Cinco poemas orientais e um do Oriente Médio

 

 

Tão simplesmente (a flautista de porcelana)

 

 

1

 

 

tire seus dentes de mim
por favor, com delicadeza
até que minha pele esqueça
até que ela amoleça
mais uma vez, entre os dedos
do futuro, onde tudo se oculta

 

 

 

2

 

 

bom mesmo é quebrar
ou partir ao meio os lugares
remover a casca das palavras
com unhas indelicadas
e, à inacessível invocação
do silêncio, blasfemar

 

 

 

3

 

 

o domingo dentro de cada dia
se espreguiça latejando
na mesma punção que ele causa
e balança como os cabelos
de uma boneca esquecida
no vento

 

 

 

4

 

 

seus olhos parados
o que veem ou sabem?
não têm desastres
ou recomeços por dentro
só um inútil esquecer-se
no corpo imenso

 

 

 

5

 

 

ela leva uma flauta
que não sabe soprar
e pede ao vento que toque
mas ele recusa
e olhando em seus olhos
a refuta

 

 

 

6

 

 

a visão enorme dos dentes
interrompe a passagem do tempo
e numa corte de insetos
um vagalume
a levará sem que ela queira
ao caminho do azar e da sorte

 

 

 

7

 

 

(a flauta em sua mão
objeta
ela quer apenas
ser aquela coisa
que ela não é
inaudita)

 

 

 

8

 

 

o que eu faço de melhor
são desenhos nas nuvens
que tapam o sol inclemente
só eles não chovem
nem podem ser vistos
tão simplesmente

 

 

 

 

 

 

Bushido

 

 

1

 

 

conservo a esgrima para as fatalidades
aos inimigos devolvo as vinganças
vou sobre os cavalos em fuga

(fumaça ardendo no olho
fratura do braço ao meio
cravo espetado no pé)

 

 

 

2

 

 

têm dois dias e tudo se acaba
uma semana e chega o verão
amanhã tudo de novo não

(como pode ser tão simples
o mundo sem divindades
sem sorte sem azar sem matanças?)

 

 

 

 

 

 

Cortejo oriental

 

 

uma fileira de animais japoneses, uma fogueira, uma figueira

uma dança embalada pelos pífaros, os tambores batem e são ouvidos

uma cortina sutil é uma parede, há um limite pueril que a precede

uma ideia que se completa em silêncio, uma silhueta, uma sineta

uma vez o cortejo sendo oriental, a vida não acaba tão mal

 

 

 

 

 

 

O tigre e o rajá

 

 

1

 

 

sou cada vez menos rio e toda a água

cada vez menos fogo e todo incêndio

cada vez menos eu salto mas não aterriso

 

 

 

2

 

 

a minha face é outra também, cada vez menos minha

fui me deixando nos espelhos, nos olhos dos outros ao inverso

e fico assim por um gosto peculiar (eu sei que são um bom lugar)

 

 

 

3

 

 

sou um tigre dispensando as listas, cada vez menos felino,

e que deixou a escassa floresta sem uma casa sequer, todo afobado

e cada vez menos dentro que fora, agora não tem por posse nem o telhado

 

 

 

4

 

 

aposto que um dia desses serei tratado como o rajá que não sou

cada vez menos rei e mais um tigre, do que eu era, me vou

e se fui demais ou um pouco além, cada vez menos tigre também

 

 

 

 

 

 

"Katanas"

 

 

 

traço partes da palavra
__como em lâminas
____com meu nome todo
______e o sangue púrpura do meu corpo
_________dilata e desvia meu olhar do resto

____________sou tudo eu mesmo
______________até que não vaze de mim
________________ar nenhum e eu encontre
___________________no escuro
_____________________o alvo inteiro

_______________________tenho a velhice nos cabelos
________________________e nos dentes
_________________________eu já não posso
________________________demorar o meu olhar
_______________________inutilmente

_____________________é sempre quando preciso
___________________que me faltam armas —
_________________de sobrevivência
_______________só tenho meia chance
_____________sendo honesto

__________meu passo agudo
_______pode falhar a meio caminho
____a idade é que
__plantou em mim
um conselheiro

 

 

 

 

 

 

No caminho de Sefelá

 

Therefore I will wail and howl, I will go stripped and naked:
I will make a wailing like the dragons, and mourning as the owls.
Micah 1:8

 

 

É quase tudo a mesma coisa, pensando bem.
O anelo inútil dos anjos; a esperança sofrida dos crentes;
o desapego trôpego dos bêbados; o desafogo tácito do pranto;
o desespero vago dos sons. E o imperdível número dos astros
cumprindo sua trajetória, até a hora de dormir das crianças.
É quase tudo o mesmo, visto de longe. E a face serena esculpida
sem mármore, na carne, é ainda mais bela à distância.

 

No caminho de Sefelá as corujas bicam meus braços.

 

Depois, quando daquele lado estiver Zaanã e forem outros
os escravos, e os barcos partirem para além, eles levarão
na sola dos pés um pouco dessa areia para moldar
a tristeza dos olhos dessa mãe, e as esperanças famintas minguando
nos farrapos dos seus trajes esgarçados.

 

Mas, por enquanto, vou a caminho.

 

Eu tive conforto. Pouco, mas bom. Dividi meu pão e meu vinho e,
na época de fartura, joguei até às raposas uns pedaços. A floresta nós
acabamos com ela revezando as mãos no machado. Nossa caça
era pobre e quando as crianças começaram a morrer
nós partimos. Estas as nossas razões.

 

Antes de partir, carreguei as pedras para o interior da casa.

 

Tentaram-me as palavras simpáticas mais que promessas descabidas;
mais a saúde do rebanho que uma possível riqueza; o sono justo
e um lugar definitivo mais que sacolas de sal; a madeira com que
fazer um barco que o mar aberto.

 

Trêmulo, sei que a febre retorna.

 

O verão sempre foi insípido e seco. A lua sempre esteve lá em cima
e, como um pêndulo, sempre voltava. Mas eu nunca mais voltarei.
O inverno nunca fora tão frio.

 

Dei nome aos ladrões e virei eu mesmo o bandido.

 

Não toco flauta ou tambor. Já não bebo. O ar me alimenta
e o vento quente diz que eu devo flutuar. É como fazem
as aves para sobreviver. Deixei provisões sob a cama.
Tenho um grito que deseja fazer-se ouvir e isso é o que importa,
por enquanto. A miséria é maior do que eu previra.

 

Distribuo ordens que ninguém ouve. Pelo menos as corujas partiram.

 

Gosto de sentir as pedras nos pés. Gosto do perfume do mar
e do incenso que eu nem lembrava mais. Do olor da terra
túrgida pela manhã e ter de subir bem alto para entender
onde estou e que o futuro é.

 

As aves já não vêm aqui.

 

Prefiro que não haja espelhos e que não me digam. O meu estado
fui eu mesmo quem causou. Comunico estas dores às cabras e em
suas pegadas. As cãibras? Não contem a ninguém sobre elas, eu disse.
O melhor de falar com os pastores é que eles jamais nos entendem.

 

Não deixei para trás um camelo, uma tenda, uma sombra.

 

Sei cantar como as aves e não o faço. Sei cultivar o trigo e não o faço. Sei
aborrecer os demais e não o faço. Sei agradar os ímpios e não o faço.
Sei insultar quem merece e não o faço.

 

O peso das minhas roupas eu deixarei nesta enseada.

 

Quero que saibam o que vim fazer aqui. Vim buscar as pedras da
minha lapidação. Vim riscar meu nome no couro. Vim fazer com que jamais
esqueçam que sou imperdoável como este deserto vem sendo comigo. E que fui
habituado a perecer e não deixo que me toquem ou alcancem.

 

Quando deveria fugir, esperei.

 

Os cravos são ásperos e velhos. A tarde é mais longa que o normal. Seus
pulsos são cruéis como espadas, mas não há espadas em Samaria. O que me dói,
então, que o grito natimorto encerra e define? São os outros? É o mundo?
O futuro? A espécie de sinais que me deixaram eu entendi como quis. Se este
caminho não me leva a Sefelá, eu vi tudo o que precisava. De longe, daqui,
de onde posso ver, é igual a de onde eu vim.

 

Deixai-me aqui.

 

 

 

 

[Poemas do livro Frente Fria, inédito]

                  

 

 

 

 

 

 

 

 

[keanu reeves & katana]

 

 

 

 

Lucio Carvalho (Bagé/RS, 1971). Autor de Inclusão em Pauta (Porto Alegre: Ed. do Autor/KDP, 2015), A Aposta (Porto Alegre: Movimento, 2015), do blogue Em Meia Palavra  e editor da revista Inclusive – Inclusão e Cidadania. Escreve ficção, poesia, crítica literária e artigos jornalísticos para diversas publicações.