Para Antonio Barreto
I
O Land Rover passou em alta velocidade pelo acampamento da obra. No final da reta, diminuiu a marcha e iniciou uma subida tortuosa, contornando o maciço de rochas escuras. Perto das torres de comunicação, no alto da montanha, parou. Embora a rodovia não estivesse aberta ao tráfego, o Engenheiro-chefe acionou as luzes de alerta. Eram quase sete horas da manhã e o sol ainda não havia nascido. O termômetro do painel indicava quatro graus.
O engenheiro, um homem calvo e forte, saiu e, com o binóculo, sondou o território inóspito. Mesmo na luz baça, pôde verificar a informação que recebera através do rádio: na descida para o vale, próximo ao marco 540, a obra tinha sido interrompida; as máquinas que, conforme sua programação, deveriam estar nivelando o terreno, compactando, asfaltando, encontravam-se paradas. Faróis iluminavam uma tenda armada sobre o leito da rodovia.
— Merda!
Voltou ao carro, bateu a porta e arrancou.
II
Tratores, caminhões e rolos compressores parados. Improdutivos. Foi até a usina de asfalto. Um grupo de homens tomava café, fumando. O responsável pelo turno jogou fora a guimba e veio até o carro.
— Quase um mês de atraso e vocês de braços cruzados. O que houve? - perguntou o engenheiro, irritado.
— Chegaram durante a noite, dois nômades. Acamparam. Não fizeram nenhum barulho. O vigia de turno estava dormindo — disse, apontando o árabe corpulento que orava num tapete, do outro lado da estrada.
— Tirem a barraca do caminho.
— Já tentamos, mas ninguém fala a língua deles. Então mandamos o vigia. — Olhou novamente o homem prostrado de joelhos. — Voltou de lá com os olhos arregalados; não quis conversa. — O encarregado coçou a cabeça. — Quem sabe, o senhor...
— Obra minha não para. — Abriu o porta-luvas, pegou o revólver e desceu. Enfiou a arma na cintura, tapou com a jaqueta de campanha. Caminhou decidido rumo à tenda.
III
O nômade saiu da barraca e postou-se diante da entrada. Usava uma túnica azul, desbotada, e, na cabeça, um turbante amarelo. Saldou, em árabe, o estrangeiro que se aproximava:
— Salaam Aleikum.
O engenheiro respondeu com um meneio da cabeça.
O nômade estendeu o braço, cumprimentou-o e, num gesto amistoso, levou a mão espalmada ao coração. Sorriu, mostrando dentes cariados.
— Precisamos que vocês saiam do caminho — disse o engenheiro, visualizando o curso da rodovia. - Estamos atrasados.
O homem fitava-o com uma mistura de respeito e determinação.
— É janeiro, a obra deveria estar lá. — Indicou as grandes montanhas, no rumo do poente. — Por favor, saiam. — Voltou-se para o outro, aguardando a resposta. Nos olhos do nômade, muito negros, viu surgir um reflexo. O sol rompia o horizonte.
— Entre, Sahib; Muhammad o espera.
O engenheiro olhou-o com surpresa.
— Entre — insistiu. — Não se recusa nossa hospitalidade.
IV
— O estrangeiro está aqui — anunciou, num dialeto que o engenheiro não conhecia.
O pai ergueu a cabeça e, lentamente, virou-se na direção da voz; tinha olhos opacos. Estava sentado num tapete puído, ao lado de um candeeiro de latão e de alguns utensílios rudimentares.
— Que ele seja bem vindo a esta casa — sussurrou.
— Venha, Sahib. Ele quase não enxerga. — Sentou-se ao lado do velho.
O engenheiro continuou em pé.
— Diga a ele que devem sair do caminho; as máquinas tem que passar.
O filho traduziu as palavras. O ancião ouviu com interesse e respondeu num tom quase inaudível; suas mãos trêmulas estenderam uma pequena vasilha na direção do visitante.
— Ele pede desculpas, mas vocês, estrangeiros, é que deverão partir.
Atônito, o engenheiro recusou o que o velho lhe oferecia.
— Não se deve negar o alimento dado de coração, Sahib. — Pegou uma tâmara e passou a vasilha ao engenheiro.
— Temos um contrato com o exército; esta obra é estratégica para seu país: as tropas precisam chegar com rapidez até a fronteira, em caso de invasão. A situação ao norte é instável.
O filho contou ao pai. E então repetiu, em árabe, sua resposta:
— Não temos pátria; nossa terra é infinita, não pode ser dividida.
— Justamente. O deserto é enorme, vocês são nômades. Podem acampar em qualquer lugar. — Argumentou com impaciência.
— Sahib... Esta montanha é sagrada, aqui enterramos nossos mortos — explicou, baixando os olhos. — Por isso viemos... — olhou com tristeza o pai. — Muhammad sente que Alá o chama. — Virou-se de lado, fingindo que procurava algo; sentiu a velha mão descansar em seu ombro. Levantou-se, foi até o fogareiro. Serviu chá e bebeu, de costas para o estrangeiro.
V
O ancião murmurou algumas palavras.
O filho caminhou até ele, ajudou-o a ficar de pé. Entregou-lhe o cajado. Virou-se para o estrangeiro:
— Muhammad quer lhe mostrar algo. — Indicou um pote de barro, ao lado do pai.
O engenheiro deu alguns passos, curvou-se, olhando a água no pote. De dentro da túnica, o ancião puxou uma adaga. Assustado, o outro recuou; levou a mão até o revólver, na cintura. O velho sorriu e passou a lâmina sobre a superfície do líquido, como se quisesse parti-lo. Entoou um cântico triste e começou a falar, numa espécie de transe. Sua voz se tornara firme; seus olhos, brilhantes. Atento, o filho repetia:
— "... dormi onde mora meu pai... e o pai do pai..."
— "... com eles fui ter, num sonho..."
— "... e me contaram..."
— "... no crescente do Kanun-al-thani, um pássaro virá... negro como a noite sem estrelas..."
— "... trazendo nas asas a tormenta..."
— "... seu pio enlouquecerá os camelos... do seu ovo, um outro sol nascerá..."
— ...
— "... céu e deserto ardendo... numa só coisa..."
— "... assim revelou meu pai... e o pai do pai".
O ancião baixou a cabeça. Parecia muito cansado. Com apoio do filho, sentou-se.
VI
— As máquinas têm que ir embora — suplicou o filho, repetindo as palavras do velho. — A obra perturba o sono dos mortos.
Incrédulo, o engenheiro escutava. Acendeu um cigarro, soprou no ar a fumaça azulada; contraindo o cenho, deu o ultimato: — Saiam, ou chamarei o Exército. — Olhou o relógio. — Vocês têm uma hora.
Caminhou para a entrada e ouviu o dialeto incompreensível, seguido pela voz do filho:
— Você deve partir, Sahib.
VII
Deixou a tenda. Ofuscado pela claridade, viu as torres de comunicação do exército. No céu pálido, o crescente ainda brilhava. Lembrou-se das palavras do ancião: já lhe pareciam recordações apagadas, ecos de memória, ruídos distantes no deserto. Não deu importância ao balido assustado de um camelo, nem à sombra furtiva na areia; sequer notou a silhueta que, como um dardo, rasgava o ar.
A partir daí, os eventos foram vertiginosos: num ruído ensurdecedor, o caça passou sobre ele, voando direto para as torres; viu o momento exato em que lançou a carga e, numa manobra de escape, arremeteu; confuso, espantou-se com a precisão do mecanismo e o brilho da explosão; de olhos fechados, sentiu o impacto da areia, milhões de grãos invadindo sua roupa, tapando ouvidos nariz garganta.
Caído, sem conseguir respirar, o engenheiro ainda pôde ver o caça contornar a montanha e, muito próximo do solo, alinhar-se com a estrada; vindo em direção aos tanques de combustível, às máquinas. Em sua direção.
Maurício Meirelles (Belo Horizonte/MG, 1967). Arquiteto e escritor. Participou de oficinas literárias e teve seu primeiro conto publicado no SLMG (Suplemento Literário do Minas Gerais), em 2011. Foi publicado na antologia Oficina da Palavra, org. Dagmar Braga (Belo Horizonte: Asa de Papel, 2011). Teve cinco textos literários selecionados para o grupo de arte contemporânea O GRIVO - Exposição na galeria OI FUTURO: Belo Horizonte, 2013. Participou do ZIP/Zona de Invenção & Poesia, curadoria Ricardo Aleixo: Belo Horizonte, 2011. Foi mediador no Seminário Literatura e Cidade, mesa "A literatura e os escritores na cidade": José Eduardo Gonçalves e Adriano Macedo - Belo Horizonte, 2014 (Fundação Municipal de Cultura / Prefeitura Municipal de Belo Horizonte) e no Circuito Literário Praça da Liberdade, mesa "Literatura e Experiência": João Anzanello Carrascoza, Elvira Vigna e Noemi Jaffe - Belo Horizonte, 2014 (Circuito Cultural Praça da Liberdade / Governo do Estado de Minas Gerais). No prelo, um livro infantojuvenil: Birigüi (Belo Horizonte: Miguilim). Vive em Belo Horizonte.
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