rio — verdadeiros e exuberantes retratos do Rio de Janeiro, espelhados entre si e   com a cidade.




Caso exemplar de simbioses  —  magníficas criações literárias de grandes escritores, que a rigor, mostram muito mais do que o geográfico-urbano-espacial elo comum entre o Rio e notáveis literatos: trazem outros elementos de relações, encadeamentos e ilações — tanto de identificação quanto de  contraposição — entre  quatro obras, seus autores e... seus  personagens.

Como espelhos que ao mesmo tempo em que refletem 'invertem' imagens, as obras em tela guardam e mantêm entre si identidades e contraposições, similaridades e contrapontos, intertextualidades e cotejamentos.

Primeiramente, vale observar, que sob a órbita do cenário carioca da segunda metade do século XIX e duas primeiras décadas do século XX  brasileira, as obras guardam, entre cada um dos escritores de cada uma delas, o importante vínculo de encadeamento sequencial de ciclos cruciais da historiografia literária brasileira, a saber: Memórias de um sargento de milícias, como exemplar do Romantismo (abalizadas análises projetem a obra de  Manuel Antonio de Almeida,  na verdade, como um antecipador do Realismo); Casa Velha, como (especial) representante do Realismo (malgrado não apenas Machado de Assis poder ser considerado, e o é, acima de todos os ciclos e rótulos e chancelas, como ainda a interpretação deflagrada pela crítica e ensaísta Lucia Miguel-Pereira em Machado de Assis: Casa Velha, 1944, interpretação equivocada e depois revisada e corrigida, de ter sido a obra escrita muito antes de 1885, quando foi  publicada); Triste fim de Policarpo Quaresma, romance expoente do Pré-modernismo, de que Lima Barreto foi inconteste epígono, de resto, ciclo que também abrigou João do Rio e sua ode à "alma encantadora das ruas" — obra que assume papel bastante peculiar, qual  uma 'apresentadora' do cenário urbano, onde se desenrolam as histórias e tramas narradas  nas  outras três obras.

A par de ilações concretas de cunho intelectual e literário entre os escritores e as obras em tela, mencionemos  a existência efetiva de relações de ordem pessoal — amistosas, num caso; de franca antipatia mútua, em outro: enquanto Manuel Antonio de Almeida e Machado de Assis guardavam excelente relacionamento e até afinidades  afetivas entre si (mas também marcantes ilações literárias, como se verá) — Almeida, além de ter sido chefe de Machado na oficina da Imprensa Nacional, iniciando-o na arte e atividade de tipografia, introduziu-o na Sociedade Petalógica e no seleto círculo intelectual em torno de Paula Brito e foi seu grande incentivador para o fazer literatura; Machado, inclusive, dedicou a ele o (importantíssimo) artigo "O jornal e o livro", publicado em janeiro de 1859 (ele, com menos de 19 anos e meio) no Correio Mercantil  —  de outro lado, Lima Barreto e João do Rio se antegonizavam, nutriam forte animosidade um pelo outro. E entre Machado e João do Rio deu-se  curioso episódio: Machado nunca respondeu ao questionário que, em 1899, João lhe submetera para a coletânea de entrevistas com diversos escritores, O momento literário, e acabou não aparecendo — não se sabe até hoje por que — na obra, publicada em 1904.

 Em outro viés — aqui de natureza digamos 'filosófica' — em Machado de Assis e Lima Barreto as diferenças e divergências entre ambos escondem proximidades e até mesmo identidades bastante significativas (veiculei  estudo a respeito, exatamente com esse título,  "Diferentes, divergentes, mas próximos, muito próximos" no qual promulgo Lima Barreto e Machado de Assis como verdadeiros, natos, 'parentes literários'. Ainda que bastante diferentes, os dois são muito próximos de várias maneiras — essencialmente semelhantes em concepções filosóficas, temas, influências, pontos de vista, mesmo que sob formas, modos e discursos distintos. De modo convergente, mas de forma  divergente, analisaram os cenários políticos, históricos, institucionais, sociais, culturais de suas épocas e a existência do homem: Machado, privilegiando as nuances, dissecando-o em sua essência, revelando sutilezas, contradições e ambiguidades psicológicas; Lima, sem linhas e focos enviezados, desnudando suas fraquezas, insuficiências, submissões, condições sociais. Se Machado inaugurou o psicologismo na ficção brasileira, Lima introduziu o tema da incomunicabilidade, do isolamento existencial e social.)

Por outro lado, notáveis — e sem o serem inusitadas ou surpreendentes — são as  intertextualidades, quer de interações quer  de contraposições, explícitas ou implícitas, entre as quatro obras e os quatro autores. 'Sob um viés, Memórias de um sargento de milícias irradia genericamente para Casa Velha e para Triste fim de Policarpo Quaresma um vetor de estado e posturas de autoritarismo, concreto ou latente: o autoritarismo ditatorial de Vidigal, em Memórias...  é do mesmo naipe do de Floriano, como tratado em Policarpo Quaresma — de que, aliás, é o personagem principal, sem dúvida — e de outro tom no autoritarismo doméstico, familiar de d. Antonia em Casa Velha.

Leonardo Filho, Lalau e Policarpo Quaresma, cada um a seu modo, feitio e circunstâncias, são personagens que reagem a pressões, por vezes intoleráveis, de uma sociedade dominadora, patriarcal, ou de um ambiente matriarcal (como em Casa Velha) — de resto, também o que se dá com os personagens de Lima Barreto, no geral de sua ficção: Leonardo Filho e Policarpo agem, mas sofrem as sanções da sociedade e do sistema político — para o primeiro, ainda colonial; para o outro, já republicano — que os sufocam e ferem; Lalau, de um imperial âmbito  familiar, doméstico, e de  esfera social.

Quer em Memórias de um sargento de milícias, em Casa Velha, quer em Triste fim de Policarpo Quaresma, personagens, situações, tramas — e os autores — 'subjugados' ao Estado, onipresente, seja 'no tempo do rei', seja 'sob o manto imperial' (em 1839), seja sob a 'mão pesada da República'.

Não chego a dizer e sustentar que Memórias de um sargento de milícias e Manuel Antonio de Almeida sejam a obra e o autor capitais, centrais, desse conjunto, mas podem ser vistos como um pólo gerador de eixos de ilações e recorrências com as demais obras e autores. Antonio de Almeida e sua obra —  emblemática de uma inflexão temática, tramática e estilística no romantismo literário brasileiro — 'interagem' com Machado de Assis não só na antecipação do Realismo, mas também, e especificamente, no que Memórias de um sargento de milícias — 'anárquica', 'picaresca' (conotação, na verdade, cunhada por  Mario de Andrade, é questionada por Antonio Candido, em seu primoroso ensaio "Dialética da malandragem", para quem Leonardo Filho antes de ser um 'pícaro' é, sim, o primeiro malandro da literatura brasileira. No entanto, para 'simplificar' e evitar estender, o que não é propósito desse comentário, aceitemos e adotemos essa  designação mesmo) — prenuncia Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) — 'inovadora', 'revolucionária', marco da inflexão machadiana e de rito de passagem para o Realismo literário brasileiro, e da qual — convém notar — Casa Velha (1885), na produção romanesca machadiana, é sequente.

Memórias de um sargento de milícias contrasta com a ficção brasileira do tempo como Casa Velha difere, no enfoque e no tom e timbre, da ficção realista de sua época e inclusive, em especial, das obras romanescas de Machado de Assis a partir da década de 1880 (Memórias póstumas de Brás Cubas; Quincas Borba; Dom Casmurro; Esaú e Jacó; Memorial de Ayres)

"O tempo do rei", i.e. de D. João VI, em que se dá a história de Memórias de um sargento de milícias, é citado e adquire significância especial em  Casa Velha, no que determina como fulcro inicial na dinâmica da trama a intenção do padre-narrador em escrever a história de Pedro I, inspirado numa Memória de D. João VI, de autoria do padre Luís Gonçalves dos Santos, o padre Perereca. Vale dizer, a obra que o cônego em Casa Velha propõe-se a escrever é, no âmbito ficcional, 'decorrente' da vivência no tempo em que se passa Memórias de um sargento de milícias: nesta, a estrutura da trama, inerente à história política entre 1808 e 1822, faz o  pano de fundo histórico da obra de Manuel Antonio de Almeida terminar onde começa o da obra de Machado de Assis.

Mais do que 'picaresca' (sic!) ou outra conotação que se lhe atribua,  Memórias... é antes de tudo, um romance social — como aliás são os de Lima Barreto.  Mas é também uma história do amor de Leonardo Filho por Luisinha — esta, ao contrário, de Lalau, de Casa Velha, e de certo modo de Olga, de Policarpo Quaresma,  é mocinha burguesa, com herança e meneios dissimulados. A obra de Antonio de Almeida também retrata uma família — Leonardo Filho, seu pai e sua mãe, aliás  o núcleo central do elenco de protagonistas, como o são em Casa Velha d. Antonia, Lalau e Félix. Na obra de Machado de Assis há a contraposição ao mundo patriarcal representada pela figura de d. Antonia, e em dada escala por Lalau, não de todo submissa às regras sociais (embora de comportamento dentro da 'ordem'); em Memórias de um sargento de milícias personalizada essa contraposição, e confrontante com a ordem estabelecida, por Leonardo Filho: ele e Lalau são dotados, cada um per se, de elementos simbólicos, como  personagens —representantes das classes não-dirigentes [e caberia aqui uma especulação claro que numa escala 'surreal': Lalau  poderia se interessar, e vice-versa, por Leonardo?...]

Por sua vez, tanto Memórias de um sargento de milícias quanto Triste fim de Policarpo Quaresma, talvez com sinais invertidos, representam metáforas sobre o destino do Brasil como Nação. A impressão de realidade comunicada pelas obras decorre de uma visão mais profunda, embora instintiva, da função, ou "destino" das pessoas naquelas sociedades; Manuel Antônio, guardadas as devidas proporções, mantém em  comum com os autores realistas a capacidade de intuir, além dos fragmentos descritos, certos princípios constitutivos da sociedade, exatamente como Lima Barreto.

Ambas as obras e seus protagonistas, como veículos de hilariantes sátiras sociopolíticas, das instituições, Policarpo Quaresma como uma espécie de  Leonardo Filho ao contrário: se aquele  é modelo do patriota, este é o antipatriota. Enquanto Leonardo Filho sofre a repressão de uma sociedade forte, preocupada com a ordem pública,  Policarpo convence-se da necessidade de um governo forte — o que o leva a apelar ao poder de Floriano Peixoto e alistar-se no exército florianista.

No geral e em essência, o universo dos personagens da obra de Antonio de Almeida — empregados, subempregados, desempregados, biscateiros; destituídos, marginalizados, etc. — é o universo ficcional de toda a obra de Lima Barreto. Os dois autores, 'contestadores' da ordem — não apenas numa, digamos, ideologia de suas respectivas tramas e temas ficcionais, mas também na forma literária: as escrita e linguagem ficcional imprimidas em Memórias guarda identidades com as escrita, estilo e linguagem literária de Lima Barreto, ambas coloquiais, despojadas, fluentes, lastreadas na oralidade ("antinefelibatas", segundo Lima).

 Em Triste fim de Policarpo  Quaresma — como de resto nos demais romances  e novelas barretianos (Recordações do escrivão Isaias Caminha e Morte e Vida de M. J. Gonzaga de Sá; em Clara dos Anjos) — há um pathos trágico, da derrota final de Policarpo; em Memórias de um sargento de milícias, ao contrário, dá-se um aparente pathos 'épico', de vitória, Leonardo Filho feito por fim sargento de milícias. Se Leonardo Filho é um 'herói atuante', picaresco [conservemos a conotação 'picaresca', vá lá...], 'thorminiano' (de Lazarillo de Thormes), Policarpo (bem como Isaias Caminha — e similarmente ao machadiano  'homem de espírito') é um autêntico 'herói carlyleano', um 'herói solitário', 'intelectual' lyleano' — per se  um flâneur. Incorporado de Carlyle (uma das maiores influências intelectuais em Lima), o flâneur  barretiano — foi Lima o introdutor dessa figura na literatura brasileira — que é um  flâneur dramático, debilitado, andarilho decadente, está no flaneurismo, de perfil e atuação completamente contrários, de João do Rio, em seus frequentar e retratar as ruas da cidade.

Identificação e 'entroncamento' entre Lima e João — não obstante as antipatia  e animosidade de um pelo outro no campo pessoal — que não se dá apenas nesse terreno subjetivo de comportamento social mas também em vívidos aspectos comuns da realidade de origem e de vivência de cada um.

Ambos  naturais e falecidos no mesmo Rio de Janeiro — João do Rio nascido em 1880, Lima Barreto em 1881 (aliás, ano de publicação de Brás Cubas, marco ficcional machadiano); João, morto em 1921, Lima em 1922: um ano a separá-los em seus nascimentos e mortes — Lima oriundo de família modesta, de funcionário público empregado pela Monarquia, amante de seus 'adoráveis subúrbios', rebelde e automarginalizado; João, de família de classe média, abolicionista, positivista, republicana, dândi integrando-se gradativamente às altas esferas da sociedade e às  elites; os dois vividos na mesma cidade, então em ebulição, pela pretensa modernização, ambos sob a mesma República, João, entusiasta incondicional, Lima, crítico visceral.

 Mas ainda que dotados de ideologias, posturas, visões e interpretações nada convergentes, ambos profundamente interessados na cidade e no seu habitante. É nesse sentido e com essa índole que João do Rio registra, apregoa, expõe, dissemina e exalta a  "alma encantadora das ruas" da cidade — que por sua vez está também nos becos, ruelas, ladeiras, por onde Leonardo Filho e os personagens transitam 'picarescamente' (sic!) na obra de Manuel Antonio de Almeida e onde Lima Barreto constrói e ambienta todas suas tramas ficcionais. Os mesmos  contingentes sociais da cidade povoam literariamente as obras dos três escritores. 

Relevante tal conjunto, a exibir exemplares claros da pujança literária do Rio de Janeiro e a extraordinária capacidade criativa de alguns de seus mais importantes escritores.

 

março, 2015