dura é a carne dos olhos
ela não tinha
aptidão para o
amor
até o último
desfalecer seus
olhos e merecer
sua crueza de luz
ela não tinha
mais adornos
e seus azuis
rasgados
e seus anzóis
agora ela andava
e sabia
da sua aptidão
desatinos
quantas traças
coabitando
a mesma gaveta
um acúmulo de fome
entre as calcinhas
carcomidas
a penúltima chance
e mais adiante
a janela vomitava as
atrocidades da moça
que assassinava traças
matando de tédio
as calcinhas
brancas/ rendadas
vermelhas/ alvoroçadas
sem o menor pudor
porque é de nascença
uma pinta na
pele
uma pequena
mostra da sua
pequenez
na axila direita
morava a verruga
ela nunca quis
extirpar
tingia sua brancura
de uma magia
um pouco bruxa
um pouco puta
dessas que a gente
quase não ouve
falar
movediça
na minha própria pele
mora um domador
um inquilino
irresponsável por leões
nessa imprópria pele
os casacos caíram
e as gaivotas beliscam
algo fresco de engolir
nessa pele de escrever
nessa pele de inventar
mora um cavalo marinho
louco pelo ofício de domar
de todos os cansaços
eu já me deitei
sem escovar os dentes
mas nunca engoli viver sem você
causa motriz
bobagem justificar
me afoguei
porque quis
me deram um mar
na entrada do corpo
e tinha lua e fogueira
eu bebi, só isso
tríade em tentativas
acordei tarde
já era outro mês
e quase perdi
a viagem
arrumei a sala
desarrumei os cabelos
organizei miragens
(uma por uma)
escolhi três pares
de sapatos
três odores
artefatos
arrumei o sorriso
prendi as ventanias
no quintal
elas me perseguem
três vezes
não te neguei
e o galo nem tinha cantado
atalhos
pra você que
me cimentou
na orla dos teus
olhos
me passeou pelo
teu corpo
elegendo minhas
mãos
pra você que
desmentiu a morte
pra você que
se esqueceu de me
devolver a chave
daquela rua
preciso ir embora
caminho de volta
a perna encolheu
depois os braços
e o coração
encolheu pra caber
na gaveta
no útero da sua mãe
no corpo do seu pai
na boca do último
amor
encolheu pra saber
seu limite
ser mastigada e morar
na traqueia
até o próximo engasgo
imperfeito estado de conservação
eu senti fome
de mundo
mas já era tarde
e a cozinha alagada
de tédio
os meninos dormindo
cada um num casulo
— de outra casa —
eu senti raiva
do mundo
mas já era tarde
pra falar sobre coisas
acordadas e confusas
eu senti então
náusea do mundo
como se fosse sábado
e eu estivesse atrasada
pra me embriagar
e chorar e trepar com
o primeiro homem que
me olhasse com a mesma
raiva do mundo
junho, 2015
Luciane Lopes é poeta e letrista, nascida em Mirassol, interior de São Paulo. Intimista, simbiótica, sinestésica, raramente passa um dia sem escrever algum poema e os minimalistas ganharam força e espaço na sua escrita. Desde menina escrevia como se os dedos tivessem vontade própria e isso se tornou mais intenso, quando perdeu seu pai, em 2006. A forma trágica da morte fez com que ela se tornasse uma "amoladora" de palavras. A poesia veio de forma visceral. Passou a utilizar sítios virtuais, como o Recanto da Letras e se surpreendeu com a receptividade dos leitores e o acolhimento dos escritores. Ano a ano, dedicou-se a aprimorar sua poesia e também a se descobrir por meio dela. O resultado dessa trajetória está presente em seu primeiro livro, O Miolo do Mundo é Macio, a ser publicado pela Editora Patuá, em 2016.