No fue un sueño,
lo vi:
la nieve ardía.
Ángel González
Compondo o sitio arqueológico
A vastidão
é uma pedra
redonda e fria.
Grande esfera
onde deslizam
e desabam as criaturas.
O horizonte — gelo
intransponível.
Daí esse tatear — essa procura.
A obscura arqueologia de esconder-se.
E, no silêncio,
no cu
desse branco profundo,
aguarda,
e se expande,
e fulgura,
o jardim das epifanias.
Primeiro movimento
Afora a vastidão branca,
nada mais resta
a ser perseguido.
O fogo — extinto.
Saber-se
de partida.
Seguir o caminho do vau congelado.
Segurar-se cego
nas alvas tranças
que pendem
no absurdo.
Primeiras escavações
É necessário buscar espaço para o silêncio — ocupar-se dele.
Até que nada mais sobre
solucionável pela palavra.
Permanecia apenas um sibilo.
Ria-se o vento...
A vivacidade de cada gesto
— retida —
afastava a paz
confortável do esquecimento.
E toda delicadeza
não removia
a neve dos olhos...
.
A faca yanagui
despregou da glande
a gota de sêmen.
(Primeiro fóssil.)
Resgatou da solidão
o vicio cuspido.
Sobre anjos e blasfêmias
Existe uma parte que se quebra.
E, sem ela,
receia-se
pelo fim do todo.
(Dizem-no: extinto.)
Reluzem desejos na convexidade
da grande esfera.
Por isso videntes
não a deixam tocar.
E a iluminam com a castidade
de seus olhos puros e atentos.
Deixam cair sobre ela
o que há de imaterial
nos anjos e estrelas.
(A ausência de peso
não trinca
— não lasca —,
não faz perecer a perfeição
do que se enseja.)
Só que um toque atrevido,
por delicado que seja,
faz desabar o enigma
(Chamam a isso: pecado.)
Portal dos anjos
Anjos ...
Dou-lhes de presente
minha sanidade.
Sei o que me custará
rolar a cabeça no acaso ...
Anjos de poeta não implodem,
esvaem-se da cabeceira
da cama do menino.
Retornam para a dimensão do sonho
que se teve
e se dispersou com a razão.
Anjos...
Retribuo com o poema a vigília
e peço que devolvam a Paulo
o patibulum e a culpa.
Da construção de cidades e sentenças
Gélidos desfiladeiros
ladeando avenidas...
Estruturas metálicas
— andaimes —
espinha dorsal
de enormes geleiras
que sentenciam à morte
os que ignoram a cronologia
do desespero.
Insignificância
Em que pese aos malefícios para o corpo, devemos
arrastar a consciência de nossa insignificância.
O azul se dissipa
em tons de desespero.
Os segundos corrompem
nossos sonhos,
e a eternidade
consome toda inocência.
O céu conspira
dentro de mim,
ponto
sujo no útero
da neve.
A ordem natural
Vida,
esse distúrbio das moléculas
que se agrupam
e se toleram;
que despertam assombradas
e se espantam no turbilhão do útero;
que choram pela primeira vez,
e se expandem à busca
de esperanças;
que se esquecem da inexistência
de possibilidades
e se acasalam;
que se transformam em autômatos
e digladiam com seus iguais,
e se espantam,
pela derradeira vez;
que cambaleiam e tombam,
e que não ouvem mais
o desespero das carpideiras,
quando, já inconscientes
e verdadeiras,
retornam
ao estado natural de fonte
energética do Universo.
Discurso para o cadáver
Teus olhos
não mentem
essa simplicidade
em dizer:
tão breve, a vida,
enquanto saturamos
o ar
com subterfúgios
e preces.
Do ponto
em que se parte
― se esquece ―
o espectro
da carne
― do irremediável.
Da carne
à cinza,
do torrão de
terra
ao desprezível
mármore
― questão alheia ―
(prevalecerá a vontade
do Universo).
Que os vivos
tratem da espessura
das trevas.
A você, o privilégio
da dimensão
onde se plantam flores.
Agradeço
a sinceridade
azul
em teus dedos,
ao lançares os dados
que julgarão
os versos
impossíveis.
E o que disse
da memória ...
A memória sem lar,
desnecessária,
posta a ausência
cúmplice.
Se pudesse
te acenderia um cigarro...
Deixaria a guimba
pendurada
em teus lábios.
(Como é bela e
inútil
a última centelha...)
Logo
chegarão.
(A boca aberta da cidade
despeja
suas crias.)
Vestirei a máscara
e restarei
um momento ― breve ―
(o tempo de observar a indecisão
das chamas perante o choro
humano).
Um resto de sol no desalento
Ocupo-me de uma febre
sem propósito.
Modos existem
de forjar os dias,
principiar universos,
rir do descomunal
segredo da vida...
Mas não nessa noite gelada
em que persisto centelha.
Eis a última pele ― a palavra ―
que se desgarra inapta
a prosseguir
afirmando
o esplendor da verdade.
Pisco*
Não se acaba facilmente com a civilização das mãos.
Roland Barthes
Congelado,
o pincel dos cílios
fecha os olhos
ao ilusionismo das cores.
As mãos rasas
― enciclopédicas ―
distraem-se do torpor
na prancha de gelo.
A bebida
nos torna invisíveis
e sagrados.
E a sobriedade
não permite a palavra
― amor.
*aguardente andina
Qual o papel do poeta na seleção natural?
O poeta
― atleta do abismo ―
espreita o entardecer
por detrás
da história.
O poeta
― alpinista do nada ―
pendura-se na fenda
do portal do tempo.
Vê o branco
― o não desvio ―
― o não impulso ―
e não mais
se move.
Os livros
Os livros são meu celeiro
de devaneios.
Onde adormeço
na dobradura do tempo
― pênsil ―,
no desfiladeiro de um cotidiano
que nos semeia
no nada.
Os livros
abraçam
minha loucura
atordoada
pelo semblante
de homens dignos,
sóbrios e austeros,
óbvios
e dissonantes.
Os livros
me permitem
compartilhar silêncios,
dissolver urgências,
contagiar os
dias com angústias
bem-vindas.
Os livros
me batem
na cara,
me chamam de homem
e me despem,
sádicos.
Reinício
Alheio à falsa
indiferença do condor,
persigo sua imagem,
Deus dos homens,
e corta-me a pele
o cerol
das ramagens.
Rês
Eis o meteoro
da impaciência
que destrincha a carne,
que fratura
o tempo e
me descobre
tenro,
palatável,
em meio
aos estilhaços
da urgência.
Nutrido
em úbere
divino,
resfriado nas
evidências da razão
— que não basta.
Clandestino
A verdadeira clandestinidade
se pratica simplesmente mantendo-se vivo
Acorda-se do último sonho
em uma esquina vazia,
e o que se acreditava
se dispersa
além dos olhos.
O contorno das montanhas
desfez o sentido
das encruzilhadas
(desvios
só interessam aos apressados;
e já não se tem mais pressa).
Tédio
Certa profundidade
se demora nos olhos
fechados.
Sim, pesa
o tempo,
e cada pálpebra
ressente o fulgor
esquecido.
O brilho repousa
– ontem –
cada vez mais.
O nada
é um cansaço
que dá sono.
Assim & assado
Foi ali que tentei equilibrar as cruzes mortuárias das lápides com as linhas paralelas dos trilhos, que, se não ofereciam, com seu rumo terreno, a ressurreição, ao menos faziam supor uma terra sem a peste. Herbert Farias
Uma parede
entre duas luas,
fatias de liberdade
poética.
Antes assim que assado;
e assado é sentença,
condenação de loucura.
Um escombro
entre duas fronteiras.
Havia uma alternativa
em alguma gaveta
queimada para não morrer
de frio.
Uma aspirina
entre duas torturas.
A simetria do caos
Há simetrias
nas reentrâncias do caos.
Desandada
tristeza
dizer: ― sim ―
me desespero.
Descobrir o que
― enfim ―
conta:
a boca larga
da sombra
onde
cada um é igual
à quinta
parte
do que lhe resta
como consolo.
Celebração
Rolam seixos,
nuvens rasantes
antecipam os passos,
montes vazam da escuridão
como uma promessa.
Satélites tombam
do céu em pane
― riscos rubros
ao vento ―,
incapazes de rastrear
o corpo em transe,
despido de sofrimento.
(O disfarce da órbita
é desviar-se do óbvio.)
Latitudes e longitudes
não reconhecem
minha insignificância
― desapego.
Encerraram-se
as buscas e suas
obtusas formalidades.
Os cafés estão lotados,
as ruas perversas
― distendidas ―,
os corações famintos.
Desço as encostas
que permanecerão
indiferentes;
busco as cinzas contemporâneas
e os cipós atlânticos.
Do horizonte
de um azul cambiante
chega a esquadra
de helicópteros
de papel
lançados do edifício antigo
trazendo meus olhos.
A serenidade possível,
sem um deus, não
está ao alcance dos eus
idealizados,
mas no sujeito
cuspido e escarrado,
despido
de deslumbramento
― marcado.
tetelestai*
Jo 19.30
*Está consumado.
junho, 2015
Jorge Elias Neto. Médico cardiologista, pesquisador e poeta. Publicou Verdes versos (Vitória: Flor&cultura, 2007) e Rascunhos do absurdo (Vitória: Flor&cultura, 2010). Participa de vários portais e sites de literatura. Escreve o blogue O Estalo da Palavra.
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