Rosa
Debruçada sobre o livro de Crusoé, a mãe despertou com os soluços da pequena, que, em seu leito dobrável, antes repousava em ares de sussurro. Apartada a angústia com copo de leite, a menina, vendo em pranto aparente a rosa que ganhara, perguntou à mãe "por quê?". Pondo-se confortável na cadeira ao lado, a mãe, depois de longo e sentido suspiro, entrou a narrar, como sua própria mãe fazia quando ela, miúda, se contorcia em febre sob as cobertas.
"Há muitas, mas muitas eras, num lugar tão distante de qualquer parte quanto uma ponta do mundo à outra, uma moça chamada Rosa levava o coração doente, pois uma linda voz de rapaz fazia seu cortejo à Lua.
Rosa era uma menina fraca e pálida, e doce como uma nuvem de algodão. Vivia sozinha com a avó, uma senhora gentil, mas mui quieta. Tão quieta que estava morta há dias quando se deram conta. Só e triste, Rosa se escondia enquanto o sol corresse, só dando o ar da graça no calar da noite. Num de seus passeios pela noite densa, ouvindo um moço longe, mais do que o alcance, até mesmo da vista, cantarolar para o luar velhas baladas lindas até o despontar da aurora, Rosa encheu-se de sentido. E reservou boa parte da vida a cultivar esse querer estranho. Toda noite degustava as promessas apaixonadas do jovem como se fossem pra ela. Sonhava com elas quando podia dormir. Suspirava pelos cantos. E rabiscava em quinhentos troncos um nome que jamais ouviu.
A brincadeira, contudo, tornou-se pesada. Não conhecê-lo, vê-lo, tocá-lo, trazia ao peito da moça um cavalgar de invernos. Mas aproximar-se seria absurdo. Nela não havia dotes que interessar pudessem. Manteve-se à espreita. Era seguro mais estar às sombras, roubando da inanimada musa um amor que não faria falta.
Certa noite chegou, porém, em que Rosa de tal desesperou que à relva pôs-se prostrada em súplica à mãe Gaia. Enternecida com o drama da moça, a soberana Terra perguntou-lhe "que tanto queres que tão mal te faz?". Rosa queria ser bonita, mas tão bonita, dizia, que sua ideia se entranhasse no amado como na roupa o perfume e sua visão se desse com tal furor que as lágrimas largassem os olhos até deixá-lo seco. Gaia lhe disse então que apanhasse o mais belo vaso que visse e nele pusesse leite de cabra silvestre doente e, na hora em que as trevas trouxessem a esperança, ela derramasse o leite nas costas do amado. E tudo fizesse com um sincero sorriso.
Feliz Rosa estava. Pela primeira vez na curta vida. Mas demorou-se demais na tarefa. O vaso e o leite foram difíceis de achar. Já era alta madrugada quando chegou à colina de onde podia avistar a indefinida sombra do amado, e para ela correu com os olhos a vazar e em brasa. Correu segurando cuidadosamente o vaso e o leite. Correu por horas, por séculos, correu pela noite eterna. O amado sempre à mesma distância impossível. Chorando de desespero, Rosa correu tanto que seus pés desprenderam do chão. Ela caiu do alto de uma montanha sobre o vaso com os restos do leite. Os cacos do barro lhe entraram na carne, misturando o sangue puro ao leite azedo. Dessa mistura estulta um novo soro, de consistência e forma sem iguais, se lhe escorreu do ventre e verteu no infinito, a banhar as costas do horizonte. Rosa deu seu último sincero riso, corpo vazio no chão imundo.
Gaia, ao ver seu triste fim, apiedou-se da infeliz criança, e concedeu-lhe o que lhe foi pedido. Daquele sangue com leite viu-se brotar a beleza vivente. Rosa seria agora uma flor com pétalas da cor do horizonte amado quando a noite cede espaço ao dia após. Seu querido foi marcado à eternidade. Ao vê-la linda e pura abrir-se à noite, como se aguardasse um amor que não viria, deixava sempre ele cair uma lágrima. E como orvalho ela roçava a bela tez de Rosa".
Dizendo isso a mãe virou-se à filha, que dormia mesmo com o incômodo de agulhas, tubos, aparelhos. Beijou-lhe a testa e pôs-lhe a rosa nas mãos juntas. Tão linda. Tão linda que a fria noite enfim chorou por ela.
Por um pedaço de pão
Enquanto no jardim dois meninos brigavam de tirar sangue por um pedaço de pão sujo, seu avô, a um canto, sorvia uma sopa rala. O velho os chamou. Tomou o pão. Disse que, se eles se comportassem, ele lhes contaria uma estória. Curiosos, os netos sentaram.
"No início de tudo", começou o avô, "há muito, muito tempo, antes mesmo que o avô de meu avô fosse neto de um neto, não havia Lua e a noite era triste e escura, o que fazia a gente toda rezar ao Sol por dias mais longos. Cansado e aflito, mas infinitamente sábio, o Sol foi pedir ao Grande Artífice que preparasse algo que fizesse da sua ausência uma ocasião especial, para que dele não sentissem tanta falta seus fiéis. O artífice pensou, pensou, pensou, e decidiu fazer um grande pão redondo, semelhante ao próprio Sol, mas com bem menos brilho, para iluminar a noite sem transformá-la em dia. Todos achariam tão divertido aquele pão branco no céu, que nem notariam a ausência do Sol. Levou metade do que viria a ser um mês trabalhando. Ao terminar sua obra, cansado, pôs-se a dormir o mesmo tempo que gastara na lida".
"Acontece que o Grande Artífice", seguiu o avô, "tinha um filho moleque que nem vocês, e o matreiro resolveu comer o pão que seu pai fizera. Gastou nessa atividade o mesmo tempo usado na criação, comendo-o enquanto o padeiro dormia. Ao acordar, o Grande Artífice pensou que sonhara com a concepção do que viria a ser a Lua e resolveu recomeçá-la, achando que era a primeira vez. Novamente gastou meio mês e novamente dormiu ao fim. E o filho novamente devorou o pão na outra metade do mês. Tornou-se um espetáculo tão glorioso que todos esqueceram de cobrar do Sol mais presença e dessa forma o que se quis se fez".
"Vem acontecendo desde então essa transformação contínua do pão celeste", disse o avô. "Quando a Lua vai se formando e depois se consumindo, é que o artífice a vai fazendo e seu filho engolindo."
Ao fim da narrativa, o velho perguntou, aos dois pequenos, qual era a grande lição da história. Não souberam dizer. O avô respondeu: "É simples: 'não deixe crianças perto de pães'". E devorou o pão.
A menina que guardou o sol uma caixa de charutos
Meu pai sempre foi um sujeito estranho. Tinha três olhos e seis braços. Era o que me dizia quando queria fazer dormir. E me contava de uns feitos que jurava seus e se fazia o cavaleiro errante dos campos oníricos de uma nova Escócia. Meu pai adorava a Escócia. E Havana. Situava aí suas aventuras. Por isso nunca quis viajar para tais lugares. Não seriam melhores que a Escócia e a Havana de nossas noites.
Meu pai era um homem ímpar. Sentava-se em meu colo e me contava seu dia. E me dava um beijo quando eu estava na cozinha e fazíamos amor no telhado, gritando pra lua. Ele tinha uns cabelos de seus cinzas fosforescentes que eram muito belos; belos como o Natal. E eu me punha bonita para ganhar qualquer beijo na testa à mesa do jantar. E eu era dele, mais dele que eu.
Todos tinham os olhos mais vivos quando me olhavam com ele e diziam sermos o casal mais belo da Terra. E o papai ria. E eu ria o riso dele no pranto dele. E botava a cabeça do papai entre minhas pernas para curar suores. E alimentava suas mãos com óleos sobre minha pele. E, qual um feto meu, dormia ele em meus braços.
Papai sempre foi estranho. Tinha mais olhos e braços que os pais de minhas amigas. E com seus olhos e braços me despenteava toda e me abria e deitava. E contava suas histórias em minha boca, enquanto vozes desvairadas tentavam rebentar a janela com seus dedos de chuva.
março, 2015
Diego Callazans. Autor do livro A poesia agora é o que me resta (Patuá, 2013). Nasceu no dia 26 de julho de 1982, na cidade baiana de Ilhéus. Mora em Aracaju desde os cinco anos. Vários poemas seus foram publicados em revistas literárias — tanto impressas, dentre as quais a Celuzlose, a Novitas e o Jornal RelevO, quanto digitais, como a Mallarmargens, a Diversos Afins, a Blecaute e a Reversos. Seu segundo livro de poemas está no prelo. No momento, desenvolve seu primeiro livro de contos.
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