O haicai se insere numa tradição poética palaciana japonesa que remonta ao século X. A partir do século XIV, criam-se várias regras para a elaboração de poemas longos das quais as mais importantes para nós são as que se referem à primeira estrofe, chamada "hokku" — regras essas que continuam vigorando no que hoje se conhece como haicai, quais sejam, estrofe de dezessete sílabas em três versos encadeados de 5, 7 e 5 sílabas, que faz referência a uma estação do ano e compõe uma unidade sintático-semântica em relação às outras estrofes.

Nesses poemas, o fluir do tempo e a contemplação da beleza possível nessa transitoriedade é o tema principal. O haicai pertence a um contexto em que, diferentemente do nosso pensamento ocidental, a estética, a ética e a religião estão em estreito vínculo. Segundo Haroldo de Campos, o haicai é um artefato linguístico sucinto e altamente tensionado.

O haicai implica contemplação, sensibilidade, delicadeza, elegância, sutileza, gentileza. É uma forma de ver / viver o mundo, de disciplina e exercício espiritual, de cultivar o caráter e o espírito.

Além disso, o ideograma, por sua plasticidade, como bem nos chamou a atenção o próprio Haroldo, em seus ensaios, vincula-se a um pensamento analógico em que as ideias são construídas por relações combinatórias, não excludentes, como as do pensamento lógico aristotélico.

E os haicaístas contemporâneos, como Elza Amaral, e Beatriz Amaral, aqui presente, sabem que as regras, os preceitos poéticos, podem e devem ser quebrados em prol da intenção e do efeito almejado em cada poema.

Bashô, importante poeta do século XVII, afirmava que um bom verso é aquele que é fruto de uma "visão livre", sem filtros, como a de uma criança.  Reconheceu três virtudes no exercício poético: aperfeiçoamento espiritual, intuição e espontaneidade. Para Bashô, o poema é a "arte de, com o mínimo, dizer o suficiente".

Passando, agora à análise das linhas de força na obra de Elza Amaral, podemos dizer que essas reflexões iniciais sobre a tradição do haicai encontram-se em muitos fragmentos, como em:

 

 

fim de verão

caem folhas das árvores

tapetes dourados (Libélula)

 

 

Nesse poema, é como se, após os dois versos iniciais, que marcam a passagem do verão para o outono (Fim de verão / caem folhas das árvores), brotasse subitamente, fruto de um momento de iluminação, uma metáfora que expressaria com perfeição e plasticidade essa transformação: "tapetes dourados".

E assim, traduzindo, em ampla paleta cromática e escala de tons musicais, as nuanças das emoções, da viva alegria à introspecção, a autora nos oferece momentos de luz e encantamento.

A libélula, inseto preferido da poeta Elza Amaral, associa-se a muitos significados nas diferentes culturas, entre os quais os principais são os de renovação, força positiva e o poder da vida. A libélula inclui-se entre os seres de luz, como a gaivota, o sabiá, o pássaro azul, o vagalume e as fadas, que habitam seu universo imagético, e "fazem chover colorido / em pleno verão".

Flores, como girassóis e azaléas, aromas que invadem o sono, como em:

Sonho com a noite

travesseiro de lua

aroma de jasmim  

 

 

Narciso que se surpreende ao olhar a imagem refletida:

 

 

Olho-me num lago

ao meu lado a garça

surpresa como eu  

 

 

Percepção momentânea que se entrevê também em:

                                

bem-te-vi   

acorda a lua

na aurora   

 

 

Plasticidade e sinestesias, isto é, mistura de sensações de registros sensoriais diferentes, como em:

 

 

meu olhar distante

perturbou-se no arco-íris

da tua flauta (Primeira Lua)

 

 

Movimentos opostos, típicos do haicai, como o velado e o revelado, a presença e a ausência, o real e o imaginado ou, como nos três poemas seguintes, a permanência e a transformação, o ruído e o silêncio, o escuro e o brilho:

                                   

 

retoma a bruma       

cessa a música do vento

a natureza para 

 

Noite silenciosa

sob a luz das estrelas

o coaxar dos sapos

 

Praça escura

apenas o lampião

e os olhos do gato

 

 

Finalizo citando um trecho que compõe a contracapa do livro Primeira Lua, em que a autora, em prosa poética, nos convida a imergir no universo natural que a inspirou nesse livro e no seguinte:

 

As folhas caem das árvores e a Natureza tece um tapete mágico. O ar é dourado e místico... Logo os pássaros emigram. Não encontrando as copas frondosas para construir seus ninhos, evitam a neve e o frio. Aos  poucos, as cores vão voltando, através das flores que renascem e da presença lírica das aves. Enfim, o sol se mostra em sua plenitude e aquece a vida, que se renova em ciclos de esperança. Olho o velho papiro e em mim um enorme desejo: haikais. (Primeira Lua)

 

E assim, com essas palavras de otimismo e renovação, encerro essas minhas breves reflexões acerca da obra da extraordinária poeta, contista, cronista e musicista paulistana Elza A. Ramos Amaral.

 

 

Para ler haicais de Elza A. Ramos Amaral clique aqui.

 

 

 

março, 2015

 

 

Maria Cecília de Salles Freire César. Doutora em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa/USP, Mestre em Comunicação e Semiótica/PUC-SP, autora de A dança das vozes no evangelho poético de José Saramago (1996) e As representações do imaginário popular nos romances de Carlos de Oliveira (2007).