©mecuro b cotto

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Para Luis Buñuel

 

I

 

As sutilezas da mulher ausente ficaram incrustadas na atmosfera da casa como as nódoas no carpete demarcam o repouso dos móveis. Os perfumes dos tecidos que a tocavam flutuam pelos contornos acolchoados, escapando com a minha fumaça janelas afora. Sem Beatriz os cômodos perderam o colorido, mas a solidão que os preenche é uma forma dela existir no vazio.

Nas fotos ainda felicita nossa vida errante. Nunca vi essa mulher fora do visor da câmera. Só a tive desfeita de talentos ou hipocrisias, livre do instante valioso, protagonista das minhas buscas infrutíferas. Alguém fica eternamente ali, comigo, captando-a com a miserável abnegação dos que se sabem supérfluos. Não sorria quem a flagrava, não tanto, pelo menos, quanto a imagem no papel brilhante. O seu é um sorriso que sorri, abstrato e etéreo, sangue em preto e branco. O meu extinguiu-se antes de conhecê-la.

Disse que voltaria logo, de um lugar misterioso que precisava conhecer. Jamais insisti para que dissesse a verdade. O fato de terem levado poucas roupas e quase nenhum brinquedo chega a soar insignificante nesta altura do que conheço. Mas o abandono é covarde por natureza, e prefiro fingir que a entendo.

Contorno as reminiscências pelos quartos, à cata de fantasias no mormaço da madrugada. O homem do espelho flerta com a imagem que o espera, vindo aos tropeços, um e outro incompletos, buscando o par. No reflexo do miserável que se espatifa tentando subir além do possível existe outro, estúpido e brando, ancorado nas mãos que tenta levar consigo. Pisco para ele e nos evitamos, recíprocos até nisso.

Então saio assobiando no silêncio deixado por Vera e sua mãe, remontando a saraivada de tropeços que me levou a cair assim, do vôo sem destino, enfiando a mão no rio e tentando salvar uma verdade tristonha.

 

II

 

Hotel ínfimo e ordinário, escondido no centro mais anônimo da metrópole. Seis hóspedes de pijamas e chinelos, refestelados em poltronas díspares, assistem à única televisão do lugar. Sobre a mesa baixa, revistas de celebridades e um vaso com hortênsias moribundas.

Deixo o tempo fluir no jogo de olhares e esquivas da senhora indiscreta no outro lado da sala, flertando com as atrizes inconcebíveis no vidro espesso do aparelho. O dia de nômade lateja nas plantas dos pés que ainda não se viram livres das meias e dos sapatos moles. Devo estar fedendo o equivalente.

Ninguém compra meus purificadores de água. Repelem os folhetos que carrego como se me levasse dentro da maleta. Não precisam de filtros. Talvez comece algo diferente. O problema é que sempre esqueço o que havia para recomeçar. Outros maravilhosos filtros d'água para lares com sede? Acho que tentarei vender sedes maravilhosas para lares com filtros d'água.

A TV provoca um estrondo risonho. O gerente, sempre enfiando a barra da camisa social para dentro das calças de ginástica, palita os molares e faz comentários imbecis sobre a novela. Se procurar conversa de novo, com sua carranca verminosa, juro que devolvo uma grosseria.

Por um instante as vozes deixam de existir. A brasa entre os dedos me desperta e pulo da poltrona como se tivesse levado um chute. Abandono a sala sem falsas amabilidades.

As cortinas desfraldam para dentro do quarto. Não acendo a luz. Arrasto a cadeira e pouso o queixo no peitoril da janela, ouvindo ires e vires de motores, buzinas, alarmes fugazes. Perco-me aos poucos, suspirando na geada, sugado pelos faróis convictos. As calçadas escuras, cobertas de lixo. A linha de semáforos unânimes que ondula com a avenida. Os prédios seculares formando istmos de pontilhismo que ameaçam o firmamento pálido e ruidoso.

Quando recobro a consciência, percebo as batidas suaves na porta. Encosto à madeira, depois abro e deixo apenas um vão de corredor escuro. O perfume a precede, forçando a passagem numa doçura suspeita. Bate os saltos amaciando os músculos do quarto. O luminoso do hotel percorre a parede com múltiplas sombras do seu perfil. Os olhos que me apertavam no térreo agora parecem lilases. Mal os retenho e já piscam verdes opacos.

Encosto a porta, hesito, concedo em trancá-la. Puxo um cigarro do paletó. O fósforo cria volumes fulminantes no seu rosto, exagerando os contornos sob o queixo e as rugas da testa. A mulher foge da chama e para à janela, emoldurada pelo fundo gris. O semáforo pinta uma aura em torno do penteado cheio de fios rebeldes. Uma curva de elástico frouxo aparece debaixo da axila. Espera que eu tome qualquer iniciativa.

Aos poucos me aproximo da silhueta, quase desejando uma reação contrária. Encosto os corpos sem resistência. Da blusa passeio às mechas rígidas, da respiração congestionada mergulho no beijo arisco de inimiga. As mãos pesadas me agridem as costas, os braços e a nuca, apertam as unhas ao longo das roupas. Geme. Sussurra umas frases incompreensíveis. Encaixo nossos ventres. Sua língua rasteja, esfria o contrapelo do pescoço, intromete nas dobras da orelha, inunda, corrompe.

Desvio o rosto e imediatamente recebo um tapa forte, sonoro, que me faz lacrimejar. A mulher se desvencilha e retrocede até um canto escuro do quarto. Corro para agarrá-la. Perdemos algum tempo disputando abraços, suas pernas me enlaçam firme pela cintura e logo estamos nos beijando com furor inédito. Arranca minha camisa, desce as calças sem abri-las, o zíper e a fivela do cinto raspam a púbis. Tento recuar, tropeço no pano e caio de costas, puxando-a contra mim. Despencamos juntos na cama rangente.

Ficamos engalfinhados, ondulando nas molas do colchão. Respiro o agridoce da nuca, a tintura na penugem macia, o desodorante enjoativo. Ela ergue o tronco, espalmando a parede, tilintando as pulseiras, e tira a saia por cima. Desliza-me no vão das suas pernas. Comprime os ventres úmidos, abre-se no encaixe e força uma estocada rude. Segura os próprios cabelos suspensos, relaxa, estica o torso para trás, rebola parecendo ganir, aumenta o ritmo.

Susto a iminência por um segundo. Conduzo as mãos pelos seios, ainda sob o sutiã murcho, descendo à pele alva das costelas, cheia de pintas irregulares. Ela grita, fecha uma expressão dolorida, aumenta a velocidade, grita mais e remexe e bate. Pulo à frente, afastando-a para sair, dou um passo bêbado e caio de joelhos.

Tento engatinhar, mas ela se joga pendurada sobre as minhas costas. Levo-a por metros no carpete inflamado. Esfrega os mamilos e as curvas liquefeitas, cravando os saltos nos calcanhares que repuxo. Vira-me de frente e pousa, certeira, profunda. Bate em meu rosto, dança, contrai, acelera, retesa. Esmorece com um derretimento grave.

A cabeça pende numa gargalhada satisfeita. Tento abraçá-la, mas ela escorrega no suor, ajeita-se na posição que prefere e lambe e aperta e morde, corta, arranha, dói. Esfrega meu peito com as mãos vermelhas. Continua sussurrando uns insultos sem nexo. Ergo-a comigo, sufocando seus pulmões, prendendo o encaixe do corpo uno. Erro por apoios incertos nas portas do armário, nas paredes, na quina do colchão. Terminamos sobre as roupas caídas no meio do quarto.

Ela deita e se exibe com um orgulho vadio. Os dentes acinzentam à penumbra. As contas do colar, serpeando entre os seios ofegantes, possuem uma lubricidade árdua e experimentada. O aro de batom manchado entreabre uma ventosa sôfrega que não beijo por milímetros, compartilhando nossos hálitos rançosos. Toda ela exige que a fira, que a contrarie, que a magoe.

Seguro seus pulsos cruzados sobre a cabeça e recomeço os balanços vagarosos. Ela finge que não gosta. Aliso as axilas ásperas, as dobras flácidas na barriga, o ventre hirsuto. Sinto as coxas duras, os movimentos intensificam, ela volta a xingar e fica entreabrindo as pernas para então fechá-las com violência. Meu primeiro tapa é indeciso, manso, na cadência meiga dos movimentos. Um segundo tapa a desperta. Num terceiro, mais convicto, descontrola-se, dócil e tortuosa, horrorizada e suplicante.

 

III

 

Os barulhos crescem e terminam cavando uma fresta impaciente por onde a cabeça inunda com dores e náusea. Estendo o braço procurando a desconhecida, mas afago lençóis. A ausência estipula a certeza de que estou acordado e de que há murros na porta.

Procuro respostas no teto, no criado-mudo, na janela incandescente. Estico-me e pego um cigarro, sem acendê-lo. Mantenho o filtro a pender nos lábios secos, na esperança vã de que a sensação familiar engrene os pensamentos. Doem as costas, os ombros, os joelhos bambos, o queixo, as gengivas rudes. O nariz pulsa, cheio de coágulos.

Abro com veemência, e discirno apenas o odor de pólvora no buraco redondo que paira à minha frente. Recuo a tempo de entender que é um homem com marcas de varíola no rosto e que o revólver treme na sua mão. Ele escancara a porta num golpe, avança e chuta a cadeira, que se despedaça antes de cair.

No relance entrevejo mais três ou quatro vultos correndo pelo quarto. Viram-me de rosto contra a parede. Torcem o braço para quebrá-lo, cravam as algemas com força desmedida. Recebo uma coronhada atrás da orelha. Solto um grito desesperado, mas apertam minha garganta e estrangulam-na até que eu pare de remexer. A joelhada no ventre lembra que ainda estou nu.

Os sujeitos balançam o criado-mudo no ar. Da gaveta poeirenta caem a Bíblia cinza, uma fruta podre, fósforos. Reviram também a valise, espalhando os folhetos dos purificadores de água. Lençóis e roupas são enfiados num saco plástico. Tento protestar, mas recebo um chute na têmpora e afundo por uma escuridão sem arestas.

Os parcos sentidos retornam aos poucos. Noto que sou puxado sob as axilas, arrastando os pés no carpete. Um gotejamento dedilha os lábios e escorre ao peito.

— Não admito violência no meu hotel!

É o gerente da carranca verminosa, bloqueando a saída.

— O senhor nos dê licença para completarmos o flagrante.

— Pelo amor de deus! Todo machucado!

— Assassino perigoso.

— Como, assassino? Vocês não disseram que tinha...

— Vai saber. Hediondo igual. Reage apanha. E quem não colabora vai junto.

— Pois eu não afino pra meganha.

— Olha o desacato! — berra um policial. — Respeite a autoridade!

Alguém repete meu nome e, por um fiapo de consciência, reconheço a voz. O hóspede, ancião de aparência doentia, usando calças de pijama e camiseta imunda, tenta abrir passagem pelos soldados. Um deles aperta a sola do sapato sobre a minha panturrilha.

— Exijo explicações! Quem é o responsável?

— Eu mesmo e não lhe devo maiores. Positivo? Tá interessado no xilindró? Então cala a boca e dispersa.

Consigo me apoiar nos cotovelos. Encosto a cabeça no armário, implorando clemência. O velho fica emocionado e se joga de frente contra os policiais. É expelido com força, cambaleia de costas, bate na parede do corredor e cai sentado.

— Abuso! — grita uma voz feminina.

— Deixa o rapaz!

— Não fez nada errado!

Curiosos se apertam entre os batentes. O gerente recoloca o velho de pé, roxo e descabelado, urrando palavrões. O chefe dos policiais tenta atravessar o grupo e volta empurrado, tateando apoios. Os colegas acodem, o entorno se debate, a gritaria fica violenta, perigosa, física. Um disparo sólido ecoa no meio da balbúrdia.

Permaneço encolhido ao pé do armário, de olhos apertados, esperando o pior. Pouco depois remexo os braços e as pernas, ergo o rosto e vejo que todos saíram. Um guarda continua próximo à porta, indo e voltando. Sento na beira da cama. Por entre o ferro das algemas um filete desenha a veia roxa sem saída.

O escarcéu dissemina-se pelo edifício, cheio de fatalidades. Um estrondo abala toda a construção. Os ânimos paralisam num silêncio grave e retornam mais ruidosos, iminentes.

Manco pelo quarto, esbarrando nos objetos. Com as mãos unidas agarro o saco plástico e puxo-o comigo. Espio a saída. Ao fundo, o policial discute com duas mulheres. Arrisco alguns passos na sua direção. Ele me descobre, manda que volte para dentro, aponta o revólver e leva um soco. O tiro chega tão próximo que meu ombro fica salpicado de pó e tinta. Largo as roupas e corro pelo único espaço livre, destrambelhado numa dança de aleijão.

Desço dois andares, mas a perna ferida trava, calço vazio no susto, os degraus engasgam lances abaixo. Só paro de rolar na parede. Gritos fortes, pancadaria, estilhaços. Busco os apoios possíveis, roçando o corpo na parede até ficar novamente de pé. Sigo no corredor vazio. Um dos quartos está aberto. As vozes se aproximam.

Arrasto o pé inerte para dentro e empurro a porta.

— Pelado não dá, moço. Vão te prender na rua.

A camareira me observa, segurando uma bolota de panos. Ri do meu estado, ela mesma um tanto maltrapilha e suja. Larga o amontoado no carpete, puxa dali uma bermuda amassada e a oferece. Não consigo me vestir sozinho. Tento de novo, fraquejo, tombo na cama. Ela toma a bermuda e se ajoelha à minha frente. Passa as aberturas pelas pernas, sobe, estala o elástico num sorriso maroto.

Puxa-me à janela, mostrando que estamos no primeiro andar. Logo abaixo, a cobertura metálica do estacionamento.

O novelo de panos amarrados se desenrola sobre a fachada. Trazemos a cama e atamos uma extremidade nos ferros da cabeceira. Sento-me no umbral. Deixo o peso pender e o móvel salta das mãos da mulher, indo se enroscar no parapeito.

Sacolejo à frouxidão escorregadia dos nós. Desço de metro em metro, escorado na parede. Alcanço o telhado e engatinho nas calhas de lata quente rumo à borda que encobre o muro. Virado de bruços para pular à calçada, olho acima no prédio. A camareira acena.

 

IV

 

Mônica não parece muito divertida com as descrições que lhe faço dos quitutes de rodoviária. Sua forma de rir a contragosto é soltar chiados pelas narinas, empinando como se levasse pequenas descargas elétricas. Nos lábios tem um franzir nostálgico, meio insolente. Quase curva para não cabecear o quebra-sol da cabine, mas tampouco diminui as almofadas que adiciona ao banco. Os cabelos marrons cortados rentes e as orelhas sem furos lhe dão um aspecto andrógino que destoa das mãos muito delicadas no volante de diâmetro inverossímil.

Os limpadores ondulam no para-brisa soltando estalos monótonos. Faróis se anunciam nos confins da rodovia, demoram, crescendo, e nos passam com um toque rápido na buzina. Mônica retribui. Liga o rádio, passeia por uma sucessão de grunhidos e desiste, soprando uma baforada ruidosa de fumaça. Então mergulha em profundo silêncio, concentrada na chuva que se projeta da escuridão.

Recosto à porta, de pernas dobradas, cerrando os olhos. O ronco do motor me enche de paz e segurança. As curvas e os buracos mantêm vívida a noção do caminho, mas o movimento apazigua o desconforto e os relances fugidios que avermelham as pálpebras inibem o esforço de abri-las.

Desperto assustado, espalmando o painel. O caminhão avança no acostamento, reduz as marchas, para num rangido exausto. O azul tênue de céu já anuncia a manhã. Abro a janela e recebo a brisa úmida, pássaros alegres, latidos, barulhos se aproximando logo atrás. Procuro-os pelo retrovisor.

Um vulto coxeia na lama, curvado sob a mochila disforme. Calças imundas, casaco encharcado, uma barba selvagem exibindo frestas de pele curtida pelo frio. A aparição emerge com dificuldade à minha frente, apoiando as garras negras no batente. Arregala um sorriso castanho e pergunta nosso destino. Mônica responde por mim. Ambos trocam meneios familiares.

Abro a porta e recuo para ele caber. O velho afofa sua mochila em cima da minha no vão atrás dos encostos, sobe à cabine e aconchega os quadris no assento com uma espécie de ginga.

— Como vai, tudo bem? Olá. Pra falar a verdade, com licença, obrigado, pra falar a verdade não me importa onde estão indo. Ajuda a sentir o clima, sabem? É. As... como direi... emanações do ambiente. E o motorista sempre deseja que o carona tenha um rumo, não é justo? Hoje em dia aparecem uns folgados que grudam feito cachorro sarnento. Acho bom mesmo. Detesto cachorro.

Ordenha o excesso de água da barba grisalha, dedilhando-o no tapete. Possui um ar mentecapto que o torna simpático e inofensivo, apesar da vivacidade talvez um pouco astuta demais.

— Bonita manhã, bonita manhã. Parece uma tela de sir Reynolds, o pobre caolho. Pra falar a verdade, há bastante tempo eu não saía assim, pulando de condução, seguindo no rumo dos outros. Pra falar a verdade. Que jeito esquisito de fazer a pessoa acreditar na gente. Pra falar a verdade...

E assim continuamos, debaixo da alvorada morna. O velho diz que se chama Sílvio, e que é um "abstracionista itinerante". Ri fácil, numa expectoração catarrenta que possui o tom agudo e jovial da voz. Fica mexendo os dedos unidos pelas polpas, como se os deslizasse num espelho. Descola-os apenas para acender os cigarros tortuosos e manchados que tira de um maço disforme, cuja marca nunca vi. A fumaça tem fedor acrimonioso, tão inusitado que chega a sugerir alguma substância ilegal. Mas sua naturalidade e sua eloquência inibem suspeitas.

Mônica demonstra não querer contatos desnecessários e me repele. Fico espremido em Sílvio, grudando na suas roupas úmidas, aspirando o fedor insalubre, recebendo os pingos da barba quando ele ri. Tento um gole de café decrépito. O velho aceita e continua falando.

— "Qualquer homem que exija relações sexuais com a esposa, salvo exclusivamente para concepção, faz dela sua prostituta particular" — ele procura nossas reações e completa, de indicador em riste: — Alice Stockham, mil oitocentos e noventa e quatro.

Mônica explode numa gargalhada inédita, que congela o interesse nos olhões vermelhos do outro. Ele se aconchega mais no meu corpo. Escolhe as palavras. Pigarreia arrastado, engole e assume um tom didático.

— Vejam vocês. O rei ou o senhor feudal tinham garantido o direito de trepar, desculpem, de ir para a cama com uma recém-casada. Antes do esposo. Desde os sumérios isso acontece. Em Roma, a noiva era possuída pelo deus da fertilidade, um símbolo fálico esculpido em madeira ou pedra. Enfiavam o troço na coitada. Para os gregos era uma forma de adorar Príapo, filho de Afrodite e Dionísio, que vivia em permanente estado de ereção. No Camboja, os próprios sacerdotes budistas abençoavam as jovens, deflorando-as na véspera das núpcias. No Mediterrâneo carolíngio...

 

V

 

Os olhos pesam, ásperos. A cabeça gira. Moleques se penduram nas cordas da carroceria, já acostumados às minhas broncas. Acendo um cigarro apenas para senti-lo nos lábios. Mônica demora.

Sílvio observa o horizonte no oceano. Fala sem parar, mexendo na areia da praia com o pé cascudo. Tosse as palavras mansas, interrompe frases ao meio, coça a barba enquanto matuta e sempre retoma o argumento. Há dias não lhe dedico atenção.

Ela chega esbravejando contra a fila da padaria. Abrimos o tampo embutido na lateral do caminhão e dispomos as compras num esmero de banquete.

Os sanduíches me fazem estremecer de sono. O movimento das famílias e dos vendedores começa a ficar insuportável. Fujo em silêncio, afrontado pelo sol, e acomodo-me na cabine preparando um repouso indiscutível. Os dois se levantam, limpando areia e migalhas, alongando as costas para retomarmos a estrada.

Entre bocejos, descansando a vista, balanço ao sabor dos buracos. Mônica e o velho entornam o café recente, verdadeira raridade nas circunstâncias. Termino envolvido pela conversa amena de ambos, mas ela não é responsável por esta insônia miserável que me nauseia. Sentindo a boca ferruginosa, desisto de forjar o sono e acompanho o panorama ininterrupto de praias lotadas, céu azul, mar cintilante.

Paramos numa fila de veículos e noto que Mônica me enfia um olhar preocupado. Meio corpo fora da janela, confirmo a inspeção da polícia rodoviária, cem metros à frente.

— Vou pela praia.

— Desço também — Sílvio emenda. — É melhor. Evita problemas.

— Pega a gente lá, na torre. Número quatro. Combinado?

Ela parece desconfortável, mas não se opõe. Eu e Sílvio pulamos para o acostamento. Saltitamos nas pedras quentes, cruzamos um trecho de mato e amaciamos a areia na direção da água.

Passeamos pelos guarda-sóis, fingindo a calma dos turistas amanhecidos. Tiro a camisa, arregaço as calças até os joelhos. Sílvio aponta o infinito.

— Tranquilo — murmura. — Tudo vai bem. Não olha em volta.

O caminhão fica longe, preso entre os carros, bruxuleando na fumaça negra dos escapamentos. Passamos as viaturas e sentamo-nos à sombra do mirante número quatro.

Próximo de nós, com as canelas enterradas, um ser de chapéu sem tampa, o rosto inchado e grená, tenta chamar a atenção dos transeuntes. Veste calção florido e um paletó negro e roto. As pessoas o ignoram. Ele cambaleia ao seu redor, sorrindo-lhes, fazendo mesuras. Afasta um pedaço de fazenda solto no peito, que já foi bolso, e no pequeno orifício aparece um mamilo escuro e arrepiado.

Sílvio quase racha às gargalhadas. O maluco, igual a tantos outros, simpatiza com ele. Quando terminamos de escalar a duna para o acostamento, ouvimos o grito do mendigo:

— Eu e o rato!

Balança os braços, de pernas abertas, violando a manhã bucólica. Dedos arreganhados, sorriso nos beiços poluídos, bate com os punhos no tórax. Embaça o vento com a poeira que seu corpo desprende.

— Entre eu e o rato não há mais que pacto!

 

VI

 

Enfim o sol se desinteressa de nossos rostos e procura tocaia nos morros atrás da floresta. Sílvio chacoalha, a cabeça mole inclinando sobre meu ombro. Num ponto exato, os músculos despencam, as sobrancelhas arqueiam e ele retorna, balbuciando uma tosse. Mantém-se rijo, depois errático, até cair novamente. Mônica não esboça uma palavra há horas. Seus olhos franzidos procuram arrimo nos obstáculos invisíveis da estrada.

O matagal que se avizinha do asfalto deixa entrever uma faixa turquesa de oceano. Não me canso de observá-lo, sumindo e reaparecendo, menos límpido e suave, apenas, do que o céu. Jogo no saquinho de lixo o maço vazio. Sem pedir, busco o dela no porta-luvas.

Sílvio desperta com os primeiros quebra-molas de uma nova cidade. Enfia a mão no bolso interno do casaco. Acende o cigarro azedo, toma um copo de café e faz uma careta de nojo, lançando a gosma pela janela. Uma brisa úmida chega das montanhas, lembrando que ainda não dormi. O velho alisa seus cabelos para trás e me examina com uma espécie de carinho.

Afastamo-nos do mar. De faróis já acesos, os veículos acumulam-se no trevo de acesso à grande rodovia que cruza a malha urbana e galga a escuridão da serra. Mônica gira o volante como se abrisse uma escotilha. O veículo manobra, pesado e ruidoso, invadindo parte do canteiro. Diminui, desvia para o acostamento, entra no atalho de terra e segue até um galpão iluminado, com três bombas arcaicas de combustível. Estacionamos numa fila de caminhões parados à penumbra. Risadas femininas e música sertaneja escapam das janelinhas cortinadas.

Sílvio espreguiça, golpeia a terra com as botas frouxas, ajeita a cabeleira rebelde. Antes de sair, Mônica abaixa a barra da calça no tornozelo, cobrindo o seu pequeno revólver. Antecipa-se na direção do banheiro. Fazemos o mesmo. Depois entramos na lanchonete, pedimos dois cafés e esperamos por ela, apoiados no balcão.

— Acho que a moça cansou da gente — Sílvio diz, num tom baixo e manso. – Podemos dormir aqui esta noite. Você tem dinheiro?

Faço que não, vendo Mônica pela vidraça, marretando os pneus.

Sílvio olha naquela direção. Volta a fitar-me, desta vez malicioso. Não reajo. Ele solta a fumaça para cima e pergunta ao balconista se há um quarto vago. Negociam rapidamente e o funcionário entrega-lhe uma chave.

— Então? Quer seguir com a garota ou continuamos amanhã?

Respondo que pretendo ficar. Mônica entra na lanchonete, cumprimenta uma senhora de avental e sobe no banco ao lado de Sílvio, como se ainda estivesse guiando. Põe-se a mascar um palito. Não consigo ouvir a conversa deles, mas posso adivinhá-la.

Duas figuras curvadas se ombreiam na ponta do balcão. Um homem discursa em altos brados para o acompanhante, de ar entediado, que não tira os olhos dos bifes sobre a pia.

— A praia? Tudo lixo. Bosta de cachorro, latinha, fralda suja. As barracas? Mais porcaria. Gente enchendo a cara, na beira da estrada, os carros passando, crianças correndo pra tudo quanto é lado. Perigosíssimo. Outro dia a patroa levou os sobrinhos da capital pra passear, cair um pouco n'água. "Alaôr, você precisa ver", me contava, "um cachorro morto, caído ali, todo ensanguentado". Porra. Mulher deitada, criança brincando. E o dono do quiosque, ele faz o quê? Vai e joga areia no bicho! Ficou o presunto ali, cheio de formiga. Imagine tropeçar na coisa? Ou um bebezinho pega naquilo, podre, nojento. Ah, seu Rodrigo, o senhor vai me dar razão! Sentimento vale por um segundo nessas horas.

O ouvinte dá de ombros. Arreganha a boca num esgar de afogado e joga para dentro o líquido castanho do copo. Tece um comentário, que o outro responde imediato, correto, ganhando ênfase.

— Trombadinha correndo, bate na gente, pega coisa. Levam até a esteira. E se alguém reage? Bala perdida. Essas correntinhas de moça. Puxar assim, muito rápido, pode até matar! Não, que polícia, nem na rua, ainda mais na praia. Quando tem é um ou dois gatos pingados bebendo água de coco. Parece até que estão em jogo de futebol. Mas daí eu que pergunto: e pra acabar com isso tudo?

Sílvio baixa a cabeça, num esmorecimento zombeteiro. O orador gosta de saber que o ouvimos. Seu colega esboça uma reação, mas não tem chance de terminá-la.

— Privatização das praias! Simples e justo, seu Rodrigo. Uma cerca alta. Guarita, bastante guarita, com os seguranças de binóculo e berro engatilhado. A pessoa compra todo mês um cartão, bonitinho, ou paga mensalidade, como se faz em clube. Ou então recebe um boné, esses chapeuzinhos de borracha, que tampa o sol, é... isso mesmo. Põe, o guarda vê, é da cor certinha, tudo bem. Pode entrar. Concorrência! Não tem licitação pra fazer obra pública? Taí: "serviços especializados de manutenção das praias." Deu hora tal, depois de escurecer, toca uma sirene, sai todo mundo, fecha o portão. Uns holofotes grandes, iluminando a areia, pra facilitar a limpeza. Os funcionários passam recolhendo o lixo, depois separam e levam pra reciclagem. Pensou que beleza, seu Rodrigo? Não é?

Percebo que Mônica saiu. De rosto franzido, Sílvio contém a risada e batuca o filtro do cigarro na unha do polegar. Chama o balconista.

— Uma pura, faz o favor. Que entre eu e o rato não há mais que pacto.

Olha-me de soslaio e dá um gole solto. Pede outras duas. Bebemos.

— "Mais filhos dos aptos, menos dos inaptos, eis a questão-chave do controle de natalidade". Margaret Sanger, mil novecentos e dezenove.

Para sacramentar o dito, estala o copo no balcão. Chupa o bigode, larga umas notas amassadas, parte jogando acenos ao teto. Viro um trago indigesto e o acompanho.

A cabine está acesa. O velho apóia no estribo, joga-me a mochila e sai com a dele nos ombros. Mônica diz que vai dormir no caminhão. Deseja-nos boa sorte, sem a melancolia que eu esperava. Não respondo. Estou muito cansado para lamentar alguma coisa. Ou para agradecer-lhe.

Seguimos pelo cascalho lamacento. Chegamos a uma construção térrea, de alpendre mal iluminado, com uma sequência de portas e janelas pequenas. Abrimos o número doze.

Há duas camas estreitas e uma cadeira. O papel de parede, com fotografias de paisagens nevadas, está coberto de rabiscos. São nomes, frases românticas, ditos espirituosos. Arranco os sapatos e as meias. Estico as costas no colchão, vértebra a vértebra, estalando as molas num alívio ruidoso. Sílvio apaga a luz e senta à penumbra, olhando por uma fresta da persiana.

 

VII

 

"Corre", vem dizendo o menino. "Corre".

É bonito e feliz. Chega de braços abertos.

"Corre", insiste a voz aguda.

Perto, o sorriso desaparece. Ele abana as mãos coloridas. Vem esparramar no meu paletó novo as mãos sujas de tinta.

Sílvio balança-me pelos ombros.

— A polícia! Chamaram a polícia! Rápido!

Ouve algo, vai espiar na janela. Apalpo a escuridão metendo nos bolsos o que encontro. Visto as alças da mochila e corro para o lado oposto do quarto. Bato suavemente ao longo da parede, até sentir um ruído oco. Forço e desloco a proteção do buraco destinado a um improvável aparelho de ar-condicionado. Enfio-me no vão, arranhando as costelas, de frente para as estrelas e os rastros do luar.

Saímos em silêncio. As mãos afundam na relva ciciante. Engatinhamos junto às paredes dos outros quartos e paramos na aresta da construção, diante de uma faixa iluminada.

— Coragem — Sílvio murmura, logo atrás. — Andando normal. Vai.

Cruzamos a luminosidade a passos trêmulos. Buzinas, freios, vozes, talheres, músicas desencontradas. Entramos no banheiro externo da lanchonete, fingindo naturalidade, misturados com os passageiros sonolentos de um ônibus que acaba de chegar.

Paramos lado a lado nos mictórios. Sílvio apanha um maço de folhas amareladas, presas por volteios de arame rudimentar, com as bordas em frangalhos. Segura o caderno, buscando palavras solenes, mas acaba entregando sem dizê-las.

Sai ereto, fechando o zíper da calça e perscrutando ao redor, como se deixasse um bordel. Vou ao seu encalço, atrapalhado com a mochila aberta, metendo-lhe o volume disforme, reordenando as coisas soltas.

O velho espera na calçada. Não me olha. Apenas pousa a mão nas minhas costas e se afasta na plataforma. Conversa rapidamente com o motorista de um ônibus prestes a seguir caminho. Estende-lhe o dinheiro, recebe o troco, escarra no cascalho, arremessa a bituca e sobe os degraus.

Sigo na direção oposta, fazendo um trajeto largo ao redor do estacionamento. Vultos passeiam no corredor dos dormitórios. A luz do número doze acende, espalhando sombras irrequietas no gramado. Mônica fuma diante do quarto. Os policiais precipitam-se para fora, gesticulam, gritam, dispersam pelo terreno.

Ouço a terra crepitando com as solas apressadas. Silhuetas escuras cruzam os espaços luminosos entre os veículos. Assim que eles deixam a construção, corro até uma extremidade penumbrosa do alpendre. Tento uma porta. Forço: trancada. Busco a vizinha. Ainda não. Agarro a outra, já desesperado. Cede. Entro num salto, fecho rápido e giro a maçaneta com absoluta cautela.

Mantenho o quarto escuro. Pelo vão da persiana, acompanho os movimentos do exterior. Mônica atravessa o pátio e se reúne com os homens uniformizados junto ao acesso para a rodovia. Conversam, procuram, depois seguem à lanchonete.

Um barulho tímido agarra minha expectativa, logo atrás de mim.

Viro-me gelado às trevas. Uma nódoa de fumaça envolve o canto do cômodo. As réstias da janela denunciam um volume claro remexendo ali. No próximo instante discirno o rosto jovem, limpo de sobrancelhas ou quaisquer pelos no crânio. Rugas brilhantes mantêm-se arqueadas acima dos olhos redondos. Está caído, encostado na parede, abraçando as canelas.

— Padre!

Avanço até ele, implorando silêncio.

— Os loucos também te amam, padre! Rogai por nós pecadores, não se lembra? Não se lembra? Rogai por nós pecadores, agora e...

Ajoelho à sua frente, abanando as mãos. O rapaz gargalha.

— Ah, mas eu creio! Agora e na hora de nossa morte!

Sento ao seu lado. Falto de gestos, ofereço um cigarro. Ele aproveita a brasa do outro. Dois tubos de fumaça quase paralelos saem da carranca oval. O olhar penetra e se esvai.

— No princípio Deus criou a terra e o céu. E o espírito do Senhor foi levado por sobre as águas — faz uma expressão solene. — No horror da visão noturna assaltou-me o medo, e todos os meus ossos estremeceram. Girei a terra e andei-a toda, ele disse.

A linha luminosa sob a porta salpica de sombras. Ele me toca no braço.

— As juntas das tuas coxas são como uns colares fabricados por mão de mestre. O teu umbigo é taça feita ao torno, que nunca está desprovida de licores. O teu ventre é um monte de trigo cercado por açucenas. Todos a querem, a clamam, padre, bendita é ela entre as mulheres. Os seus peitos são como dois cabritinhos gêmeos, filhos da cabra montesa. O pescoço é uma torre... os olhos... são como piscinas... como piscinas...

A cabeça nua encosta na parede, desenrolando fios de suor que se encontram na boca entreaberta. Ofega. Ergo-me num arrepio, soltando os passos à porta. Abro, espreito o corredor, saio do quarto. Continuo na escuridão e chego aos carros emparelhados. O ônibus de Sílvio já partiu.

Um grito me paralisa. Ameaço virar e recebo a mesma ordem. Começo a correr, sentindo a marcha alheia no meu encalço. O cascalho vibra, imediato, como se ecoasse destas solas. Agacho atrás dos veículos, segurando as latarias, procurando através dos vidros embaçados. Eis que deparo com o homem de farda, tão próximo que ele tem um nítido sobressalto à minha aparição. Tento levantar, escorrego, arrasto a terra pedregosa, caio de novo, sinto um toque leve do chute no ar. Pulo num espaço livre.

Sem ruídos: ele espreita. Respiro, seguro o ímpeto, aguço os sentidos. Grudado na lateral escura de um furgão, percebo algo que se move ali dentro. Fecho as mãos em torno do rosto e vejo uma pequena cadeira balançando. E nela um bebê. Ao fundo, no outro lado, o vulto esverdeado grita. Some e reaparece aqui. Empurro a porta, apanho o corpo mole, sua fragilidade anula meu impulso, caio, bato a cabeça, espatifo o cotovelo para subir, rolo no assoalho.

O policial se coloca no espaço entre os carros, de arma apontada. Vemo-nos através da janela contígua. Ele vai e vem, esperando. O veículo trepida suavemente com o motor ligado. Seguro o bebê, sustentando-o para fora. Ele guincha como se vomitasse o esôfago. Berro mais alto que o choro.

— Vou matar! Olha que eu vou matar! Aqui! Tô rasgando o pescoço!

— Calma, rapaz. Deixa a criança. Ela não tem culpa.

— Deixo porra nenhuma!

— Vamos conversar.

— Joga o ferro e sai. Joga e sai!

— Pronto, aqui. Olha. No chão. Agora pensa no que vai fazer.

— Penso o caralho. Vai embora. Longe, quero ver todo mundo longe daqui, senão eu mato. Vou matar!

Meu equilíbrio levita, numa onda repentina, o motor explode, um solavanco me arremessa de joelhos no tapete. O céu desfila nos vidros, as luzes passeiam, os veículos recuam e o policial nos segue, rolando espremido nas latarias, até desfalecer.

O furgão rasga o acostamento, patina pela terra do acesso, ganha aderência e arranca, deixando uma nuvem de poeira. Acelera no limite possível, ignorando os buracos, saltando nas mudanças de nível. Desembesta pela rodovia em ultrapassagens ziguezagueantes.

Com as sirenes cada vez mais longínquas, mergulha numa vicinal estreita que atravessa um canavial. Não diminui a velocidade, arruinando as molas na trilha agreste, desbastando a vegetação que invade o caminho. Os ruídos e faróis desaparecem.

— Verinha! Ô, meu amor, Verinha querida! A mamãe tá aqui.

Longa mecha de cabelo negro esvoaça por cima do assento. Olhos franzidos espiam-me no retrovisor. Tenta apalpar a criança.

— Tá machucada?

Balbucio qualquer resposta, examinando o corpinho trêmulo em minhas mãos.

— Tá machucada? Responde, porra!

— Não. Acho que não. Eu... tentei proteger.

— Passa ela pra cá. Põe a cadeira e o cinto.

Obedeço, acomodando o bebê a seu lado.

— Moça, desculpa, eu...

— Depois.

Não insisto porque sinto que vou desabar. Encolho no assento, formigando, encharcado. Vera silencia e adormece, embalada pela música suave que escapa do rádio. Tomado por uma descarga de soluços, permito que se esvaiam num choro quente, amargo e caudaloso.

 

VIII

 

Assunção

 

Subimos a escarpa rodeada pela floresta. Apenas o mar nevoento brilhava ao pé da colina. O suspense da noite preenchia nossos ouvidos alertas, e nada mais ousávamos sentir.

Finalmente chegamos ao palácio isolado no cume. Batemos às portas imensas, que abriram devagar. As luzes de dentro vieram berrar no penhasco. Entramos cheios de pudores, apertados uns nos outros, já partes da construção, perplexas janelas suas, olhares de vitrais sem cor. Perdemo-nos pela atmosfera pomposa, ofegantes mas cheios de respeito, sorrindo sob o horror de fojos, implorando licenças.

Criados de uniforme perfilavam-se no salão. Entre eles havia uma tranqüilidade latente, opaca feito um pano fino que viesse acariciar nossas faces exaustas. Disseram que Lúcia dormia em algum cômodo no piso superior.

Seguimos as ondulações do tapete nos degraus da escadaria. Plena e eternamente despertos, farejávamos a salvadora por miríades de pistas imaginárias. Cada fragmento de matéria exibia um resquício da sua magnífica passagem.

Os serviçais não se opuseram. Permitiram que nos arrastássemos sequiosos pelos aposentos vazios. Onde olhávamos havia espelhos, perpetrando os quartos, as telas nas paredes, nossas esperanças incolores.

Reviramos a mobília de todas as épocas humanas, os embolorados recônditos dos armários, os segredos ocultos das gavetas repletas de coisas alheias. Brincamos com os objetos, frágeis e valiosos, relíquias de prosperidades imemoriais, petrechos de entalhes únicos. Mapas de lugares imaginários, instrumentos de serventia fictícia, relógios parados em outroras incógnitos, marcando as rotinas de quem ousou esperá-la.

Sim, tivemos sorte. Velamos o sonho daquela mulher para sempre guarnecida em mistério, como se a víssemos por um vidro de sepulcro. Ama de todos, múltipla criatura de tantas especulações, dissipadora de sua própria divindade.

Se não há um deus apenas, indagávamos, nenhum é mau?

 

Cela

 

Fomos conduzidos até um vasto porão, iluminado por candelabros de fina ourivesaria. As poltronas rescendiam à naftalina das roupas expostas nos cabides, escancarando uma pompa antiquada. Pelo revestimento de papel escorregavam manchas de umidade, ondulando-o de bolhas que trincavam ao passear dos insetos no fundo insondável.

Inúmeras vezes abrimos a porta. Sabíamos que a mantinham destrancada. Mal enfiávamos as cabeças para fora, contudo, recuávamos de costas, assombrados por um obstáculo intangível. De novo encenávamos a fuga, e novamente a imaginação do perigo nos dissuadia.

Depois chegava o empregado, a passos corretos, na mais atordoante polidez. Queria saber se nos faltava algo, um capricho qualquer que substituísse a mínima visão de Lúcia. Mas não queríamos lenitivos, mais água, mais vinho, mais comida. Estávamos fartos de ansiá-la.

Alguns berravam. Outros armavam planos de emboscada, fingiam lucidez para inspirar cumplicidade no serviçal. E novamente ele negava, solícito, as imprecações. Devíamos esperar, repetia, e encostava a porta desnecessária.

Permanecemos nas dependências do subsolo por um tempo de quimera, incapazes de sair, mas desfeitos de ânsias forras. O grupo aumentava. Diariamente surgiam novas pessoas insistindo em vislumbrá-la, os neófitos com uma veemência que os antigos menosprezavam. Nos seus olhos sandeus e em suas mãos crispálidas estavam nossos fins. E éramos o deles.

As refeições, numerosas e abundantes, transcendiam a saciedade numa espécie de banzo. Só então conversávamos, em sussurros quase inaudíveis, desviando os olhares de culpa e tédio. Creio que intuíamos as perguntas e respondíamos a nós mesmos, para que os ouvidos captassem as incertezas que latejavam no ar viciado.

Uns pouco se interessavam pelos outros. Mal nos conhecíamos. A maioria se encontrara pela primeira vez naquela madrugada incerta, e o resto ainda mais tarde. Os grupos dispersavam, formando novos, e assim rearranjavam uma permuta constante de estranhezas.

 

Rito

 

Uma garota abalou-se pelo porão, sem objetivos claros, esbarrando contra os móveis. Doeram-lhe os ombros e a cabeça nas coisas que podiam atingir. Espatifou em pé, de frente, os braços abertos, grudada no papel fofo e putrefeito. Esferas inflamadas nas pontas dos dedos, roxas unhas sem esmalte, agredia sua parede como se estivesse deitada nela.

Era raiva, misturada a algo que lembrava um mimo infantil, uma teimosia suspeita de risinhos e lamentos, no limiar onde o cansaço vislumbra a loucura. As demais tentaram detê-la, em vão. Depois vieram a mim, pedindo ajuda.

Não reagi. Lúcia valia mais do que todas juntas, incontáveis delas, mais do que uma fogosa multidão daquelas menininhas raquíticas de fertilidades e sabedorias. Disse-lhes que cuidassem da jovem como pudessem e, evidentemente, não o fiz com essas palavras. Gritaram e choraram até que eu não suportasse mais, ameaçando agredi-las.

O empregado apareceu à soleira da porta. Com sua bondade irrecusável, pedia que diminuíssem o barulho, para não ecoar ao jardim e aos que se acotovelavam na ânsia de travar contato com Lúcia. Quanto mais silenciosos fôssemos, garantiu, maior a chance de recebermos uma visita da anfitriã.

As mulheres correram a ele. Quiseram agarrá-lo, talvez até seduzi-lo, mas era inútil. Sua expressão etérea nos paralisava. Os eventuais golpes iniciados dissipavam numa coreografia de menções, esmorecendo no trajeto interrompido.

E o serviçal não parecia alterado em notar que o odiavam. Deixava sempre a passagem livre para que os mais atrevidos arriscassem a libertação. Ele sabia que em seguida voltariam, cegos de prantos, alucinados de incompletudes.

Deitaram a garota enlouquecida num sofá. O mais velho do grupo ergueu sua consternação, vociferando um desespero que suplantou os berros dela. Gritou com tamanha ferocidade que todos silenciaram e, de onde estivessem, na posição em que foram surpreendidos pela explosão saliva e rouca, viraram-lhe os rostos, quase flexionando os sobressaltos.

Afirmou que deveríamos abrir a porta e sair. Não lhe importava mais a vida, ali dentro ou fora do palácio. Tudo seria decidido no gesto de abandono do cômodo, a qualquer custo, ainda que padecêssemos tentando.

A algazarra não deixou que terminasse. A sensatez do velho já não servia a ninguém. Não podíamos falar ou refletir ou prometer atitudes. Nenhuma voz nos uniria.

 

Transe

 

As carícias pediam que a carne purgasse a falta maior. Eviternecidos de compaixão e desejo, lutávamos contra a inapetência dos corpos, no deslumbramento infinito da nudez e de suas impossibilidades. O sobressalto nos olhares, globos nubígenos, temerosos de sensações impróprias àquele mundo, era uma comunhão de arrependimentos entregues. Todos dormiam, e não dormiam, com a mesma pessoa.

Os corpos vaguejavam pelo cenário, batendo-se unidos, implorando alentos que os sentidos desconheciam. Sublimavam os gozos num pânico de oração.

As pessoas se engalfinhavam em cima dos móveis, arrastando louças e pratarias, sujando os tapetes vetustos. Cada grito o único nome, idêntica ausência, o fato indivisível da vergonha.

Por Lúcia nos agarramos aos tacos do assoalho com as garras febris. As gargantas enxutas de amargura, as feridas arreganhadas em gotejares convulsos, os poros sedentos, bocas minúsculas babando vida. Urgíamos, delirantes de ofensas, entregues ao desamparo que nos justificava.

Terminávamos prostrados, em nós fundidos, como se amássemos nossos reflexos. Desespero comum. Antigo. Ódio supremo.

Pode haver memória e inteligência sem amor, diziam os sábios, mas não pode haver amor sem memória e inteligência. Digo que não pode haver amor sem consternação. O triunfo glorioso de um mal que nos define e que nos salva do absoluto.

Perdemos o privilégio de fingir que seríamos capazes de amar sem amá-la. Restaram exclamações de volúpia oca, arruinadas no desassossego de arranhar uma fresta que jamais se entreabriu. Ressonamos despertos, sonhando uma saudade a contratempo do revés total. Sempre o mesmo revés, as mesmas saudades, puxando acima violências e traições.

Âmagos eviscerados, satisfeitos e feridos, estávamos prontos para ela.

 

Catarse

 

As verdadeiras orgias são vãs. Apenas um pássaro que observa a queda vertiginosa de outro, rumo ao desconhecido abismo íngreme, somente a ave que fica na frincha segura da pedra conhece o absurdo que antecede a revelação. Mas nenhum saber preservado naquele que hesita e sobrevive suplanta as vertigens maravilhosas da queda.

Lúcia entrou no sótão levando-o consigo. O despertar azul refulgia uma seqüela mísera de sua beleza eterna. Era dela a abóbada brilhante da manhã.

Surgiu como quisemos que surgisse. Humildes, vulneráveis, nunca. Pertencia aos nossos sonhos, não estes a ela. Teve o fim planejado, que tanto semeou nos súditos famintos, a devoradora das fomes torpes. Quando veio, sabíamos o que fazer.

Homens e mulheres, velhos, jovens, infantes, lúcidos e perdidos, sincronizados pelo mesmo instinto, precipitamo-nos juntos para agarrá-la. Ninguém pôde ouvir seus berros na multidão de fora, submersos naquela tautofonia alucinante de êxtases, louvores, cânticos rituais.

Espremidos na selvageria da refrega, debruçados sobre os restos vívidos que ainda tremiam, despedaçamos o corpo frágil, mordemos, arrancamos a pele, as veias, os tendões, os músculos, as mínimas cartilagens. Pelos eriçados, olhos insanos, dentes expostos, glotes feridas como se não a engolíssemos, mas ela a nós, respingávamos uns nos outros com enlevo indescritível, no ápice do esplendor.

Tive-a. Consumi seus fluídos até saciar com a essência que evanescia do pequeno coração viscoso. Aspirei o calor do sangue que me atraía à vida, escorrendo, palpitante, em minhas mãos. Rasguei suas fibras para desvendar o sopro do pulso primevo. Esmaguei sua ternura quente, de natimorto satisfeito, exalando o perfume que ele aprisionava nas tramas da carne virgem.

Mastigando, sem notar que também chorava, sem saber se o que me pintava o corpo era ainda o seu sangue puro, ou se misturava o de ambos, lembrei o momento em que ela entrara no sótão.

Já a atacavam desde a porta. Inquinando-me de triunfos, veio mansa e prestimosa, ciente do mergulho derradeiro. No sorriso um avesso de dó. Expirando a meus pés, ofereceu-se maravilhosa, na integridade ferida que tortura o porvir dos insensíveis, perpetuada sorridente pelos artistas afora.

E ali, caída, mãe do sempre, balbuciou:

O espírito não está sozinho.

 

IX

 

Raios dourados contornam as nuvens imóveis. Por entre os arbustos que escondem o furgão acompanho os riscos luminosos crescendo, explodindo e dissipando na estrada. Beatriz e a filha dormem no colchonete, cercadas de sacolas, brinquedos e ferramentas.

Vera se mantém agarrada ao polegar da mãe, também nua, imperceptível como um anjo a pairar sobre o corpo santificado que possuí sem culpas, ruídos ou afagos. Ambas estremecem juntas, roçando as rugas no lençol com pedaladas gêmeas. Beatriz estende o braço livre, tensiona a mão numa concavidade estranha, repuxa o espaço entre os seios, dobra um pouco as pernas e junta os pés, toda curva, no suplício de uma crucificação luxuriosa.

Enfio na mochila o caderno coberto pelas garatujas de Sílvio. Esfrego os olhos cansados de ler e reler na penumbra da lanterna. Bocejo. A essa hora da manhã já não dormirei tão fácil. Logo continuaremos seguindo rumo ao norte, ainda por um dia ou dois, para trocarmos de carro num esquema que ela julga infalível. Não tenho disposição nem liberdade para questionar detalhes.

Visto a bermuda, calço os chinelos, corro a porta do furgão, afundo os passos nas folhas secas. Afasto-me do matagal e cruzo um descampado inútil, aberto para receber alguma construção que nunca houve. Subo numa pedra do barranco, onde fumo observando a alvorada.

Um pouco desta incompletude vem de Beatriz. Há um doloroso travo de indiferença no seu modo esquivo de se envolver comigo. Na sedução dura e mecânica, no esmerar dissimulado com que realiza as coreografias mais eróticas, mesmo quando nina o bebê, alheia às trevas de qualquer refúgio inóspito.

Só embriagada ela parece autêntica, limpa do siso maduro que não permite graças simplórias e dos carinhos protocolares com os quais julga aplacar minhas impaciências. Então sorri, brinca, aceita pequenas irresponsabilidades. E então reconheço, no fundo morno dos seus olhos noturnos, uma centelha rara de afeição. Ali me aconchego até que retorne a Beatriz ensolarada e ladina, irritante e irritada, senhora dos outros.

Sei que também sou cúmplice de algo. O nome que descobri no documento do carro, a soma desmedida que ela guarda no estepe e as malas irrisórias sugerem que nossa viagem é um exercício de fugas complementares. Diz que pretende voltar para casa, mas a palavra conota muitas coisas vagas, inclusive uma espécie de convite. Submisso e disponível, órfão de alternativas, respondo com minha presença calada.

 

 

setembro, 2015

 

 

 

Guilherme Scalzilli é historiador, mestre em Divulgação Científica e Cultural. Autor do romance Crisálida (Casa Amarela, 2007), entre outros volumes de contos e poemas. Colabora regularmente com artigos para diversos veículos de comunicação. Publica um blogue sobre arte, política e atualidades: www.guilhermescalzilli.blogspot.com.br.

 

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