Casulo rompido

 

 

Pouco antes de o carro parar, ele acordou. E rapidamente seus olhinhos começaram a devorar as curvas e as cores. O céu alaranjado e as árvores corpulentas que recortavam o sol e emolduravam a estreita estrada de terra pertenciam a uma vida virgem em que ele desejava encostar. Um mundo que, mesmo separado pelo vidro, parecia mais seu do que aquele do apartamento onde morava.

Ainda no tempo em que sequer conseguia emendar uma palavra à outra, as pupilas de Lucas denunciavam sua fome de beleza: nos poucos passeios à praça, ao ver as árvores (mesmo que espremidas por muretas de concreto) ou as pombas equilibrando-se nos fios de energia, ele ficava teso no carrinho e abria, para a babá, um sorriso doce, deficitário de dentes. Mais tarde, toda manhã, ao passar pelo pequeno jardim de entrada da escola maternal, jogava uma mãozinha contra a outra e reproduzia o som amortecido da reverência.

Logo que o pai retirou a chave da ignição, Lucas saltou da cadeirinha. A mãe, com a preocupação que lhe fora embutida no ato da concepção de Guilherme, tentava se livrar do cinto para correr ao banco traseiro e proteger a cria, ao mesmo tempo em que pedia calma ao filho caçula. E você, Guilherme, não toma conta do seu irmão? Ele vai meter a cabeça na porta! Guilherme segurou-o pelo braço, porém, assim que a mãe saiu, deixou o irmão escapar pelo vão dos bancos. Com o coração entre os dentes, Fátima abriu a porta de trás e socorreu o menino moldado com seus genes há pouco mais de quatro anos.

Lucas deixou o carro feito um faminto que avista um prato farto. Queria o quanto antes fazer parte daquele mundo, cujo aperitivo experimentara através da janela em movimento. Mas sem demora seus pezinhos foram descolados do chão. No colo de Fátima, beijou a avó e o perfume das rugas acariciou suas narinas. Como cresceu esse meu neto, já é um homenzinho! O avô pegou o menino pela cintura e o jogou três vezes para os braços das nuvens, arrancando dele um riso vertiginoso. Os seis tomaram a direção da casa. Agarrado ao pescoço do velho, Lucas se agitava ao ver que o jardim ficava menor a cada passo do gigante de pele frouxa.

Mal a família entrou na sala, Lucas começou a importunar o pai. Posso ir lá fora? Só um pouquinho. Guilherme vai comigo... O homem olhou para baixo, franziu o cenho franzido e sacudiu a barba para os lados.

— É muito perigoso, filho. Não é como o jardim da escola.

Óbvio que não era. Por isso tamanha voracidade do garoto. Pediu, implorou, insistiu. Sem sucesso. Viu-se forçado a usar o subterfúgio que não costumava falhar. Os gritos, desproporcionais às lágrimas, espalharam-se pelo casarão e, em poucos instantes, Otávio saía pela porta com duas crianças, uma de cada lado.

O menino mais novo se deslaçou do pai. Mesmo com as pernas pouco experimentadas, alcançou ligeiramente a imensa mancha viva que se formava a uns cinquenta metros da entrada da casa. De longe, o homem gritou, não tire o tênis, um espinho pode te machucar. Segundos depois Otávio chegou com Guilherme nos braços e recolheu as meias e o calçado do caçula.

Lucas, enfim, entrou no bosque que fazia parte das propriedades dos avós. E andava de modo rítmico, como se algo de dentro da flora o sugasse suavemente, com certa persistência. Ele era um títere encantado; um ser no qual o êxtase espreguiçava seus tentáculos.

As árvores, o menino não dava conta de reter de uma vez, eram para ele divindades do espaço; deusas que seus sentidos desejavam cheios de razão. A relva parecia penetrar nas solas dos pés miúdos e subir pelas pernas até o peito: a cada passo, Lucas ficava maior, mais forte, mais membro do meio. Ele sequer percebia o pai e o irmão que vinham alguns metros atrás. O sentimento que ia se alastrando, umedecia as paredes do corpo ainda prematuro. Mas ele não sabia suar: abismado, deixava o líquido salso escorrer pela testa até os olhos (ferramentas de função fundamental) pedirem auxílio à manga da camiseta.

Como, no auge dos seus quatro anos, aquela criatura loira, rechonchuda e saltitante, com menos de um bairro na memória, poderia se conter com tantos tons? Juntou sua pele às pétalas lilases e estremeceu subitamente. Depois, passou a acariciar as cores alcançadas pela vista, uma por uma, com mãos que, salvo pelo tamanho, pareciam de um artista que admira sua obra.

— A mamãe, a vovó e o vovô estão esperando a gente para o almoço. Temos que ir, meu filho. E o Guilherme está com fome.

A voz do pai era sorumbática se comparada ao que ele sentia: o som sequer roçou os tímpanos do menino, que continuou carregado rumo ao riacho. Sem pressa. Simplesmente sendo. Contudo, quando avistou a água transparente correndo como uma criança, sentiu vontade de correr também. E correu. Correu ao lado do leito molhado até que algo estancou suas perninhas: sobre a folha esverdeada com os nervos à mostra, a borboleta mexia suavemente as asas, gozando das carícias do vento. O peito de Lucas, branco e minguado, aguentou com deleite os solavancos: a vida se debatia dentro dele. Quis testar a realidade daquela paleta inebriante, mas logo que moveu os dedos em direção ao bicho, as cores começaram a flutuar. O movimento suave do azul cintilante, do laranja e do verde claro entorpeceu o menino. Era como se a alma se multiplicasse dentro do corpo. Ele não conseguia fechar a boca, não conseguia manter-se sobre as pernas, não conseguia piscar. Aos pulmões róseos faltou oxigênio.

Após uma coreografia ampla e suave, a borboleta parou a poucos centímetros do seu nariz. O menino imaginou que o inseto quisesse tirá-lo para dançar e fixou a retina nas asas coloridas até perder o equilíbrio. Inspirou profundamente e espremeu com força os olhos para sulcar aquele momento na memória. Com isso, não percebeu a aproximação de Guilherme. Ao descolar os cílios, o irmão mais velho estava à sua frente. Entre os dois, o ser flutuante e o peso do ar. Guilherme abriu os braços em forma de cruz e, com um movimento abrupto, esmagou o inseto. Instintivamente Lucas se atirou para abrir as mãos daquele menino grande que, por trabalho do acaso, tinha nas veias o mesmo sangue que ele. Quando as palmas se separaram, houve ainda um esboço de movimento, misturado a um novo tom, que carregava o sofrimento, mas também o amor. E pela primeira vez Lucas chorou em silêncio.

 

 

 

 
 
 
 

Festa

 

 

          Não sei ao certo quantos são; talvez quatro ou cinco. Meus olhos teimam em ficar embaçados, talvez receosos de que isso seja verdadeiro. Ou talvez eles prefiram ocultar o que não são capazes de enfrentar. São quatro, agora está claro. Papai e mamãe de um lado, Marta e Ricardo do outro. Os oito olhos como se fossem facas apontadas para mim. O ambiente, mais escuro que nas noites anteriores, ostenta alguns enfeites: bexigas roxas à porta e uma fita avermelhada que, com aparente desprezo, cruza a parede da esquerda. O quarto está feito uma moça pálida que se maquia pela primeira vez. Ao lado da cadeira de rodas, um bolo redondo com velas acesas ao centro. A pilha de embrulhos brilhantes ao pé da cama traz à tona os natais da minha infância: papai vestido de vermelho com barba postiça e sorriso autêntico, pondo os presentes sob o pinheiro. Depois do monte harmonicamente construído, ele me pegava no colo e me perguntava se eu tinha sido uma boa menina durante o ano. Rapidamente, eu balançava a cabeça para cima e para baixo e ele me colocava na pilha colorida. Aqui, os embrulhos não passam de um espectro da alegria; um exemplo de que a boa vontade tem o poder de ofuscar o bom senso.

  [Parabéns pra você, nesta data querida.] Seis mãos se autoflagelam para darem ritmo aos lábios de onde saltam as sílabas da cantiga popular. Mamãe não bate palmas porque segura as rosas. Todos os dias ela traz um ramalhete. Há quantos dias? Ouvi o Ricardo dizendo ao telefone que estou aqui há três semanas. Semanas ou meses? Nunca contei à minha mãe que sou alérgica a rosas? Não lhe disse tantas coisas! Por quê? Sei bem por quê. Porque tive medo de que minhas palavras ficassem à deriva. Medo de que elas voltassem vazias para os meus ouvidos. Mas digo agora, mãe. Não por piedade, não por arrependimento. Digo para tentar me desfazer destas palavras. Quem sabe, sem elas, seja mais fácil desgrudar-me destes lençóis ensopados. Esforço em vão: de tão pesadas, minhas frases não conseguem alcançar seus tímpanos; estão tão imóveis quanto o meu corpo. Condenadas a apodrecerem na minha língua!

Ricardo, por que estas palmas trêmulas? Por que estas mãos que mais parecem as de uma criança constrangida? [Muitas felicidades, muitos anos de vida.] Eu quero as suas mãos, aquelas que me apertavam até eu gozar. Suas mãos que se encaixavam às minhas, nossas linhas da vida sobrepostas numa cópula que jurávamos eterna. Quanta ingenuidade! Não há juramentos de amor que o acaso não aniquile.

         [Viva a Marcela!] Viver? O que significa isso, papai? Com a dificuldade de quem carrega uma biografia espessa nos ombros, ele se abaixa e, num sussurro, despeja palavras em meu ouvido, como fazia quando eu chegava com o boletim escolar pintado de vermelho: aproximava o bigode grisalho do meu rosto e minhas lágrimas, intimidadas pela candura das palavras, cessavam de descer. [No ano que vem tenho certeza de que você vai soprar as velinhas, minha filha]. A mágica acabou, papai: suas palavras não podem reanimar meus membros. [A Marcela vai ser abençoada, porque o Senhor vai derramar o seu amor.] Que derrame uma avalanche até me asfixiar!

         Colocando seus velhos pulmões a meu favor, papai acaba com o escárnio das chamas que dançam acima das velas enterradas no meio do bolo branco. Sim, sou os pavios apagados presos aos dois números “dois” feitos de parafina, chamas que nunca voltarão a arder. Após a cantoria, mamãe acende as luzes. Abruptamente, vejo o farol daquele carro: noite turva, neblina, água, vento, o motorista não tinha como me ver. Asfalto escorregadio, freio algum funcionaria bem. E por que eu caminhava tão perto do meio-fio? Sempre tive medo de muros e grades; desde pequena andava de mão dada com o papai pela cidade, ele sempre do lado de dentro da calçada, me protegendo das paredes. Onde estava sua mão naquela hora, pai? As luzes cresceram à minha frente. Cresceram. Cresceram mais. Ficaram dolorosamente sublimes e se estilhaçaram ao encontrarem meu corpo. Meu corpo estilhaçado. O motorista desceu para me socorrer? Sim, fez tudo o que podia, papai jurou. E daí? O farol do carro apagou as luzes do meu porvir.

         [Não há problemas com o aparelho vocal da Marcela. Deve ser algum entrave psicológico que impede sua filha de falar, senhor Cícero]. Após ouvir a sentença do médico, no mesmo dia que aqui me colocaram, papai sugeriu que me comunicasse com os olhos até que eu voltasse a conversar. De certa forma, só dávamos continuidade ao que fazíamos desde que eu era muito pequena. Sempre que tinha algo a falar a ele, algo que minha mãe não podia saber, dizia com os olhos. Foi assim quando quebrei o vaso de porcelana que ela tinha ganhado da vó Maria, herança de gerações remotas. Fui eu quem quebrou o vaso, disse papai à esposa indignada quando sentiu a aflição nos meus olhos.

         [Agora é hora de abrir os presentes.] Marta pega a caixa mais brilhante do monte ao lado dos meus pés entregues. [Adivinha quem trouxe este aqui... Vou dar uma dica: esta pessoa saiu do mesmo buraco que você!] Mesmo presa em meu silêncio, cumpro minha função de irmã mais velha: Marta, que modo de falar da vagina da nossa mãe! Ela se aproxima e estende o colar a menos de um palmo do meu rosto. [Gostou?] Pisco uma vez, ela sorri. É o que ela precisa para abraçar a bijuteria prateada em meu pescoço. Nas lentes dos seus óculos vejo novamente o reflexo desfigurado que me atormentara em algumas madrugadas: um rosto roxo com a boca curvada para baixo; um pescoço deflorado por um tubo de plástico. Um bicho que não quero que seja eu. Mas o que pode a vontade perante a fortuna? [Ficou lindo, não?] Com olhos que agora parecem estrangeiros, pisco novamente: não tenho o direito de arrebentar as fronteiras do mundo da minha irmã.

  Marta cede lugar à nossa mãe, que coloca seu embrulho sobre a barriga que já me pertencera. Feito um animal faminto, ela rasga o papel brilhante e retira um quadro grande com moldura rococó de dentro da caixa. Com a voz vacilante, diz que aquela imagem de São Judas Tadeu me ajudará a sair dessa situação. [Você precisa acreditar, minha filha. Nós não compreendemos os planos de Deus, mas Ele sabe o que faz da nossa vida. Nunca perca a fé. Reze, reze bastante porque Deus vai te escutar!] Não transfira para Deus o que você não soube fazer, mãe.

Ricardo se aproxima da cabeceira, não consigo ver nitidamente sua feição: o tubo de oxigênio priva minhas retinas da metade esquerda da sua face. Ele se ajoelha na cama e beija minha testa. Não me olhe assim. Onde estão os olhos que me engoliam antes mesmo que eu me despisse por completo? Numa das mãos, meu namorado traz ao pé da cama a caixinha aveludada que pertencia à pilha. [Amor, comprei seu presente dois dias antes do acidente. Já tinha planejado esta surpresa há quase um ano para o dia do seu aniversário.] Onde está sua outra mão? Deve estar apertando a minha. [Você aceita se casar comigo?] Brincadeira de mau gosto, Ricardo! Guarde este anel. [Ficou lindo.] Ele traz minha mão direita para junto dos meus olhos: um animal asqueroso agarrado ao meu dedo anular. [Não chore, amor.] Você ainda não se deu conta?

[Que apito é este? Chame a enfermeira, Marta. Rápido.] Nenhum de vocês percebeu que não há como enfeitar os fatos? [Coração disparado, acione o bipe do doutor Edmundo.] Sou eu que estou vegetando aqui? [Doutor, salve a minha menina.] [Ela está se urinando] Vocês não conseguem ou não querem enxergar? [Por favor, senhora, afaste-se da cama.] Não quero que sintam pena de mim, ouviram bem? [Marcela, olhe pra mim!] Estou olhando, pai. Como sempre. [Ela parou. Reanimação, enfermeira: oxigênio. De novo. Temos pouco tempo; ela pode ficar com sequelas neurológicas. Desfibrilador a 240 joules. Afastem-se da paciente. Um, dois, três, vai! Mais uma vez, agora em 360.]

 

*

 

Levanto as pálpebras como fossem as grossas cortinas do mundo, espetáculo de estreia. A luz do sol ilumina levemente o que se assemelha a um quarto de hospital. Um homem me observa atentamente. O que são estas bexigas murchas à porta? E esta fita vermelha pendurada? Um bolo de aniversário virgem: quem está completando 22 anos? Tento me levantar, porém meus braços e minhas pernas parecem costurados à cama. Acabei de acordar, como posso estar tão cansada? Com licença, o senhor poderia me ajudar, por favor? O homem, que sustenta uma caixa colorida no regaço, não me escuta. Eu não me escuto. Mas ele percebe meus olhos inquietos e se aproxima. Ao lado da cama, fica um longo tempo acariciando meus cabelos. [Sente-se melhor?] Não, não sinto nada, senhor. Absolutamente nada. [Não chore. Eu trouxe uma coisa que você vai gostar.] Ele retira uma foto de dentro da caixa e me mostra: um homem sentado numa cadeira de balanço com uma menininha de uns dois anos no colo. Homem que se parece muito com ele. É ele. [Você se lembra de quando tiramos essa foto, minha filha?] Filha? Ele me chamou de filha?

 

 

 

 
 
 
 

Maquinando

 

e quando vence o boleto da moto o aniversário da tia Marta é no sábado ou será no domingo ela nasceu no dia de santo acho que vence hoje multa caralho pago amanhã aproveito e compro uma lembrancinha pra ela chegar de mãos abanando não é lá muito educado falta de educação é não ver o sobrinho há tanto tempo a mãe sempre que me via ao lado dela dizia nossa como vocês se parecem se não fosse meu filho jurava que tinha saído da sua barriga Marta e agora nem me lembro da cara da velha só telefonou porque está com a água no pescoço depois que a mãe partiu todo mundo ficou distante eu e o Wesley a gente era carne e unha quando crianças ele me emprestava roupa eu ajudava ele com as moças hoje a gente mal se vê aquela mulherzinha que arranjou põe o coitado no chinelo isso sim quem será que vai ser eliminado hoje preciso assistir ao paredão do Big Brother alô sou eu não não quero outra assinatura de jornal minha senhora aliás quero cancelar a que tenho agora os resultados da rodada eu vejo pelo computador é can-ce-lar não não sei o meu cpf de cor alô alô quantos dias ainda vou ter que aguentar aquela cobra lá em casa tenho certeza que essa história de reumatismo é desculpa pra ela ficar pendurada no ouvido da Rose descendo a língua em mim sorte minha que a Rose não puxou pra mãe ela sabe muito bem o macho que tem em casa boa-tarde seu Tobias parece que vai chover sim devo ter cara de meteolo metero de homem do tempo pra esse português idiota amanhã preciso acabar o trampo de qualquer jeito o Almeida já está no meu pé se perco este emprego estou fodido como vou pagar a moto sem falar nas outras contas todas se bem que o seguro-desemprego taparia o buraco por alguns meses que merda esse meu time perder em casa com gol contra agora ficou quase impossível alcançar o líder boa-tarde moça quanto é o deixa-me ver aqui o GravTest tudo isso à vista você não me dá um descontinho vou levar não tem remédio então é só mandar ela mergulhar essa fitinha no primeiro xixi do dia que cor não pode ficar vê também um lexotan sem receitinha tá obrigado já tenho escova de dente não preciso de limpador lingual ótima tarde pra você também a cara desses atendentes nunca diz o mesmo que a boca quantos anos faz que conheço a Rose foi no segundo ano do colégio acho que não ela parou no meio do primeiro hoje sai o resultado da megassena estou até vendo eu com essa bolada na conta comprando uma casona fazendo churrasco de segunda a segunda muita cerveja e pagode de primeira ah vou encher a Rose de ouro encomendar um carro conversível do estrangeiro e mandar o Almeida pra puta que o pariu não dá seta não desgraçado tirou a carteira de motorista pelo correio vai trabalhar vagabundo homem forte desse jeito pedindo trocado esqueci de comprar o barbeador pra que serve a barba pra proteger a cara pra esconder a cara serve pra ser feita pra quê mais doze e oitenta mais quatro e sessenta o dinheiro está contadinho não sei porque comprar essa camisa já tenho a que usei na primeira comunhão do sobrinho da Rose ela está tão feliz nunca tinha sido convidada pra ser madrinha de casamento o Ricardo é como se fosse um irmão dela de frequentar a casa e contar segredo por isso ela faz questão que eu compre roupa nova vamos aparecer em tudo que é foto o povo vai colocar na internet vestido chique ela alugou vermelho e azul de renda só precisava emagrecer um pouco aquelas pelancas fugindo pela renda como assim já encerraram o expediente ainda são cinco pra as seis amigão o dinheiro já está trocado até escolhi a camisa passando por aqui ontem é aquela ali da ponta de manga longa eu sou um cidadão pago meus impostos antes do vencimento tem que ter um jeitinho a Rose vai me matar é eu entrando em casa sem a camisa e ela atirando a faca no meu pescoçoserá que vou pro céu não estou no mesmo degrau que o padre Ambrósio ou que as senhoras que puxam o terço de terça à noite porém não posso ir pro mesmo lugar que um matador de aluguel ou um político decerto foi pra evitar esse tipo de confusão que Deus inventou o purgatório o padre disse que não se fica lá por muito tempo só até pagar os pecados mais graves eu me esforço pra seguir os ensinamentos dele amar ao próximo e tal mas é difícil sem crédito celular da porra preciso mandar a mensagem de confirmação pra o Paulão assim que chegar em casa ligo do telefone da Rose se aquela encomenda não estiver na mesa do Almeida amanhã às oito em ponto ele acaba com a minha raça e do jeito que o meu pavio anda curto bem capaz de eu mandar ele à merda tem uma caneta senhora nem na memória posso confiar mais ainda hoje ligar pro Paulão e pegar emprestada a camisa do Wesley amanhã comprar maçã saco de lixo leite e alô oi amor chego em quinze minutos comprei a amarela de manga longa as duas lojas que você indicou estavam com preços parecidos aí escolhi a que tinha a plaquinha de empresa sustentável na entrada como assim demorando Rose um monte de coisa pra resolver vai achar alguma coisa de útil pra fazer mulher leite saco de lixo e quando vence o boleto da moto

 

 

 

[Contos do livro Violeta velha e outras flores. Patuá, 2014]

 

 

 

 

[imagens ©yago hortal]

 

 

 

 

 

Matheus Arcaro nasceu em 1984 em Ribeirão Preto, onde vive atualmente. Graduado em Comunicação Social e também em Filosofia. Pós-graduado em História da Arte. Atua como diretor de criação publicitária e como professor de Filosofia e Sociologia. Nas poucas horas vagas, arrisca-se ainda como artista plástico. Publicou Violeta velha e outras flores (Patuá, 2014).