*
É necessário saber calar,
Destituir discursos vazios,
Procurar pelos vãos.
Abrir a pequena porta para a rua,
Reconhecer os seus dentre múltiplos nãos —
São poucos.
Erguer a cabeça em meio a multidão de acordes,
Rechaçar a resposta fácil que virá: quem és tu?
Olhar-se no espelho e mirar o rosto farto de passado,
Camada ante camada,
Identidade tecida como Moiras que se apegam à memória do tempo.
*
Do silêncio que se faz uma guerra:
De que adiantam guirlandas e guilhotinas se terei o último suspiro documentado pelo vazio.
Ontem queríamos mais —
Nesse interstício é que o mundo se move.
Movimentos descarrilados como corações batendo mais forte.
Captamos o cerne da emoção;
Ainda sim contivemos o soluço.
Aprendemos a fingir que não nos importamos
E já era tarde.
*
À margem estamos todos.
O clarão no céu anuncia a tempestade,
Gotas de orvalho e chuva áspera,
Milhas distante, um chamado ao telefone
A voz rouca anuncia a mensagem —
Somos espasmo e miragem.
*
Nunca estivemos no limite do que se chama humanidade
O reflexo no espelho nos garante isso
Minhas duas mãos tateiam
O reencontro em cada marca:
Algumas pessoas passaram.
A somatória do tempo nos trouxe até aqui.
*
Poderia ser Beirute, Paris, Búzios,
Eu poderia encontrar uma pessoa legal em qualquer lugar,
Mas o relativismo constrói muralhas ao redor da China
Enquanto o Ocidente delimita suas fortificações
Para que um alarme terrorista não soe mais alto que o possível.
Estão cavando seus próprios inimigos há tantos séculos.
Canaã foi uma promessa inadequada
Ou interpretamos mal o Antigo Testamento.
*
Enquadro seu rosto em moldura de mármore
Mas a dor aperta mesmo assim.
Tem um jeito sério de olhar
Como se estivéssemos dentro um do outro.
A gravidade com que me toca poderia reconstruir
As muralhas de Bizâncio.
*
Poderia a existência estar em jogo
No núcleo duro do tempo
Mas a humanidade optou por falar de amor & guerra.
Qualquer garotinho sabe que o herói mata mais
Do que beija a mocinha.
Hoje sonhei com Paris,
Um encontro romântico em uma viagem que amenizasse a dor de existir.
E então veio a notícia dos tiros,
Pessoas mortas como na guerra de Bastille.
Não se compra paz como pasta dental:
Aqueles sorrisos brancos da propaganda lembram o sonho de uma família feliz
Há tanta chama no mundo, baby.
Eu ainda quero me encontrar com você ao redor do Sena.
A tragédia possui a última palavra quando Celan se jogou do alto.
Uma cidade linda cheira o espectro da morte.
Por que os belos são infelizes?
*
Macondo existia só no papel
Seus leitores visitavam a região
Acordados.
Amparados pela fantasia ao dobrar mais uma página,
A ilha destinada aos solitários.
Cada palavra esquecida soletrada renasce —
O poeta já disse que o verbo delira.
Reordena-se o mundo;
Um local seco e árido habitado por sonhadores.
*
O cheiro de verão pela janela
Anuncia o espasmo de noites brancas.
Estaria o Sonhador preparado para a noite marcada?
Encontro que tece o choro antigo
Sono quente de lençóis bem cuidados
Pés descalços
Um abraço no sumo da madrugada.
Nástienka, sou.
Meu duplo no espelho da memória
Entre miradas —
Chuva que dispersa o hálito de amor no quarto escuro.
*
Por ser mulher estraguei tudo:
Não via o sonho passar por mim
A tempestade torrente se alastrou
Minha morada é o medo —
Estar comigo mesma
Aguentar forte a ferida do pensamento que se diz em silêncio.
Somos treva e danação,
Diz um útero que cria o mundo.
Pensar livremente me livra do esquecimento,
Como caos quis ter o que não se mede em parâmetros.
Um corpo é apenas um corpo,
Não há morada para nossa condição.
Um sopro se faz e tudo muda de lugar.
Por ser mulher estraguei tudo e quis abraçar a eternidade
De estarmos ali,
Sós.
*
Toda destruição encontra seu processo
Como andar pelas ruas e dobrar a esquina
Enquanto um corpo tateia o asfalto
E arde.
Haveria solução para o desamparo que se alastrou por dentro
Feito fogo?
Um corpo em chamas sobre o abrigo despido de delicadeza
Sussurra a palavra interdita:
Foi o amor que passou ao largo
E não encontrou morada.
Um grito em falsete soou o alarme de muros protegidos
Na cidade fortificada.
A palavra grita mesmo que se cale;
Apenas um louco seria capaz de afirmá-la no desprezo de ouvidos alheios.
*
Caímos tantas vezes.
O levantar é árido como vulto
A multiplicar as vestes
Em sonhos líquidos.
dezembro, 2015
Fernanda Fatureto (Uberaba, 1982) é poeta e jornalista. Autora do livro Intimidade Inconfessável (Patuá, 2014). Prepara seu segundo livro de poesia, cuja prévia pode ser vista em revistas literárias como Mallarmargens, Jornal RelevO, Diversos Afins e aqui: avecbr.wordpress.com.
Mais Fernanda Fatureto na Germina
> Poemas