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Il n'y a pas de vrai sens d'un texte. Pas d'autorité de l'auteur. Quoi qu'il ait voulu dire, il a écrit ce qu'il a écrit; une fois publié, un texte est comme un appareil dont chacun peut se servir à sa guise et selon ses moyens: il n'est pas sûr que le constructeur en use mieux qu'un autre. (Paul Valéry, "Au sujet du Cimetière Marin", Variété)

 

Alguns estudiosos e críticos de literatura podem se preocupar com a possibilidade de um texto literário não ter um único significado "correto", mas provavelmente não serão muitos a ter essa preocupação. É mais certo que se deixem seduzir pela ideia de que os significados de um texto não estão encerrados nele como o dente de ciso [sic] está na gengiva, esperando pacientemente pela sua extração, mas sim que o leitor tem algum papel ativo nesse processo. Nem se preocupariam com a ideia de que o leitor não chega ao texto culturalmente virgem, por assim dizer, imaculadamente livre de envolvimentos sociais e literários anteriores, como um espírito totalmente desinteressado ou como uma folha em branco, para a qual o texto transferirá as suas próprias inscrições. De um modo geral, admite-se hoje que nenhuma leitura é inocente, ou feita sem pressupostos. Poucas pessoas, porém, levarão às últimas consequências as implicações dessa culpa do leitor. (Terry Eagleton, Teoria da literatura)

 

Antes de começar1, creio que possa ser de algum interesse apresentar uma discussão teórica geral: parece-me impossível estudar um texto complexo e extensamente comentado como as Odes, sem antes explicitar — um pouco que seja — de onde vem o olhar que apresenta tal estudo. Apesar de discordar de David West, comentador de Horácio, quando afirma que "Escritos sobre teoria literária são tão complexos, obscuros e abstratos, que não prestam qualquer auxílio para o entendimento de Horácio" (1998: 47); assumo desde logo que ainda ecoa em mim a constatação um tanto triste de Antoine Compagnon (2010: 13) de que "o impulso teórico estancou-se desde que forneceu uma certa ciência de apoio à sacrossanta explicação do texto". Compagnon lastima o engessamento teórico dos últimos anos, com um jargão demasiado técnico que, muitas vezes, se crê suficiente para o domínio de determinadas obras, como se a partir dele tivéssemos receitas prontas de análise e interpretação dos textos; o que leva ao risco maior de acreditarmos na tal "sacrossanta explicação do texto", ou numa verdade contida no texto e que deve ser descoberta e revelada por meio da aplicação teórica, como se nos textos pudéssemos encontrar um fundo único, um sentido determinado e unívoco que guia toda a obra, quando melhor seria fazer do pensamento teórico um constante devir, um espanto produtivo diante das questões levantadas por cada obra, para a partir desse desencontro produzir uma leitura específica, um diálogo entre leitor e obra, um movimento que se dê a partir da obra, mas que nunca resulte em leitura final, e sim num retorno constante de produção sobre a obra, que se produz sempre teoricamente, haja ou não consciência disso. "Assim como o escritor, o crítico nunca tem a última palavra" (Barthes, 2007: 16). Também o texto do crítico se presta a interpretações, no que poderíamos considerar um jogo potencialmente infinito de leituras das leituras das leituras etc.

Assim, podemos entender mais claramente uma afirmação sumária como a de Simon Goldhill de que a "teoria não é algo que se prega à leitura. Ela é o que torna a leitura possível. Já está lá. Sempre" (2002: 277, grifo do autor). Nessa perspectiva, ler é sempre um ato criativo e teórico; e não apenas em determinados casos, como o da tradução poética (como se poderia entender pelo título do artigo seminal de Haroldo de Campos "Da tradução como criação e como crítica", de 1961). Teorizar, do verbo θεωρεν, tem o sentido de "olhar", "ver", "contemplar"; para depois agrupar também os sentidos de "especular", "considerar" racionalmente e produzir saberes a respeito de um determinado objeto. A teoria, portanto, não está distanciada do mundo, nem independente da prática observatória; ao contrário, ela precisa ser intensa e constantemente permeada pela experiência, que por sua vez nunca se esgota; nas palavras de Henri Meschonnic, "a teoria é [...] a busca pela teoria", por isso não deve ser entendida como uma teoria única (1982: 33). No caso da interpretação poética, essa experiência teórica é atravessada por diversos níveis que extrapolam o especificamente poético para incorporar a própria vida de cada leitor. Nesse sentido, não é fácil teorizar sobre a leitura, já que ela é, por definição, múltipla, como múltiplos são os leitores: mesmo que encontremos dois leitores com a mesma afinidade teórica, suas leituras nunca são idênticas, porque a teoria não se dá de modo estanque, como mera ferramenta de aplicação mecânica. Está implicada na escrita crítica a experiência de cada crítico, que por sua vez se esforça para tornar pública e convincente a sua leitura.

Daí que eu possa dizer que há uma falsa ambiguidade nesta apresentação teórica: neste caso, não pretendo e que isso fique bem claro realizar uma incorporação ortodoxa de determinada teoria, para em seguida aplicá-la à leitura das Odes de Horácio. Busco examinar um pouco acerca de algumas teorias que se entrelaçam, para, uma vez apoiado nelas, produzir minha leitura idiossincrática, sem filiação dogmática mantendo a metáfora do apoio, aqui se imagina um salto. Na prática, tenho ciência de que não há como evitar completamente alguns jargões mesmo a linguagem cotidiana e o senso comum têm os seus, de modo que, como diria Barthes (2007: 201), "'jargão' é a linguagem do outro".

Porém, voltando a Compagnon, podemos dizer que é bastante notável o modo como o teórico francês apresenta diversas dicotomias teóricas a partir de cada um dos sete eixos principais tratados no livro, a saber: literatura, autor, mundo, leitor, estilo, história e valor. Em cada um dos casos, ele tenta determinar como, por contraponto à comodidade do senso comum, os radicalismos da teoria, embora bastante sedutores, acabam resultado em aporias, ou no mínimo em considerações inviáveis para a prática da leitura. Gostaria aqui de debater, à guisa de paradigma para a discussão como um todo, um dos pontos mais importantes e retomados criticamente dos últimos 40 anos, por crer que toca muito sensivelmente no processo interpretativo em geral e nos seus problemas específicos e por saber que, de certo modo, essa leitura apresenta algum esgotamento por cansaço.

Em 1968, Roland Barthes terminava "A morte do Autor", dizendo que "o nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do Autor" (1988: 70). Está claro que Barthes pretendia com esse texto retirar da perspectiva interpretativa um conceito de intenção do Autor (assim maiúsculo, assim abstrato, para talvez explicitar ainda mais a posição central que essa figura assumiu por muito tempo na interpretação poética, sobretudo no senso comum) como eixo central das leituras, e levá-lo mais diretamente ao texto em leitura. Um exemplo claro de leitura intencionalista pode ser achado, por exemplo num comentário de Wilkinson sobre Horácio (1968: 132): "Seu objetivo era dar a expressão mais viva possível para seus pensamentos e sentimentos, e tudo subordinava-se a isso" (grifo meu); então poderíamos dizer que o principal objetivo do crítico seria descobrir esses pensamentos e sentimentos originários do texto. Contra isso, Barthes responde, com a radicalidade derivada do New Criticism2, que "a escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo aonde foge nosso sujeito, o branco-e-preto, onde vem se perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve" (ibid.: 65); aqui, a obra deixa de ser confidência biográfica e romântica do autor para tornar-se texto, que por sua vez convida a intervenção ativa do leitor pouco importa quem o tenha escrito e quais eram as suas intenções originais3.  Obviamente não posso me deter na complexidade do artigo de Barthes, que, a meu ver, trata de muito mais do que simplesmente dos processos de leitura. Penso que o ponto central do artigo é a morte do autor para a literatura contemporânea de Barthes, ou seja, como a literatura a partir de Mallarmé buscou outro modo de se mostrar, sem a tendência romântica do gênio criador, por meio do desaparecimento elocutório do sujeito. Se eu fosse me deter numa análise direta do texto de Barthes, melhor seria contrastá-la com Michel Foucault, no artigo "Qu'est-ce qu'un auteur?" (2004: 290-318), que percebe no autor uma função do texto, ou seja, uma relação de discurso, que fica entre o esvaziamento completo e uma presença que ainda dá sentido ao texto; ou então com Bakhtin (2003: 191-2). No entanto, como o texto barthesiano ironicamente existe e significa para além de seu autor, é na desleitura mais corrente que me detenho, a saber: a de que não importa o autor para qualquer tipo de análise literária, qualquer que seja sua época. Essa leitura, a meu ver simplista e ingênua, é devidamente ironizada num diálogo inédito de Ricardo Domeneck:

 

... porque desde a morte do autor...

Deus, por favor, me mate.

Você discorda da morte do autor?

Qual?

O autor em geral.

Nunca li nada dele...

Estou falando de Barthes.

Ah, ESSE autor morreu, infelizmente.

 

Nesse sentido, poderíamos imaginar uma argumentação simples: o que um autor (portanto, não O Autor em geral) pretende não necessariamente se realiza (não podemos confundir intenção e realização de uma obra), e toda produção de sentido acontece somente durante o ato de leitura, na mente de um leitor (e também não do Leitor ideal). Segundo esse entendimento, as palavras de Paul Valéry apresentadas na epígrafe desta introdução parecem resumir toda a questão: uma vez que a obra foi publicada, o autor passa a ser apenas mais um de seus leitores, e sua opinião não é necessariamente mais interessante ou verdadeira do que a de qualquer outro intérprete da obra; é precisamente o que descreve Mikhail Bakhtin quando afirma que, ao comentar sua própria obra, o autor "se tornou independente de si mesmo é a pessoa, o crítico, o psicólogo, ou o moralista" (2003: 6). É também o convite do poeta Waly Salomão na orelha de sua antologia, O mel do melhor (2001):

 

... o autor na verdade, é falível,

é vulneráveil, e sobretudo ele

não detém a última palavra, a

chave final sobre a propulsão

que um poema pode despertar

num eventual leitor...

 

... como se sabe

o leitor é querido e livre

pode ler assim ou assado...

 

É diante desse problema que Umberto Eco, em Os limites da interpretação, veio a formular os conceitos de intentio auctoris ("a intenção do autor"), intentio operis ("a intenção da obra") e intentio lectoris ("a intenção do leitor"); enquanto a intentio auctoris não necessariamente coincide com a intentio operis, ou seja, com sua materialidade enquanto texto, o leitor pode entrar com sua intentio para produzir leituras inesperadas, imprevistas pelo autor, desde que sustentadas pela intentio operis.

 

A iniciativa do leitor consiste em fazer uma conjectura sobre a intentio operis, conjectura essa que deve ser aprovada pelo complexo do texto como um todo orgânico. Isso não significa que só se possa fazer sobre um texto uma e apenas uma conjectura interpretativa. Em princípio, podemos fazer uma infinidade delas. Mas no fim as conjecturas deverão ser testadas sobre a coerência do texto e à coerência textual só restará desaprovar as conjecturas levianas. (2012a: 15)

 

E o próprio Eco, mais adiante (pp. 87-98), é o primeiro a assumir como teve oportunidade de ler interpretações que ele próprio não previra para próprio seu romance, O pêndulo de Foucault, mas que permaneciam convincentes como interpretação do texto, já liberto das intenções pessoais de seu autor. Mas é claro que é praticamente impossível delimitar a interpretação: um exemplo poderia ser o do uso feito das obras de Friedrich Nietzsche pelos nazistas, graças a certas intervenções políticas e editoriais de sua irmã, Elizabeth Vöster-Nietzsche, após a morte do filósofo; ao passo que hoje parece haver concordância de que o autor do Zaratustra estava longe de pensar em raça ariana quando, por exemplo, formulava sua teoria do Übermensch, e que suas teses defendidas em Além do bem e do mal não se aplicariam à política do nazismo. Claro está, portanto, que a obra não existe na metafísica das intenções do autor, mas no uso derivado de suas leituras, seja por fins políticos, ideológicos, ou meramente poéticos. Se a intenção do autor fosse o centro do texto, nem sequer haveria necessidade de crítica literária, pois que sua univocidade logo se revelaria ao leitor mais atento não teríamos inúmeras leituras, debates e controvérsias a respeito de cada obra; nem a necessidade aparentemente infinita de entender também o que significariam determinadas leituras feitas pelos comentadores. Assim, para Eco "a relação entre intérprete e obra sempre foi uma relação de alteridade" (2010: 33); já que é nessa diferença entre os dois que se produz o sentido. Ainda no mesmo ano de 1968, o italiano já afirmava que:

 

A compreensão da mensagem estética também se baseia numa dialética entre aceitação e repúdio dos códigos e léxicos do remetente — de um lado — e introdução e repulsa de códigos e léxicos pessoais, de outro. É uma dialética entre fidelidade e liberdade interpretativa, onde, de um lado, o destinatário procura captar os convites da ambiguidade da mensagem e preencher de forma incerta com códigos próprios; e de outro, é reconduzido pelas relações contextuais a ver a mensagem tal como foi construída, num ato de fidelidade ao autor e à época em que essa mensagem foi emitida.

Nessa dialética entre forma e abertura (ao nível da mensagem) e entre fidelidade e iniciativa, ao nível do destinatário, estabelece-se a atividade interpretativa de qualquer fruidor e, numa proporção mais rigorosa e inventiva, e concomitantemente, mais livre e mais fiel a atividade de leitura típica do crítico — numa recuperação arqueológica das circunstâncias e dos códigos do remetente, num ensaiar a forma significante para ver até que ponto suporta a inserção de novos sentidos, graças a códigos de enriquecimento, num repúdio de códigos arbitrários que se insiram no duros da interpretação e não saibam fundir-se com os demais" (2012b: 71).

 

Assim, a leitura expõe a contradição do sentido inerente a todo texto e a toda a linguagem; no entanto, isso não implica uma morte completa do autor, mas sim uma abertura interpretativa que ao mesmo tempo é sempre cerceada pela materialidade do texto criado pelo autor. Em contraponto à radicalização pela morte do autor e pelo império da linguagem impessoal e anônima propostos por Barthes, pergunta-se Compagnon:

 

Mas ao afirmar que o autor é indiferente no que se refere à significação do texto, a teoria não teria levado longe demais a lógica, e sacrificado a razão pelo prazer de uma bela antítese? E, sobretudo, não teria ela se enganado de alvo? Na realidade, interpretar um texto não é sempre fazer conjeturas sobre uma intenção humana em ato? (op. cit.: 49)

 

Em outras palavras: ao propor uma interpretação das Odes de Horácio no século XXI, seria possível ignorar que Quinto Horácio Flaco, seu autor, foi um homem que viveu no século I a.C., entre décadas de guerras civis, que passou pela guinada política da Pax Augusta e escreveu o Carmen saeculare sob encomenda do próprio Augusto, que mencionou em sua poesia madura a renovação religiosa do princeps, que recebeu uma uilla de seu patrono Mecenas, que leu, como todo romano de sua classe, a poesia grega arcaica e helenística, além da romana, ainda nos seus anos de formação, que viveu num tempo em que retórica e poesia não estavam de todo separados? Diante dessas perguntas, não hesito em afirmar que a morte do autor, ou pelo menos essa morte do autor em geral, tem os seus limites, e que dados biográficos do autor muitas vezes constituem uma espécie de metatexto; se não para encontrar uma verdade em sua obra, ao menos para indicar possíveis balizas mais convincentes de leitura. Doutro modo, teríamos de fingir que as obras surgem do mero acaso, sem ponto de ancoragem, sem ideologias, subjetividades ou poéticas que as permeiem; sem um indivíduo real que as escreva.

Mas eu poderia questionar o que significa "a morte do Autor" e retomar o problema: seria essa morte declarada por Barthes tão radical quanto foi interpretada por parte dos críticos? Vejamos mais uma passagem do ensaio:

 

Uma vez afastado o Autor, a pretensão de "decifrar" um texto se torna totalmente inútil. Dar ao texto um Autor é impor-lhe um travão, é provê-lo de um significado último, é fechar a escritura. Essa concepção convém muito à crítica que quer dar-se então como tarefa importante descobrir o Autor (ou suas hipóteses: a sociedade, a história, a psique, a liberdade) sob a obra: encontrado o Autor, o texto está "explicado", o crítico venceu; não é de se admirar, portanto, que o reinado do Autor tenha sido também o do Crítico (op. cit.: 69)

 

Aqui fica mais claro que não se trata propriamente de ignorar o autor, mas de tirar dele o centro teológico do texto; de retirar do texto uma metafísica última do sentido, que era costumeiramente atribuída à intenção do autor e que poderia ser desvelada pelo bom crítico, que então entraria como o detentor da verdade do texto. Para  Barthes, a morte do autor poderia liberar "uma atividade a que se poderia chamar contrateológica, propriamente revolucionária, pois a recusa de parar o sentido é finalmente a recusa de Deus e de suas hipóstases: a razão, a ciência, a lei" (ibid.:70). Ao ler esse trecho, é possível perceber como o autor Barthes está marcado pelos conflitos de maio de 68 na França, quando a juventude se insurgiu contra um sistema hierárquico do saber universitário e político em geral. Sua leitura busca a liberdade da interpretação como um novo ato crítico, agora sem metafísica, sem o conceito tradicional de verdade unívoca; o que, no fim das contas, poderia ser lido e posso dizer que o foi como uma espécie de "vale tudo" em nome da nova supremacia do leitor4, contra o antigo império do Autor e do Crítico. Nesse caso, seria possível entender que "a leitura (ou análise) deve parar em algum momento, e esse ponto de parada é uma escolha arbitrária e, por isso, ideológica", segundo comenta Robson Cesila (2013: 18) acerca das ideia de Don Fowler sobre intertextualidade, em Roman Constructions, de 2000; assim, "as cadeias intertextuais são infinitas e o leitor/analista é quem decide em que ponto vai parar. Isso nos leva à ideia de que a intertextualidade pode não ser um objeto fixo, pronto, um produto final, mas um processo, um fenômeno em movimento, uma ação inacabada" (ibid.: 19). Cada leitor impõe as próprias delimitações de sua leitura, quer ele tenha ou não consciência desse ato.

Ora, parece-me óbvio que uma total supremacia do leitor é passível de questionamento, porque está em algum ponto limitada como discurso social: o texto/leitura também é passível de outra leitura, que o submete ao seu crivo; portanto, entra na ordem do discurso, se pretende ganhar existência. Desse modo, podemos chegar à seguinte situação: se, por um lado, a obra só pode acontecer nas diversas leituras e só pode ganhar sentido diante de leitores que lidam com sua própria bagagem de leituras prévias (da literatura e do mundo); por outro, para além do âmbito específico da intertextualidade, um leitor não pode fazer qualquer leitura sob o argumento de "ação inacabada" ou "arbitrária", ou de "escolha ideológica". Aqui separa-se o leitor geral (qualquer um, que pode, de fato, produzir qualquer leitura, uma fruição do texto) do crítico (de quem se espera uma leitura capaz de produzir κρίσις e novos sentidos), com um cuidado importantíssimo: "resta ainda uma última ilusão à qual se deve renunciar: o crítico não pode, de modo algum, substituir o leitor" (Barthes, 2007: 228); noutras palavras, a leitura crítica não é mais verdadeira que a geral, ela apenas obedece uma determinada "ordem do discurso" — se insistirmos no conceito de Foucault (1970) — e pode ser questionada diante da obra criticada. De qualquer modo, não ficamos sem objeto interpretativo, apenas saímos da metafísica intencional para cairmos na concretude do texto e das duas relações, agora talvez mais interessados numa análise dos possíveis efeitos, independentemente do que possa ter sido ou não premeditado pelo autor: é na alteridade entre texto e leitor que se funda um sentido. No caso específico dos estudos sobre poesia antiga, por exemplo, é preciso levar em conta a poética vigente que, longe de valorizar o gênio individual, estabelecia diversas maneiras de construir um poema. Nesse sentido, todo texto antigo partilha de uma poética coletiva; porém, ainda assim, os exemplares individuais (a obra concreta) sempre escapam à categorização pura e simples, do mesmo modo que os discursos extrapolam a língua como abstração estruturada. É diante dessa duplicidade do texto (por um lado, sua fôrma coletiva, por outro, sua forma única) que o estudo da poesia precisa acontecer.

O fato, portanto, é que Barthes, embora tenha sido lido assim, não estava propondo um "vale tudo", e sim um enfoque sobre o texto; o desligamento da tradicional máquina de verdade autoral, para pensarmos nas possibilidades de leitura diante de um determinado texto material. E precisamos assumir que suas possibilidades, por mais que limitadas e discutíveis pela própria materialidade do texto, uma vez que sem metafísica, não são mais pré-estabelecidas: é necessário sempre testar e retestar esses limites, por vezes com radicalidade e com superinterpretações; porque um texto não permanece interessante ao longo dos séculos graças a um sentido imutável que continua instigando seres humanos de épocas bastante diversas: ele permanece porque é capaz de receber interpretações diferentes a partir de pontos de partida variados. Mas convém estar sempre diante do texto, da sua materialidade, para produzir uma interpretação. Sem o recurso à intenção do autor, Compagnon, por exemplo, lembra o recurso ao método das passagens paralelas (Parallelstellenmethode):

 

quando uma passagem de um texto apresenta problema por sua dificuldade, sua obscuridade ou sua ambiguidade, procuramos uma passagem paralela, no mesmo texto ou num outro texto, a fim de esclarecer o sentido da passagem (op. cit.: 67).

 

Assim, podemos garantir um pouco mais de confiança na leitura e saímos do suposto "vale tudo"; nem é à toa que a filologia antiga — uma área que pouco consegue se valer de outras informações extratextuais por causa do problema material da perda de dados — se fia constantemente nesse método para produzir comentários. Isso se dá porque um texto só existe em sua relação consigo mesmo e com outros textos, e não num vácuo atemporal. De algum modo, nessa técnica, mesmo que se descarte a intenção, ainda ficamos com algum substrato importante para justificar interpretações da obra pelo seu diálogo com outras passagens da mesma obra ou de outras obras próximas, seja por gênero, língua, léxico etc. Mas até nesses casos, é preciso lembrar — ainda mais no caso da filologia antiga — que, pelo contraste de passagens, temos apenas maiores argumentações interpretativas, "jamais, é claro, uma prova" (ibid.: 69); pois nada garante que, por serem passagens paralelas, as duas comportem o mesmo sentido em uma palavra idêntica, por exemplo. Nem mesmo em uma passagem paralela de um mesmo autor — e eu acrescentaria, de uma mesma obra –– nós teremos tal garantia (a coerência interna do autor também é, no fim das contas, uma ficção reconfortante), mas ela torna nossa discussão mais afiada, menos errante. Segundo Foucault (2004: 305-7), a busca por coerência interna e manutenção estável de valor são dois dos critérios da crítica para enquadrar o nome do autor, a partir de São Jerônimo. Por exemplo, como realizarmos uma coerência perfeita autoral diante das variedades dos gêneros literários de um mesmo autor? Giuliano Bonfante (1994: 159) comenta Horácio:

 

As Odes e as Sátiras, obras da mesma época e do mesmo autor, ocupam aqui aquilo que podemos definir como os dois pólos opostos da língua latina: as Odes estão escritas na língua mais nobre, mais refinada, mais pura que se possa imaginar; as Sátiras naquela mais popular que o estilo literário da época poderia permitir.

 

Então em Horácio temos um autor que escreveu ao longo de décadas, em gêneros diversos. No caso de um contraste de passagens paralelas, é preciso levar em conta que os textos são de períodos distintos, que o gênero diferente resulta em elocução e vocabulário diferentes, etc. Além disso, é importante lembrar que uma obra poética não se submete ao mesmo critério de coerência que uma obra filosófica; por exemplo, o uso assistemático de filosofia(s) em Horácio, no mesmo gênero das Odes, poderia causar espanto no crítico que procura por unidade dogmática, mas logo vemos que o poeta usa de filosofias diferentes para temas diferentes, segundo o efeito poético. Nesse caso, as inconsistências do texto fazem parte do seu funcionamento; não são falhas ou equívocos a corrigir.

Outro exemplo claro de momentos em que a intenção parece se anular como categoria interpretativa, e onde o método das passagens paralelas pode fracassar completamente, é a ironia: uma vez percebido um mote irônico em determinado autor, é bastante difícil estabelecer onde ele começa e onde acaba, ou como interpretar a direção do sentido5. Afinal, mesmo na filosofia, onde é que o Sócrates platônico é completamente sério em seus argumentos, e onde ele simplesmente usa do que tem à mão para desmontar o pensamento alheio6? Na poesia, onde é que a elegia erótica romana deixa de ser tipicamente augustana para apresentar uma crítica à moral tradicional romana7? Perguntas desse tipo poderiam se multiplicar indefinidamente. Sem o Autor como centro da interpretação, leituras contraditórias podem/devem coexistir, porque toda obra é, de algum modo, aberta; e abertas também estarão as interpretações, desde que de algum modo centradas sobre o texto.

Nisso chego de fato à filologia antiga; chego também a uma prévia deste trabalho. É claro que os Estudos Clássicos não são uma pedra uniforme de concordância, e inúmeros modos de trabalho coexistem ao mesmo tempo, inclusive num só determinado departamento de uma universidade específica. Porém arrisco-me a dizer que, na maior parte dos nossos estudos, há uma tendência para a leitura de fundo hermenêutico, que se daria por tentativa de reconstrução fiel do passado, dos modos de pensamento, de produções da escrita, dos critérios dessa escrita — em geral retóricos — dos gêneros determinados, do gosto de época, dos costumes sociais e discursivos, do estudo dos tópicos etc. É, por exemplo, boa parte do que se pode depreender de um clássico contemporâneo como Generic composition in Greek and Roman poetry, de Francis Cairns. Para simplificar bastante, vejamos apenas sua exata primeira oração: "O intuito deste trabalho é sugerir uma abordagem pela qual a matéria da literatura antiga seja mais bem compreendida". (1972: v, grifo meu). Apesar do termo "sugerir", vemos no fim da oração a ideia clara de que um texto antigo poderá ser "mais bem compreendido", portanto mais próximo de sua verdade, mediante sua "abordagem". Essa abordagem — e não pretendo em nada desmerecê-la como abordagem fundamentada, mas apenas testar seus limites — é sobretudo embasada na análise de obras de retórica e oratória, para definir os gêneros e lugares-comuns da poesia antiga como o melhor modo de ler essa poesia. Seu principal recurso é a obra de Menandro, o Rétor, autor do século III d.C., de modo que o argumento geral é simples: seu método seria mais certeiro porque tenta entender os antigos pelos critérios dos próprios antigos, suas categorizações e prescrições de escrita. De modo similar Paulo Martins afirma que, "antes, procura-se reproduzir uma forma mentis romana dos primeiros séculos antes e depois de Cristo" (2011: 31), para em seguida propor que se deve, "pelo menos teoricamente, recuperar uma forma mentis romana para que as análises feitas não atribuam aos objetos analisados algo alheio a eles, em seu período de invenção e circulação". Convém lembrar que, nos dois casos, não se trata de purismo ingênuo, nem corte absoluto do anacrônico, já que o próprio Martins faz uso de Foucault em seu trabalho teórico. Mas como averiguar de fato essa forma mentis? Para Eco, devemos levar em consideração que

 

a obra [...] poderá ter fraquíssimas conexões com seu próprio momento histórico, poderá expressar uma fase subseqüente do desenvolvimento geral do contexto, ou poderá expressar, da fase em que ele [o autor] vive, níveis profundos, que ainda não aparecem muito claros a seus contemporâneos (2010: 34).

 

Em resumo, mesmo o conhecimento da forma mentis não dá garantias de um domínio do texto, porque este potencialmente a extrapola: a obra nunca é um espelho fiel do tempo histórico em que ela se inscreve, por mais que partilhe de seus valores e de sua episteme. Simon Goldhill diz que, para os classicistas, "é uma mitificação lúdica fingir que hoje fazemos o que sempre fizemos. Que haja — de modo simples e autoevidente — um modo natural de leitura. Uma tradição clássica imutável (op. cit.: 278). Não quero desmerecer tais linhas de trabalho, nem sequer sugerir que Cairns ou Martins caiam em tal ingenuidade: na verdade, os dois trabalhos são de grande importância para o meu trabalho e constituem verdadeiros pilares interpretativos. Desejo aqui apenas apresentar como uma determinada visão sobre "melhores métodos" de "melhor compreensão", ou de confiança na recriação ou recuperação fiel do passado, que correm o risco de incorrer num ponto de leitura tido como "mais natural" ou "metodologicamente correto", podem ser, em parte, tomados por contraposição ao que pretendo fazer (que não é, ao fim e ao cabo, tão diverso do trabalho deles). Eu arriscaria, no entanto, dizer que tanto a proposta de Cairns como a de Martins — um sobre discurso poético, outro sobre relações entre o poético e as imagens — de certo modo tentam buscar, como dizia Barthes, "descobrir o Autor (ou suas hipóteses: a sociedade, a história, a psique, a liberdade) sob a obra"; mas sobretudo pelas "hipóteses". No Estudos Clássicos, Duncan F. Kennedy critica esse tipo de procedimento como "efeito de realidade", nos seguintes termos:

 

A crescente concentração nos meios, em vez de nos objetos, gera uma questão crucial que pode ser enquadrada em termos de "efeito de realidade": onde ele para? Qualquer determinação de que uma afirmação qualquer num texto representaria a realidade está aberta para a contradeterminação de que seria um caso do efeito de realidade, que o que é representado como realidade é precisamente isso, outra representação" (1993: 6).

 

Ao lermos estudos sobre a organização das Odes horacianas em cada livro, encontramos esse tipo de determinação da realidade do autor a partir do texto. No seu importantíssimo trabalho, Alessandra Minarini, por exemplo, afirma:

 

É óbvio que a questão sobre dispositio das Odes só ganha sentido se receber uma resposta positiva a precedente, fundamental pergunta: foi realmente o poeta de Venúsia que publicou seus livros com os carmes dispostos na ordem que lemos hoje? (1989: 19)

 

Para Minarini, como para a boa parte dos estudiosos do assunto, a interpretação de uma determinada organização poética pressupõe "uma vontade ordenadora desde o início" (ibid.:19), portanto da descoberta do autor ou de suas hipóteses. Essa ideia se repete, poucas páginas depois, quando ela afirma que "é difícil pensar que Horácio tivesse em mente desde o início um projeto global" (p. 21), como se o projeto do homem Horácio fosse determinante para o nosso processo interpretativo; ou seja, para Minarini, a interpretação passa pela tentativa de desvelamento do que foi o projeto  pessoal horaciano (intentio auctoris), e não do que é seu resultado material (intentio operis), e aqui que não pode ser compreendido como intenção autoral precisa ser deixado de lado pelo trabalho crítico. Como Barthes, desconfio bastante da possibilidade de acessar com confiança quaisquer dessas instâncias; porque sempre há um espaço, uma alteridade que intervém e necessita da tomada de partido, do interesse crítico ativo.

No recurso de Cairns a Menandro, o Rétor, por exemplo, seria criticável que se trata de um autor posterior — bastante posterior, por sinal (cerca de meio milênio), se formos tratar, por exemplo, de poesia helenística — à maior parte das obras que ele se propõe a comentar. Assim, usando os critérios apresentados por Martins (à primeira vista similares aos de Cairns), poderíamos nos perguntar se tomar por base os textos retóricos de Menandro também não seria um padrão anacrônico de leitura da forma mentis: a apresentação de gêneros retóricos não seria ela mesma uma representação e, portanto, uma interpretação das possibilidades dos textos? Não estaríamos diante, afinal, de uma leitura crítica, por sua vez passível de outra leitura interpretativa e crítica8? É claro que há um certo simplismo nessas perguntas, já que a distância de Menandro em relação aos poemas originais é muito menor do que a nossa, que ainda por cima nem sequer fomos criados na mesma língua (grego, no caso de Menandro, latim no caso de diversos poemas). Não obstante, é preciso ressaltar que o que Menandro afirma não é a forma mentis de Propércio (autor analisado já no primeiro capítulo de Cairns); nem Suetônio (embasamento para Martins) — séculos I-II d.C. — compreende de fato a forma mentis dos pintores e escultores sob o principado de Augusto (séc. I a.C.). Eles podem ter, no máximo, uma posição privilegiada para angariar maior autoridade em suas opiniões; mas é preciso ter em mente que nem mesmo um contemporâneo sabe tudo sobre sua própria época: doutra forma, não precisaríamos hoje de estudos sobre a pós-modernidade, ou sobre a literatura e a arte contemporâneas, porque, como indivíduos do nosso próprio tempo, teríamos de saber o que elas são. Se há algo fundamental decorrente da teoria psicanalítica do início do século passado e que alterou nossa episteme, é a visão do homem como alteridade fraturada de si mesmo (o inconsciente), incapaz de tomar conhecimento total de si: ele também não tem conhecimento total do que o cerca, mas lança perguntas, que inevitavelmente retornam a si, numa dobra da linguagem que de certo modo molda o mundo, dá-lhe sentido; de modo similar, o Dasein heideggeriano encontra-se aberto diante da abertura do mundo, num processo inacabado. Se, por um lado, não pretendo afirmar que as pretensões da teoria psicanalítica ou ontológico-fenomenológica se apliquem ao homem antigo, que certamente pensava de modo muito diverso; por outro, creio que um dos nossos deveres é rever a Antiguidade sob o prisma das teorias modernas e contemporâneas que interferem sobre o nosso modo de estar no mundo. Exemplo: o homem antigo realmente não se via como construção subjetivamente fraturada, porém, se não conseguimos mais confiar na unidade simples da personalidade humanam, como nós o veremos? Assim, se pensarmos que o homem não é idêntico a si mesmo, mas uma construção complexa e desigual cuja consciência é apenas uma superfície, também nenhuma leitura será igual a si mesma, nem pela reprodução idêntica de seus termos. É exatamente isso que aprendemos com o Don Quijote escrito pelo Pierre Ménard de Jorge Luis Borges (1992): a obra não é igual a si mesma. Maurice Blanchot já comentou com minúcia a imagem da tradução que aparece incrustada nesse conto borgiano:

 

Quando Borges nos propõe imaginar um escritor francês escrevendo, a partir de pensamentos que lhe são próprios, algumas páginas que reproduzam textualmente dois capítulos de Dom Quixote, essa absurdez memorável nada mais é do que aquela realizada por toda tradução. Numa tradução, temos a mesma obra numa linguagem duplicada; na ficção de Borges, temos duas obras na intimidade da mesma linguagem e, dessa identidade que não é uma identidade, a miragem fascinante da duplicidade dos possíveis. Ora, ali onde há um duplo perfeito, o original é apagado, e até mesmo a origem (2005: 139).

 

Não seria também a conclusão inevitável a que chegamos ao contrastar os raros casos de autotradução — como os de Samuel Beckett e Vilém Flusser — quando constatamos que os textos traduzidos não são "fiéis" ao original? Beckett recriava seus próprios jogos de linguagem, que explodiam contra qualquer pretensão de pureza semântica, ou seja, traiu-se a si mesmo (Cf. Souza, 2012); enquanto Flusser fazia várias versões de autotradução, alterando o texto, de modo que nem sequer podemos definir o que seria seu original: no caso do artigo "Der Boden unter den Füssen", ele mesmo apresentou o texto em alemão, inglês, francês e português. Só em português temos quatro versões diferentes em tamanho, ordem, argumentos, etc.:

 

Para traduzir, Flusser descobre que não é suficiente recorrer ao texto inicial em alemão, mas que é também necessário retornar àquilo que inicialmente inspirou a redação do texto. Nesse processo, o texto é reformulado, mas de um modo que incorpora os passos anteriores. Como um palimpsesto, o texto em português conterá, de alguma forma, o texto alemão e as associações alemãs eliminadas de dentro dele pela necessidade de adequação à outra língua (Martins, 2011: 157).

 

Em outras palavras: mesmo o próprio autor, ao se traduzir, altera o texto por contingências da nova língua e do novo contexto. Ele age como interpretante crítico de sua própria obra. E mais, um mesmo autor também comenta sua própria obra de modo bastante diferente ao longo do tempo, como podemos perceber quando nos é possível conferir entrevistas tais como as de Roberto Piva (apud Cohn, 2010) e Carlos Drummond de Andrade (apud Ribeiro, 2011), publicadas na série Encontros: a cada entrevista, o poeta revê sua própria obra, o que demonstra que não existe uma intenção unívoca por trás da obra, e que uma leitura não é mais verdadeira quando emitida pelo próprio autor. Por isso a necessidade de um olhar inevitavelmente contemporâneo, porque é na contemporaneidade que esse tipo de acontecimento poético ganha enfoque por parte da teoria e da crítica; assim as relações entre autor, obra e leitor não precisam pender drasticamente para um dos lados, mas se estabelece como uma relação sempre renovada: o sentido de um texto é resultado dessa relação entre a materialidade desse mesmo texto (portanto limitada) e as variantes inumeráveis de leitura.

Com isso, não quero dizer que não devemos ou não precisamos fazer uso das fontes antigas como base nos estudos; mas apenas determinar que, se desconfiarmos minimamente do Autor, como Barthes (ainda que tenhamos reservas ao seu radicalismo e sobretudo aos leitores que o radicalizaram ainda mais), nada nos impede de fazer um esforço a princípio anacrônico de leitura, com bases teóricas historicamente afastadas, desde que elas possam contribuir para fazer uma leitura de determinada obra que se sustente no confronto com a materialidade do texto (ou das imagens) e nos permita repensar tanto o passado como o presente a partir de indagações diversas. Em outras palavras, não existe um acesso real à forma mentis de qualquer autor, muito menos dos antigos; e mesmo que possamos recuperar inúmeras informações sobre as regras de composição e leitura de uma determinada época, nada impede que haja acontecimentos artísticos em geral que tenham passado despercebidos pelos leitores contemporâneos e subsequentes ao autor e que, portanto, não se enquadram em nenhuma perspectiva de sua época — um detalhe imprescindível é que a categorização prescritiva é quase sempre posterior e nem sempre completa; basta notar como a leitura que Aristóteles faz da tragédia ateniense não se aplica a todo o corpus de tragédias que chegou até nós, portanto sua obra hoje fundamental é apenas uma leitura — insisto, fundamental — da tragédia, historicamente mais próxima (cf. Dupont 2007). Não se trata, é claro, de equívoco (logo digno de descarte) do estagirita, mas de atentarmos para o fato de que ele, estudando e comentando a tragédia, fazia sua própria filosofia, isto é, produzia um novo discurso que obedece a outras regras de composição. Não podemos esquecer que, na prática da criação artística, como argumenta Conte, o poeta

 

pode realizar uma nova distribuição dos traços constitutivos do modelo, pode na prática modificar o modelo entendido como código, utilizando certas possibilidades do modelo entendido como sucessão de textos: mas, fazendo isso, propõe ele mesmo um novo modelo, funda ele mesmo, por assim dizer, uma tradição (apud Fedeli, 2010: 395, grifos do autor).

 

Na realização dos nossos estudos, não podemos partir do pressuposto de que uma obra seja estanque e se exaura no conhecimento de seu tempo, que ela apenas se utilize de parâmetros pré-estabelecidos sem burlá-los, ou que se dê inteiramente ao leitor de sua época: os princípios de ποικιλία e cruzamento de gêneros (Kreuzung der Gattungen) presentes na poética de Horácio nascem exatamente do apagamento programático das categorizações rígidas, uma prática poética mais ou menos regular pelo menos desde os séc. IV-III a.C. Se confiássemos na ideia de um leitor antigo capaz de decodificar completamente as obras por meio de sua categorização pré-estabelecida, estaríamos dando a supremacia ao Leitor unívoco ideal, outro conceito muito perigoso, já que na prática só existem leitores carnais, como venho argumentando. É claro que podemos analisar a poética em sua comunidade como uma escrita inter pares que partilham de um sistema de valores éticos e poéticos, para contrastarmos a obra com seu tempo; mas mesmo assim não existe uma totalidade do texto a ser compreendida como resumo desses valores. O leitor, mesmo que do mesmo grupo que o autor, permanece sempre outro: alguém que precisa criar sentido para o texto diante da sua leitura/audição. Nós até poderíamos supor uma espécie de "autor implícito" que constrói seu leitor (Compagnon, op. cit.: 148); mas nada garante que ele seja o mesmo ao longo de leituras diversas: não seria esse "autor implícito" também um resultado de interpretação do leitor? Por outro lado, como se disse, é praticamente impossível teorizar sobre a leitura empírica, já que suas variáveis são vastas. No máximo, o comentador apresenta uma possibilidade de leitura, mais ou menos convincente, que por sua vez será dada a outro leitor, que pode julgá-la bem ou mal resolvida a partir do contraste com suas próprias leituras. Em sua resposta a algumas crítica, nos seminários de Interpretação e Superinterpretação, ao comentar seus estudos coletivos sobre Sylvie de Gérard de Nerval, Umberto Eco sugere uma possibilidade mais ambiciosa para o trabalho crítico, que poderia interpretar "através de que meios semióticos aquele texto cria seus efeitos múltiplos e mutuamente contraditórios e por que na história de sua interpretação conseguiu suscitar e comportar tantas leituras diferentes" (2005: 173); ou seja, uma espécie de arqui-interpretação que explique como repostas diversas aparecem para um mesmo texto. Porém, como o próprio italiano observa logo em seguida, "Devido à falibilidade do conhecimento, suponho que outras descrições descobrirão outras estratégias semióticas que subestimamos, assim como podem ter condições de criticar muitas de nossas descrições" (pp. 173-4).

Assim, retornamos aos critérios de leitura; e penso que as palavras de Hans Robert Jauss podem ser bastante elucidativas, se quisermos pensar o que torna possível a coexistência de leituras diversas de um mesmo texto:

 

Se uma interpretação anterior pode ser reconhecida como errada, isso não se deve, em geral, a enganos históricos ou "erros" objetivos, mas à formulação incorreta das perguntas por parte do intérprete ou a perguntas que não podem ser legitimadas. Na análise das obras literárias, perguntas são legítimas quando se revelam como eficazes diante do texto, como antecipação da interpretação ou, em outras palavras: quando se pode provar que o texto pode ser compreendido como uma nova resposta e não apenas como uma resposta casual à pergunta feita. Com isso, exige-se que o texto possa ser interpretado consistentemente como significado dessa resposta. Se, na história da interpretação das obras de arte, respostas divergentes não se falsificam mutuamente, mas atestam a historicamente progressiva concretização de sentido que se realiza ainda por meio do conflito das interpretações, a que mais isso seria devido, senão à possiblidade de conciliação de perguntas legitimáveis — manifestada ao menos na vivência da arte (1983: 350)?

 

O que quero dizer com isso tudo é que vejo, em geral, duas posições supostamente antagônicas sobre como ler um poema antigo: a) recriar o seu contexto por meio de uma pesquisa histórica, antropológica e discursiva; ou b) apresentar um novo recurso teórico — com o risco de anacronismo — para produzir uma nova leitura. Até segunda ordem, não vejo bom motivo para considerar uma dessas hipóteses seguramente mais confiável do que a outra; também não creio que elas sejam de fato antagônicas, ou excludentes. A bem da verdade, nenhuma das duas existe em estado puro, mas trabalhamos sempre numa mistura entre esses dois pólos aparentemente opostos. É impossível, para qualquer leitor, desvencilhar-se inteiro de seu próprio tempo, do mesmo modo que é impossível ler o passado sem ser invadido por ele: na prática, o trabalho mais tradicionalmente filológico está permeado pela reflexão teórica (consciente ou não) de seu próprio tempo; e não é à toa que os séculos produzem leituras diferentes acerca das mesmas obras clássicas, mesmo que se suponha uma tradição contínua. Se confiássemos em "uma leitura mais adequada", teríamos de refutar por completo todo o desenvolvimento dos Estudos Clássicos como uma espécie de escada de Wittgenstein, que convém derrubar assim que subirmos por ela (cf. Tractatus #6.54, 1990:85). Como argumenta Costa Lima, o movimento não é bem esse:

 

A análise da ficção verbal (em prosa ou poesia) não supõe o emprego de métodos porque romances e poemas, telas e partituras não são corpos convergentes entre si. (Assim, o fato de a écfrase ser um recurso retórico e, como tal, já empregado milhares de vezes não torna entre si comparáveis as obras que a tenham preferido.) […] Tanto nas ciências propriamente ditas, como nas humanidades, tanto na filosofia como na abordagem reflexiva da arte, tem-se sempre a possibilidade de descobrir um novo acesso a seu objeto. […] Da mesma maneira que o cosmo está sempre aberto a novas investigações, a indecidibilidade interpretativa de um poema ou de uma ficção verbal ou de uma tela só subsiste enquanto não houver aparecido uma alavanca analítica mais eficiente. Dito de modo mais impessoal, sua interpretação acatada ou aceitável deixa de sê-lo quando uma mudança na ordenação sociocultural de certa sociedade provoque uma anulação diversa e então motive outro entendimento (2012: 187, grifos meus).

 

Eu acrescentaria que, apesar das mudanças socioculturais em acontecimento, as interpretações passadas sempre podem ser retomadas, relidas, alteradas: as antigas coexistem com as novas, são reinterpretadas, por vezes até se confundem, e seria muito difícil definir estratos claros entre elas. Um exemplo, talvez básico, desse processo de "angulação diversa" parece-me ser o espaço acadêmico que a tradução poética ganhou nos últimos anos: apesar de ser um recurso literário recorrente do ocidente nos últimos milênios, e fundamental para a constituição das literaturas modernas, foi só no século XX que ela passou a receber com mais frequência um estatuto de trabalho crítico (creio que em grande parte pela prática tradutória do make it new de Ezra Pound e pelo famoso texto sobre "A tarefa-renúncia do tradutor" de Walter Benjamin, embasado na teoria romântica e nas propostas tradutórias de Schleiermacher), que no Brasil se estabeleceu, nos anos 1960, com o importantíssimo ensaio de Haroldo de Campos, já mencionado, e mais especificamente nos Estudos Clássicos a partir dos trabalhos de João Angelo Oliva Neto (O livro de Catulo, 1996) e de Raimundo Carvalho (Bucólicas de Virgílio, 2005), ambos produzidos da década de 1990, resultados de pesquisas acadêmicas que inseriam o fazer tradutório em seu projeto interpretativo. A tradução poética, como argumentarei mais adiante, é precisamente o processo do anacrônico como movimento interpretativo, do deslocamento, diferenciamento, da diversão como ferramenta para se produzir um saber sobre o passado.

 

§

 

Como tentarei demonstrar, uma leitura das Odes pode se formular exatamente pela tendência de conectar níveis heterogêneos (tema, metro, fraseologia, léxico, figuras, contextos, etc.), e, por isso, cada ode convida o leitor a entrecruzar informações para produzir leitura, por tópica, métrica, sintagma, ou o que mais se sugira; a delimitação dessas correlações acaba sendo a função do leitor em resposta à materialidade da obra. No caso das Odes, ainda mais, porque o excesso imediatamente impõe a delimitação, por oposição às suas multiplicidades. Nesse sentido, graças a tal entrecruzamento de feixes heterogêneos, sinto-me tentado a sugerir que uma leitura em obra aberta das Odes horacianas poderia também dialogar com o conceito de rizomaem Deleuze & Guattari. Para estes, seu principal efeito é aplicável ao nosso entendimento do real e, por conseguinte, ao nosso pensamento sobre as subjetividades; para eles "qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo. É muito diferente da árvore ou da raiz que fixam um ponto, uma ordem" (1995: 15), e essa ideia pode ser aplicada ao modo de um conceito para efeitos diversos. Ainda segundo Deleuze & Guattari, "toda vez que uma multiplicidade se encontra presa numa estrutura, seu crescimento é compensado por uma redução das leis de combinação" (ibid.: 14). Do ponto de vista dos filósofos, esse seria o grande mal do pensamento dicotômico (radicular, portanto) ocidental, porque encerra a multiplicidade na racionalidade categórica do pensamento, dando assim um formato simplificado ao caos (ou caosmo, como prefere Guatarri) inapreensível da realidade e reduz as leis de combinação à simplicidade da explicação lógica, sem assumir que algo escapa ao pensamento. Na mira deles, é claro, não está a poesia romana, mas o estruturalismo francês, com sua tendência a delimitar uma pequena série de regras que possam explicar a complexidade do acontecimentos empíricos, como no caso exemplar da Morfologia do conto maravilhoso, de Vladimir Propp (publicado originalmente em russo em 1928, mas bastante usado na França dos anos 60), que resumia os contos maravilhosos a apenas 31 funções diferentes (1984). De modo um pouco diverso, eu diria que toda multiplicidade demanda uma redução, que faz dela um processo estruturante por onde se inicia o processo humano de interpretação e produção de sentido. Uso o termo "estruturante" (derivado do particípio presente latino, portanto infectum, inacabado, a caminho), e não "estrutural", por não ver nas Odes uma estrutura fechada, mas uma série heterogênea (daí possivelmente rizomática) que pode se fechar estruturantemente diante de cada leitor para assim ganhar sentido.  Jacques Derrida (1971: 30) já criticava o risco da leitura estruturalista:

 

Por um lado, a estrutura torna-se o próprio objeto, a própria coisa literária. Já não é o que era quase sempre noutros lugares: ou um instrumento heurístico, um método de leitura, uma virtude reveladora do conteúdo e dos termos; a maior parte das vezes as duas coisas ao mesmo tempo, pois a sua fecundidade não excluía, pelo contrário implicava que a configuração relacional existisse do lado do objeto literário; era sempre praticado, mais ou menos explicitamente, um realismo da estrutura. Mas nunca a estrutura era, no duplo sentido desta palavra, o termo exclusivo da descrição crítica. Era sempre meio ou relação para ler ou para escrever, para reunir significações, reconhecer temas, ordenar constâncias e correspondências".

 

Eco (2012b: 37) também tentava separar um estruturalismo ontológico, que buscava a estrutra na coisa em si, ou uma estrutura final, e o estruturalismo metodológico (preferível), que fazia o recurso à estruturação apenas como meio de se compreender alguma coisa, sem pretensão de que a coisa em si realmente se submete-se a tal estrutura. Deixo claro, portanto, que, neste trabalho, qualquer estrutura fica no meio de tentar observar, e não no termo.

A proposta deste trabalho é mostrar um caminho possível, ainda que bastante aberto; para tanto, não posso me fiar numa tentativa de recriação da forma mentis, porque simplesmente não existe uma teoria antiga específica sobre o que pretendo tratar: não há um conceito bem definido de abertura textual entre os antigos; não nos chegou uma clara teorização antiga sobre o que fazer com um livro composto, por exemplo de vários metros diferentes (Horácio é um caso peculiar na poesia romana, com pouquíssimos sucessores9); e praticamente nada acerca de como iunctura e series se interrelacionam num poema para criar um efeito poético, que não é necessariamente o mesmo da oratória; a não ser, é claro, nas palavras do próprio Horácio, que pretendo interpretar à luz do projeto proposto. Isso não implica, como já se pode depreender, que deixarei de lado a pesquisa filológica, os comentadores, o aparato crítico editorial, ou as informações sociais, religiosas, políticas, históricas etc. que hoje temos à nossa disposição. Não desejo reafirmar nenhuma espécie de polarização entre, de um lado, os "teóricos" e, de outro, os "tradicionalistas", como aponta Susanna Morton Braund (2002: 55-6); já que ela mesma afirma que hoje temos uma variedade muito maior de modos de leitura dos textos antigos do que há cem anos atrás e que isso deveria gerar maior versatilidade e tolerância mútua (pp. 59-60). Ao contrário, pretendo, tanto quanto possível, tirar proveito de tudo que puder, por ver como Gian Biagio Conte que "a boa filologia é aquela que […] desqualifica tanto o empirismo como atenção obsessiva […], quanto a teoria como algo de nebuloso, genérico, que perde de vista as articulações ou o tecido fino e específico do texto" (1991: 145).

Assim, este trabalho tem seu lugar no entrecruzamento premeditado das duas frentes; ao tentar rastrear uma tradição desse gênero de fusão nos Estudos Clássicos brasileiros, creio que o importantíssimo livro de Francisco Achcar (1994) seja um precursor, por seu trabalho de análise com entrelaçamento entre teoria bakhtiniana e erudição filológica, entre o estudo das tópicas antigas e os comentários a diversas traduções poéticas em língua portuguesa. Entre os trabalhos estrangeiros, eu poderia citar vários que fazem um entrelaçamento possível, além de Conte, Barchiesi e Fedeli, já mencionados: Hinds, 1998 (sobre intertextualidade); Kennedy, 1993 (sobre elegia romana); O'Hara, 2007 (sobre o problema da potencialidade interpretativa das inconsistências da épica romana); Wray, 2001 (sobre masculinidade na poesia de Catulo, com a inserção, por exemplo, das controversas traduções sonoras de Louis Zukofsky); Janan, 2001 (que utiliza o aparato teórico lacaniano para analisar o livro 4 de Propércio); etc.  Creio que cada um desses trabalhos "híbridos" têm capacidade de provocar aquela "angulação diversa", ou uma nova "alavanca analítica" mencionada por Costa Lima; ou aquilo que Slavoj Zizek chama dialeticamente de lacuna paraláctica: "o confronto de dois pontos de vista intimamente ligados entre os quais não é possível haver nenhum fundamento neutro comum" (2008: 15); como Zizek, eu aposto que "longe de constituir um obstáculo irredutível para a dialética, a noção de lacuna paraláctica é a chave que nos permite discernir seu núcleo subversivo". Ou, talvez com mais clareza a partir das palavras de Pierre Vidal-Naquet:

 

Não há dúvida de que toda história é cruzamento, diálogo entre presente e passado. Os que se interessaram pela Grécia, só pela Grécia […], não foram obrigatoriamente os que nos trouxeram mais novidades sobre o mundo grego. […] O estudo da tragédia grega oferece perigos de atualização selvagem e até de procura da "essência do trágico" mas, para compreendê-la, não é inútil, como os pesquisadores britânicos já perceberam há tempo, ter lido Shakespeare (2002: 32).

 

Desse modo, minha aposta, como já disse, é a de certo anacronismo premeditado10 (de teoria contemporânea e de leitura constante da poesia moderna e pós-moderna em geral), que é inevitável, já que derivado do meu lugar no mundo, como leitor do século XXI; porém esse anacronismo está profundamente permeado por um embasamento no estudo do contexto romano, para, evitando o risco da atualização selvagem temida por Vidal-Naquet, tentar criar uma alavanca analítica razoavelmente nova para a interpretação geral das Odes como um todo; mas tudo isso com a clara consciência de que a priori a variedade dos das coisas ultrapassa qualquer classificação teórica, não somente no plano da intertextualidade, mas em todo processo poético, seja ele antigo ou moderno.

 

 

 

Notas

 

1 Este artigo foi originalmente concebido como prefácio da minha tese de doutorado, Uma poesia de mosaicos nas Odes de Horácio — comentário e tradução, defendida em 2014, na USP.

2 Cf. "A falácia intencional" de Wimsatt & Beardsley (1983), publicado originalmente em 1954, onde lemos que "não é tanto uma afirmativa histórica quanto uma definição dizer que a falácia intencional é romântica" (p. 89), ou que "a alusividade na poesia é um dos grandes problemas críticos que usei para ilustrar o tema mais abstrato da intencionalidade[...] como prática poética, a alusividade chega a me parecer, em certos poemas recentes, um corolário extremo da pressuposição intencionalista romântica e, como problema crítico, ela desafia e faz ressurgir de modo especial a premissa básica da intencionalidade" (p. 99).

3 Obviamente não posso me deter na complexidade do artigo de Barthes, que, a meu ver, trata de muito mais do que simplesmente dos processos de leitura. Penso que o ponto central do artigo é a morte do autor para a literatura moderna, ou seja, como a literatura a partir de Mallarmé buscou outro modo de se mostrar, sem a tendência romântica do gênio criador, por meio do desaparecimento elocutório do sujeito. No entanto, como o texto barthesiano ironicamente existe e significa para além de seu autor, é na desleitura mais corrente que me detenho, a saber: a de que não importa o autor para qualquer tipo de análise literária, qualquer que seja sua época. Já Foucault, no artigo "Qu'est-ce qu'un auteur?" (2004: 290-318) percebe no autor uma função do texto, ou seja, uma relação de discurso, que fica entre o esvaziamento completo e uma presença que ainda dá sentido ao texto: "un tel nom permet de regrouper un certain nombre de textes, de les délimiter, d'en exclure quelques-uns, de les opposer à d'autres. Un outre, il effectue une mise en rapport des textes entre eux" (p. 300). Essa ideia de função é bem próxima do que vemos em Bakhtin (2003: 191-2).

4 Ou, em muitos casos (a meu ver, mais acertados), como o de Conte e Barchiesi (2010: 97, n. 13), em que a intenção se desloca do autor para o texto. Mais adiante, no mesmo artigo, eles afirmam (p. 99) que "depositar a ênfase na funcionalidadee no efeito verificável e não na intencionalidade do autor [...] previne contra um risco frequente em filologia". Para melhor entender a crítica ao conceito de arte allusiva e intencionalidadeem Pasquali, cf. também Conte (1986: 28, grifos do autor): "My intention is to purge any excess of intentionalism from the concept of imitatio. [...] my concern is with describing how such resemblances function within the literary text".

5 Cf. Flores, 2010, artigo onde trato dos problemas derivados da ironia, numa passagem do livro 3 das Argonáuticas de Apolônio de Rodes.

6 Cf. Blondell, 2000, Tarrant, 2000, Levett, 2005, e Scott & Welton, 2000.

7 Cf. os resultados aparentemente inconciliáveis a que chegam Sullivan, 1976 (Propércio como crítico da política de Augusto), Benediktson, 1989 (Propércio como modernista avant la lettre), e Cairns, 2006 (Propércio como autor clássico partidário de Augusto).

8 Cf. a crítica de Paolo Fedeli (2010) ao trabalho e Cairns, como, por exemplo: "é fácil objetar que os rétores tardios teriam construído esses preceitos justamente sobre a base do material literário de que dispunham: mas que esses grilhões preexistissem de modo tão rígido parece difícil admitir" (p. 393); ou "o defeito de base do, não obstante isso, útil e meritório trabalho de Cairns consiste no fato de que ele limitou a investigação ao que se atém ao nível dos conteúdos e negligenciou o que concerne ao nível expressivo dos conteúdos mesmos" (pp. 394-5). Ainda Gian Biagio Conte (1991: 150-9) critica a análise de Cairns por se centrar no conteúdo para determinar o gênero, sem levar em conta as diferenças da forma; mas esse aspecto de crítica ao trabalho de Cairns já se afasta do ponto que aqui comento.

9 Podemos ver um antecedente nas Sátiras de Ênio, nos primeiros livros das Sátiras de Lucílio, na lírica de Lévio (que praticamente desconhecemos), no Livro de Catulo e nos próprios Epodos horacianos. Destes, temos conhecimento mais detalhado apenas dos Epodos e de Catulo, mas no caso deste não temos tanta clareza sobre sua disposição original (há uma tendência para a tripartição, que resultaria em pelo menos duas obras polimétricas catulianas, Cf. Skinner 2003 e 2007 e Oliva Neto, no prelo). Outro ponto a ser lembrado é a herança alexandrina da ποικιλία; cf. Fedeli, 2010: "O livro de poesia era vário pela estrutura, motivos, metro e estilo: o exemplo típico é constituído pelo livro dos Jambos de Calímaco", mas mesmo nesse caso, ainda é pouco o que sabemos sobre a organização métrica, e nada resta de teorização a respeito.

10 Não custa lembrar que diversos anacronismos permeiam mesmo o discurso mais bem aceito na academia. Um bom exemplo são as palavras "arte" e "literatura" para designar os textos romanos. Cf. Sander M. Goldberg: "'Literature' itself may nevertheless remain a problematic term, if not so much because the word and the concept are anachronistic — Romans, as I have argued, could use litterae much as we use its cognates — than because its specific application here excludes a good deal of what traditional literary histories claim as their domain" (2005: 208). Eu diria que, no caso de "arte", o problema é bem maior.

 

Referências

 

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março, 2015

 

 

Guilherme Gontijo Flores (Brasília, 1984) é poeta, tradutor e professor da latim na UFPR. Como poeta, vem lançando a tetralogia Todos os nomes que talvez tivéssemos, iniciada com o livro Brasa enganosa (2013, Ed. Patuá, finalista do Portugal Telecom) e com o poema-site Troiades — remix para o próximo milênio [2014, www.troiades.com.br], enquanto finaliza L'azur Blasé, ou ensaio de fracasso sobre o humor (Ed. Kotter, no prelo). Publicou traduções de Rilke, d'A anatomia da melancolia, de Robert Burton (vencedora dos prêmios APCA e Jabuti), das Elegias de Sexto Propércio (2014, Ed. Autêntica) e do Paraíso Reconquistado, de John Milton (2014, Ed. de Cultura, trad. a 10 mãos). No momento, prepara uma edição completa das Odes de Horácio. É coeditor do blogue Escamandro [www.escamandro.wordpress.com].

 

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