©matthew brindle

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Chegou à  conclusão,  então,  de  que  seriam necessários  vários  balões  para conseguir erguer uma pessoa ao invés de apenas um, como lhe dissera outro dia um amigo da escola.

Olhou em volta e apesar da mísera meia dúzia de anos que possuía, compreendeu tudo. Tanta gente reunida na grama... no fim, faziam o mesmo que os outros bichos. Comiam, soltavam pipa, corriam, namoravam.

Definitivamente não entendia este verbo: namorar. "Eu não entendo por que você gosta tanto de rosa, o azul é tão mais bonito, puro, tem a cor do céu", ele reclamava pra Julinha enquanto preenchia a nuvem. "É porque o rosa é de menina, eu sou menina então não posso ficar usando azul o tempo todo", ela argumentava enquanto trocava o verde pelo amarelo.

E então a vista embaçou. E ele percebeu que havia outra vez mergulhado no mundo esfumaçado das lembranças distantes. Nuvens, céus, rios. O tempo passa sempre — todo dia, o dia todo — e nunca há muito que possamos fazer. Ele às vezes tropeçava nas memórias durante o caminho para o trabalho, vindas do mais obscuro e profundo dentro, e então voltavam-lhe sempre sensações, desejos e cheiros que, tinha a certeza, não lhe voltariam nunca mais.

Especialmente naquele dia. Como de costume, chegara cansado, mas dessa vez, ao virar a chave na porta, mal pudera dar um passo: susto. Sem fôlego, olhou tudo à sua frente, jogado na cara, o mesmo apartamento de tantos anos mas sabe-se lá por que, naquele dia, naquele instante, foi visto por um ângulo diferente. O ângulo do belo e cru tapa na cara numa tarde de terça-feira, e então percebeu o que se tornara. Não respirou. Talvez respirar fosse pior, talvez surgisse um ar frio e cortante que o machucasse. Talvez. Viveu sempre no talvez. Regrediu. Resguardou. Retornou. Todavia agora com expressão oposta no rosto — do cansaço parecia agora haver passado ao leve questionamento do ser. O leve estranhamento do ser. A indiferença tornara-se espanto; desesperou-se. E só depois de tanto tempo que foi perceber.

Teve muitas chances, mas nenhuma agarrou. Não casou, não facultou, não se exercitou regularmente, não foi ao cardiologista, não repetiu a operação para um melhor resultado, não entrou em contato conosco. Não fez o teste, não foi à festa, não comeu ômega 3. Foi e não foi, ir também não faria diferença alguma. Quem sabe se, então, devesse...

Pegar o elevador. Não, já bastavam de portas e limites. Atônito, virou-se e correu pela escada, passo a passo e aquela luz que se acendia conforme ia passando era completamente inabitável, insuportável, ofuscante: precisava  sair  dali. Os flashes a  cada degrau lhe lembravam os rostos que já vira, mãe, pai, colegas de trabalho, famosos e até mesmo alguma moça bonita que avistara uma vez numa loja de celulares, em algum dia perdido na sua contagem própria de anos. Cada pessoa com suas argumentações, insinuações, os próprios modos de pô-lo pra baixo.

Não pensava. Corria a passos largos, tropeçava, precisava apoiar-se e, quando viu, finalmente já podia respirar aliviado. Antes de continuar parou e encostou, há quanto tempo não corria tanto? Há quanto tempo não sentia tanto medo, tanta necessidade de fugir de algo que parecia querer comê-lo vivo, devorá-lo? Há quanto tempo não tinha a consciência de estar vivo? Tinha acostumado-se tanto à inexistência que nem se lembrava mais de como era estar do outro lado.

Saiu, passou pelo portão e pela primeira vez percebeu que o porteiro que conhecia há sete anos usava bigodes. Mal percebeu isso e já foi cumprimentado por outro elemento novo: o vento. Vento e rostos sorridentes da tarde que cai, tanta coisa que um dia (aliás, vários dias) já lhe fizeram mal. A alegria alheia sempre o irritara. Olhar para todos aqueles rostos atrativos o remetia à sua autoconclusão de quão insignificante era. Correria se o ego o deixasse, mas redimiu-se e limitou-se a andar olhando os ladrilhos da calçada, cabisbaixo, no seu ritual infinito da análise profunda do branco-sim-preto-não-branco-sim-preto-não.

Mais um pouco e eis a praia. Foi refugiar-se na areia quente que lhe entrava nos dedos e sentiu-se, por um instante, ridículo quando percebeu que era o único ali. Mas já não ligava. Afinal tinha um bom motivo, se alguém lhe perguntasse: diria que aquela água gelada lhe remetia às viagens de infância, e pronto. Essa era a sua justificativa. Cheiro salgado de quando todo mundo colocava as boias, as malas e a esteira da mamãe no suporte do carro e iam passar o dia todo no mar, comendo camarão e ouvindo as piadas que papai contava.

E mar sempre foi sinônimo de reflexão. Autoimersão. Tornara-se  repugnante, à base de café e cigarro. Apenas mais um dentre tantos gordos de olheiras. Um trabalho hostil e inútil. Todas as vezes em que andava por aquele corredor cinzento, frio e branco tinha a sensação cumulativa de não pertencer ao lugar. Floresta. Lá habitavam fêmeas insinuantes que ambicionavam boas condições para uma prole (tanto financeiras quanto hormonais), homens rudes e competitivos que remetiam a Darwin. Talvez lera sobre isso uma vez, numa revista que achara no consultório do urologista, afirmando sobre o quanto os seres humanos são de seus antepassados. Não entendendo nada, pulou pra outra página e se deu ao luxo de admirar as roupas de festa das celebridades em determinado evento importante. Sentiu-se importante também.

Além do mais, sempre desprezara as manchetes de revistas masculinas em bancas com a convicção de quem bem entendia do assunto. E ria um riso inocente, quase infantil. Ria quieto, pra si mesmo, o riso do escárnio. Ria sentindo-se superior. Ria sentindo-se rei.

Mas no fundo sabia que, de coroa, ele não tinha nem os resquícios. Sabia que estava apenas tentando fugir do carrossel com cavalos de mesma cor. De novo a água gelada nos pés — agora andava — o lembrava que tudo e todos sempre exigiram que ele fosse diferente, que se realçasse, "que tivesse um bom futuro na vida". Nesse momento talvez nem fosse mais ele ali, agora, fosse apenas um monte de banha branca com pensamentos puxados pelas ondas e levados, enterrados no fundo do mar.

Sabe-se lá por que não foi capaz, por que não conseguiu subir toda a montanha e então ficou acampando, estacionado, no meio dela. Aos 40 já nem pensava mais em casar, e aquela tarde era o mais próximo que chegara do que chamavam de amor. Ela caía de um modo tão sutil que fazia com que o céu criasse nuances, uma imagem linda que ocorria todos os dias, mas que ele jamais parara para observar. Azul com rosa, o seu azul juntava-se aos olhos de Julinha naquele céu. A paz por fora em conflito com uma coisa do dentro. Uma coisa forte, que vem de dentro do dentro, e ia subindo, subindo, dando a histeria da fuga. Naquele momento, pensava as palavras só por pensar, gostava de não colocar a escolha. Queria inventar palavras. Coisas estúpidas, horripilantes, exulcerantes, ilidiomassacrantes. Banais, ríspidas, tudo lhe passava à mente. Mas ao mesmo tempo sentia-se perto do amor. Será que o sentido era, então, o paradoxo? O sentido era o sem-sentido? O sentido era, por fim, o amor?

Sabia que nunca estivera tão lúcido, mas ainda assim sentia-se sujo, não sóbrio. O mar lhe retirava tudo e ainda sobravam-lhe sujeiras e resquícios que achava que deviam ser limpos. Inadequado, fazer o que na contradição?

Entrar. Entrou, as calças inflavam conforme dava lentos passos — resolveu tirá-las. A blusa, então, começou a grudar-lhe no corpo, o apertava e asfixiava. Tirou, e já então a roupa íntima cabia-lhe como um envoltório,  qualquer  tipo  de proteção  / auto(i)munição adquirida contra algo.

E com isso, finalmente, mergulhou, respirou. Mergulhou, respirou, mergulhou, respirou. Desaprendera a fazer aquilo. Mergulhou. Mais fundo. Mais fundo. Aquela dor no peito era, acima de tudo, sensata. Sorriu. Sentiu que ia explodir, mas sorriu, o primeiro sorriso sincero que dava em tantos anos. Porque podia ver à sua frente os balões e, olhe! estavam em quantidade certa. Esforçava-se cada vez mais para pegá-los, a vista embaçada mas podia ver e ter a fina certeza de que aquelas cores estavam ali, cores dos olhos de Julinha, cores da blusa da mulher da loja, cores dos vestidos das celebridades. E, finalmente, quando os tocou, pôde sentir e ter a certeza imutável de que eles realmente podiam fazer uma pessoa voar.

Ceder agora era como ceder à própria Natureza. O mar era a sua natureza terrível. Suas ondas chegam quando não se espera, incomodam quando não se quer, cansam quando se tenta entrar. O mar vem, calmo. O mar traz, são. E então ele se incomoda, mas então aceita. E então o mar quebra, machuca, cansa, esforça — e ele decide ceder e mergulha, e debaixo d'água mais nada importa além daquela própria realidade. E, então, a calma de novo, fechando o ciclo. O mar era o seu segredo. O amor era o seu mar.

 

 

 

dezembro, 2015

 

 

 

Thaís Amaral nasceu no interior de São Paulo, em 1993. Teve seus primeiros contatos com o mundo da escrita aos 12, ouvindo os murmúrios de seu mar de dentro tornarem-se textos soltos, poemas, contos e pequenas crônicas. Desde então, vem tentando fazer com que as palavras tomem pouco a pouco um lugar maior em sua vida. Publica suas longuices e poemices no blogue Sereia no Aquário. Vive em Campinas/SP e estuda Biologia.

 

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