LABORATÓRIO DO OUVIDO
Para Dziga-Vertov
relampagueia
cirro-borrifo
nas ramagens //
caule requeimado
azul-ferrete
cemitério da lua //
espectrar lupino
arroxeado
assombra-cães //
misterioso
repactuado
escarabídeo //
formigas
avançam
no esterco //
lunares
arrefecem
nos buritis //
tentaculoso
remorde-se
enigma-de-ecos //
ventos desfolham
flores vermelhas
de cupuaçu //
igarapés
olhos-centúrias
medusa-das-águas //
escoiceadas
despossuídas
de tudo
[2014]
Poema pensado como se fosse um breve documentário de Dziga-Vertov (“cine-olho”) sobre a floresta amazônica.
HINO AO HOMEM DE BEM
O Homem de Bem coleciona esculturas
em dentes de leão-
marinho :
formas de antílopes
flamingos
lêmures intermitentes //
plantas
que não se parecem
com nada
onde pedras lapidam
a paródia
de um rosto. //
Caligrafias pintadas
em minúsculas
folhas
por uma tribo imaginária //
fósseis esqueletos
de caranguejos
entre patuás
açafates
e uma onça empalhada
da Costa do Marfim //
para olhos que não vêem para olhos
que não ouvem para olhos
como estrelas
decrépitas. //
O Homem de Bem
participa de marchas fascistas
pela volta da ditadura
militar //
e oculta seu ódio
em espátulas de marfim.
[2014]
HINO AO TROTE
Para Gottfried Benn
Estudantes de medicina torturam jovem negra
excitados com hematomas
na pele inerme
hieróglifos marcados
a cutelo
farejam vermelho farejam
relincham
escorrendo escorrendo
ante pinças
cordas atadas nos pulsos focinheira
ataraxia nas pupilas
retalham arimãs retalham
mulher-entulho
estirada
despida de seus farrapos
liliputiana menina de quinze dezesseis
depauperada ossuda
desnuda
derrisão pela pele
escura escrava
derme-refugo para a sova
mãos-espátulas relampejam incisões
bebem medo babam
ódio
ela enrodilhada monstrenga
gentalha ratazana
para o aço
baço
homenzarrão bem-nascido destripa
não-nascida
fungo
refugo
lacraia.
[ 2015]
Poema inspirado nas sessões de trote-tortura dos estudantes burgueses da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
HINO AO HUMORISTA
Funambulesco;
cospe-às-frinchas;
escorço ao revés —
negror de escárnio;
borra-de-tranca-rua;
resvala-nádegas;
refugo, rebotalho;
regurgita lúmpen
parvoíce intermitente
em voz de batráquio;
símile de bonifrate:
baboso, linguarudo;
engole uma, duas,
três, quatro, cinco,
seis moscas e mergulha
atoleimado no atoleiro.
[2014]
HINO À POLÍCIA
Toca o terror —
cabeças de arimãs
reverberam féretros /
assanha-se histérica
turba de behemoths /
damballas / beherits /
capacetes / visores /
escudos / tonfas /
vidro moído / ferro
esturricado / pneus
incendiados / entre
balas de borracha /
rasgando / rasgando /
vielas / entrevértebras
fantoches toscos /
fantoches-ferrabrás /
com fuzis automáticos
de mira telescópica
escarnecidos espectros
em carros blindados
para a contra-insurgência
nas avenidas furiosas
de meu próprio país.
[2015]
HINO AO PREDICANTE
Putinhas-de-cristo vestem roupas de couro dark
e argolas de prata
nos mamilos.
Fachos de luz
banham a nave
do templo.
Flores brancas,
vitrais arqueados.
Massa sonora
de fêmures
cantantes.
Piolho metafísico
esbraveja
palavras-morteiros:
colérico, invoca
sua hórrida deidade:
— El Shaddai flagelador de sodomitas;
— El Elyon violador de feministas;
— Mikadiskim degolador de macumbeiros.
Trompetes-clavículas
acompanham
sua voz-de-candelabro:
imagens de um tríptico
de Hyeronimus Bosch.
Após o teatro teratológico
(transmitido via satélite
em 24 canais, para 69 nações)
o dízimo é recolhido
em metal sonante – para a glória
do Altíssimo Tetragrama
(YHWH Tzevaot).
Compras na lojinha
do sacro tabernáculo:
Bolsinhas Bereshit.
Sapatos Menorá.
Perfume Havdalá.
Gargantilhas Shemá Israel Eloheinu.
[2014]
HINO AO MÉDICO
Cara-de-batráquio em elegantíssimo paletó grená
olhos vítreos de licantropo lituano
Doutor Amphibia
exibe ao visitante
sua clínica geriátrica:
poltronas provençais
em lápis-lazúli
cortinas de cetim tabaco chamousse
e mobiliário colonial
em jacarandá vermelho
mesas e cadeiras torneadas
com esbranquiçados detalhes em prata
no mais fino estilo
manuelino.
Sobre a cômoda indiana
taças de darjeeling
pasteis de queijo temperado
e um cesto com revistas de viagens
para a sua incauta
clientela:
aposentados viúvas
pensionistas.
Após cada brevíssima
consulta, Doutor Amphibia
distribui pequenos envelopes
com drogas experimentais
às cobaias septuagenárias.
Secretária de cabeleira leonina
— após pintar as unhas dos delicados pés —
agenda a data do retorno
para o acompanhamento clínico.
Relatórios minuciosos são enviados
por modernos aparelhos de fax
aos laboratórios de renome internacional
para o desenvolvimento de novos produtos.
[2015]
[Poemas do segundo volume do livro Cadernos bestiais, que será publicado em 2016]
março, 2015
Claudio Daniel é poeta, ensaísta e editor da revista literária Zunái. Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo. Foi curador de Literatura e Poesia no Centro Cultural São Paulo entre 2010 e 2014. É colunista da revista CULT. Publicou, entre outros livros de poesia, A sombra do leopardo, Figuras metálicas, Fera bifronte e Cores para cegos.
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