©thomas and quentin | fat & furious burguer

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Chovia muito quando o editor de uma conhecida revista gastronômica ligou para Zenóbia, convidando-a a escrever um texto culinário para a edição de junho. Se preferir, pode mandar umas quatro ou cinco receitas fictícias, na linha daquelas que a senhora incluiu no seu último livro, ele completou. Zenóbia, que com muito custo ouvia as palavras do homem por causa do ruído persistente da chuva, não hesitou em aceitar. Afinal, tinha cadernos e cadernos com anotações sobre tudo o que se referia aos domínios da cozinha, começando pela descrição detalhada de temperos, verduras, legumes e ervas em geral, além de já ter escrito uma espécie de enciclopédia de chás, ainda inédita, à qual se dedicara durante quase vinte anos.

         Disposta a escrever um conto, e não um conjunto de receitas imaginárias, Zenóbia passou a ruminar possíveis enredos, tão logo encerrou a conversa com o editor. Ela sabia que, no auge de seus oitenta e sete anos, não seria tão fácil o concentrado exercício da ficção. Por isso, resolveu se preparar com leituras que pudessem lhe incitar a fantasia. Zenóbia era dessas mulheres que, ao ler uma página, fazia-o com devoção, demorando-se em cada linha, como se uma única frase pudesse lhe revelar todos os sentidos ocultos ou perdidos. Era sua maneira de amar os livros. Gostava também de descobrir o insólito nas coisas comuns, do dia-a-dia. Nada mais estranho que o comum, costumava dizer, citando Novalis. Por outro lado, prezava todas as formas de delicadeza, mesmo achando que muitas coisas eram delicadas demais para serem escritas.

         Pensou, a princípio, em escrever uma história sobre peixes, inspirada no caso verídico de uma conterrânea sua, Lídia, que, quando criança, fora proibida de comer qualquer tipo de animal aquático coberto de escamas, provido de nadadeiras e que respirasse por brânquias. Em outras palavras: a mãe da menina, que detestava tudo o que vinha das águas e tivesse um cheiro intenso, simplesmente vetou, em sua casa, as carnes oriundas do mar ou do rio. Sem entender muito bem as razões de tal interdito, Lídia passou a cultivar pelos peixes um secreto interesse que, com o tempo, converteu-se em fascínio. Tanto que passava horas às margens do rio Paranaíba, vendo os peixes esquivos e especulando sobre o desassossego que os definia.

Zenóbia tentou criar um enredo a partir disso, imaginando Lídia com vinte anos, instalada em um pequeno apartamento em Belo Horizonte, para onde teria se mudado com finalidades de estudo. Deu para a moça um namorado e fez a seguinte anotação, com o estilo ainda em desalinho:

Fernando, versado nas coisas de cozinha, convidou Lídia para um jantar íntimo na casa dele num sábado de outubro. Para a surpresa da moça, o prato servido foi um filé de robalo ao molho de erva-doce, acompanhado de purê de mandioquinha e cogumelos salteados no azeite. Num primeiro instante, Lídia resistiu (em silêncio) a comer a iguaria, talvez porque para ela a sombra da mãe ainda era incisiva. Mas acabou por se render ao prato, comendo-o com um enlevo sem precedentes. O jantar foi, assim, um ponto de travessia para Lídia que, desde então, passou a colecionar receitas de peixes e dedicar-se, com fervor, ao preparo das delícias. Em poucos dias, aprendeu não apenas a escolher peixes frescos pela cor das guelras e pelo brilho das escamas, como também a descamá-los, limpá-los e cortá-los adequadamente. Elegeu o salmão como peixe preferido. Descobriu ser ele de índole noturna, menos afeito ao sol do que à lua, e que permanece na água doce nos três primeiros anos de vida, antes de ir para o mar e tornar-se livre. Conhecer mais sobre a natureza desse peixe não a impediu, entretanto, de testar várias receitas, como o salmão com crosta de gergelim e molho de gengibre, o salmão com molho de maçã e batatas coradas, a torta de salmão e ricota, o salmão com mel e sementes de sésamo.

Entusiasmada com os peixes da história, Zenóbia — que era bióloga — começou a vasculhar seus antigos livros de zoologia. Num deles, reaprendeu que na Idade Média a classificação dos peixes era feita segundo a complexidade de alma de cada espécie, e passou a imaginar as leis insólitas de tal taxonomia. Em seguida, deteve-se numa passagem sobre atuns, extraída de um dos Ensaios de Montaigne, e foi tomada por um súbito sentimento de ternura. Folheou também A História Natural de Estranhos Peixes Marítimos e o Sobre a Vida Aquática, de Bélon, e acabou por se perder em meio às muitas referências científicas. Por fim, já não sabia mais como dar sequência ao conto de Lídia, abandonando-o de vez e partindo para outra tentativa.

         Teve, então, o impulso de escrever uma história canina, com o título "O Cão Gourmet", em homenagem à cachorrinha de seu sobrinho, a qual tinha se habituado ao prazer dos pratos finos por estímulo do próprio dono que, avesso às rações (consideradas por ele grosseiras), tratava o animal à base de pães de centeio, queijo parmesão em lascas, broa de milho, melancia, peixe grelhado, tomates ao forno e iogurte de pêssego. Mas Zenóbia desistiu da ideia, por achá-la por demais burlesca. Aliás, como escritora, ela sempre se esquivara da anedota, não por preconceito, mas por falta de verve cômica.

Partiu, assim, para um terceiro plano: ficcionalizar as receitas de Hildegarda de Bingen, a santa alemã que, além de escritora, pintora, médica e naturalista, compôs partituras musicais, teve assombros poéticos e visões místicas. Tida como uma das mulheres mais interessantes da Idade Média, Hildegarda viveu no Vale do Reno, região de rios afluentes, vinhedos, rochedos, florestas e muitas lendas. Vem dela o nome da melhor amiga de Zenóbia, também médica e cozinheira de mão-cheia, que criou receitas famosas, todas vegetarianas, como o biscoito caseiro de castanhas, canela e noz-moscada, a ser comido com um chá de verbena, de preferência às cinco horas da tarde de uma sexta-feira. É dela também o prato de abóbora com alho, gengibre e argan — este, um óleo de origem marroquina, que tem sabor de amêndoas e um levíssimo, quase imperceptível, amargor.

         Disposta a tratar de Hildegarda, Zenóbia tomou as providências: pediu ao seu neto Ricardo que lhe comprasse, pela internet, três livros da santa e, ao recebê-los, não saiu de casa até os ler página por página, o que lhe tomou bastante tempo. Em um caderno, anotou alguns dizeres da autora, a serem utilizados no texto. E sublinhou as seguintes passagens com um lápis vermelho:

 

Sem fibras, a farinha de trigo perde seu vigor alimentício, deixando-nos pobres por dentro.

O cominho não aquece o coração, mas é ótimo para as fraquezas do espírito.

O alcaçuz dá clareza à voz das mulheres e sossega as pessoas insanas.

O endro, erva de aroma úmido, pode nos incitar à tristeza.

Chá de funcho é bom para quem tem olhos verdes e sofre de neblina na vista.

Leite é menos saudável no verão do que no inverno, sobretudo se vem das cabras.

Vinho, azeite e vinagre são a base dos milagres do corpo, mesmo os irreveláveis.

 

E assim por diante.

Mas como reinventar Hildegarda sem repeti-la ou ficar muito aquém dela? — ponderou Zenóbia, já demovida do intento de transformar a santa em personagem. Talvez fosse melhor traduzi-la — concluiu. O que estava fora de cogitação naquele momento. Ocorreu-lhe, então, a ideia de fazer uma entrevista imaginária com um suposto especialista em chás, famoso nos meios europeus e norte-americanos. Brasileiro e autor de dois livros sobre o tema, ele teria vivido no Japão, na Inglaterra e na Bélgica, sempre envolvido com o cultivo e a degustação da erva chamada Camellia sinensis. Zenóbia o chamou de Wilson Lemos, deu-lhe cabelos ralos, pele morena e olhos cor de azeitona. Fez dele um senhor de sessenta e poucos anos, viúvo e sem filhos, que vinha ao Brasil todos os anos para visitar os três irmãos e uma prima. Mesmo arredio, Wilson só teria se rendido aos pedidos de Zenóbia para a conversa depois de saber que ela era de Patos de Minas, cidade onde o pai dele tinha nascido. A entrevista teria sido feita em Tiradentes, também em Minas, durante um evento de gastronomia do qual ele tinha sido palestrante.

Com esse prelúdio, Zenóbia traçou um roteiro de perguntas e pôs-se a inventar as respostas possíveis. Na primeira, sobre as lendas que explicam as origens do chá na China, fez Wilson contar a história de um príncipe que, tendo feito a promessa de se recolher num jardim para meditar dia e noite, arrancou as próprias pálpebras, lançando-as num dos canteiros, só para não sucumbir ao sono. Das pálpebras teria, então, brotado a planta do chá, que mais tarde recebeu o nome de Camellia sinensis, por causa de suas flores brancas, semelhantes à camélia.

Uma outra lenda, menos prodigiosa, foi por ele descrita: a de um imperador chamado Shen Nung que, por volta de 2.800 a.C., estava descansando perto de uma árvore de chá quando algumas folhas caíram na vasilha em que ele pusera água para ferver. Ao reparar que, no contato com a água quente, elas produziam uma infusão esverdeada, resolveu prová-la, achando-a saborosa e estimulante. Daí teria surgido, então, a bebida que logo se tornou a mais popular da China e chegou ao Japão por volta do ano de 729, graças aos monges budistas que tinham ido estudar nos mosteiros chineses.

 A resposta à segunda pergunta, entretanto, Zenóbia não conseguiu completar de imediato, pois precisava consultar alguns detalhes sobre assunto, como datas e referências históricas e toponímicas. Deixou, assim, para abordar a chegada do chá no Ocidente um pouco mais adiante. Nas questões que seguiram, Zenóbia pôs Wilson para falar dos principais tipos de chá: o verde, o branco, o vermelho e o preto. Ela valeu-se, para isso, dos verbetes de seu próprio livro, atribuindo ao personagem os saberes sobre o assunto. Ao longo de três páginas, levou Wilson a discorrer não apenas sobre os benefícios de cada tipo para a saúde, como também sobre os sabores, aromas e texturas das folhas, de acordo com o grau de oxidação delas depois de colhidas. Ele menciona ainda os chás africanos e as tisanas, até lançar uma de suas pérolas mais conhecidas: No chá não encontramos a arrogância do vinho, nem a frívola inocência do chocolate, nem a veemência do café.

Para completar, fala sobre algumas raridades da bebida, como o chá branco produzido no sudoeste da China, que tem aroma de pêssegos e nozes, com toques de orquídea, e o chá verde oriundo das plantações japonesas do oeste, à beira do Monte Fuji, que possui aroma de amêndoas e ameixas. Logo, faz referência aos "chás poéticos", a exemplo do Gong Yi Cha, cujas folhas são enroladas artesanalmente em pequenas bolas que, durante a infusão, abrem-se em forma de flor ou dragão, exalando uma delicada essência de jasmim e rosas. Outro nessa linha é o chamado "lírio dourado", um oolong de cor verde-azulada, de origem tailandesa, com toques pronunciados de baunilha e caramelo, combinados com um aroma de frutas amarelas.

Em seu roteiro, Zenóbia tinha previsto uma questão final sobre a cerimônia do chá, na qual pediria a Wilson que descrevesse o ritual que ele costumava frequentar quando vivia no Japão. Entretanto, ao reler tudo o que já havia escrito, Zenóbia achou o texto por demais descritivo, para não dizer acadêmico. E desistiu da entrevista, não sem um longo suspiro.

Aborrecida com tantos malogros, Zenóbia passou uma semana sem escrever uma linha. Até que, pela pressão do prazo, resolveu partir para as receitas fictícias. Reuniu seus cadernos e passou a folheá-los em busca de estímulo. Releu sua velha lista de temperos e ervas-de-cheiro, os apontamentos sobre molhos e os escritos sobre frutas secas. Acabou encontrando um maço de folhas soltas, cada uma com uma receita. Deteve-se, por um tempo, na salada de feijão verde com amêndoas tostadas, azeite e cerefólio, a "erva do contentamento". Um prato, ela escreveu depois, bom para quem deseja amadurecer os sentidos. Havia também os bolinhos de páprica, perfeitos para mitigar o desespero. Três outras receitas pareceram-lhe ideais para a literatura: o nhoque de moranga com sálvia, o suflê de mandioquinha e o bolo de laranja com sementes de papoula. Mas como convertê-las em algo novo, diferente do que já tinha publicado em livro? — perguntou-se Zenóbia, intranquila.

Depois de muito pensar, recolheu tudo o que escrevera desde que recebeu do editor o convite e ficou, horas, matutando sobre o já dito. Pegou então a caneta e acabou fazendo, numa sentada, um conto sobre como não escrever um conto gastronômico. Isso, após beber quase uma garrafa inteira de vinho tinto.

 

 

 

março, 2015

 

 

Maria Esther Maciel nasceu em Patos de Minas (MG) e vive em Belo Horizonte. É escritora e professora de Teoria da Literatura e Literatura Comparada na UFMG. Publicou, entre outros, os livros: As vertigens da lucidez: poesia e crítica de Octavio Paz (ensaio), Triz (poesia), Voo transverso: poesia e modernidade (ensaios), A memória das coisas (ensaios), O livro de Zenóbia (ficção), O livro dos nomes (ficção), O animal escrito (ensaio), As ironias da ordem (ensaios) e A vida ao redor (crônicas). Tem artigos, poemas e contos publicados em revistas de vários países.  Foi colunista semanal do caderno de cultura do jornal Estado de Minas entre 2011 e 2014.

 

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