Se Homero inaugura a comicidade em sua épica com a figuração irônica do deus, disforme e coxo, porém, tenaz artífice, Vulcano, é com a surpreendente aparição na Ilíada do humano Tersites (de aparência não menos tétrica que seu par risível do Olimpo) que o poeta configura um sórdido farsesco, mais próximo do que chamaríamos hoje de uma encenação drolática de tipo B.

De personalidade forjada na inveja, no ciúme e no despeito, Tersites revela que a comicidade homérica, para além da aparência disforme, de que este personagem e o outro, Vulcano, são sócios, se manifesta muito fortemente pela ironia, mas também pela irreverência, singrada pelo insulto, pelo disparate, pela covardia e pela ignomínia, "Petulante motino que, de inépcias / Pleno bestunto, contra reis verboso / Alterca e à soldadesca excita o riso: / Dos cercantes feiíssimo, era manco, / Vesgo e giboso, e tinha o peito arcado / E em pontuda cabeça umas falripas".

As setas venenosas de Tersites sempre se dirigiam às figuras graves e heróicas de Ulisses, Aquiles e, sobretudo, de Agamêmnon.

No trecho que nos interessa, estamos em meio às gargalhadas dos soldados comandados por Ulisses, que se divertiam com os vitupérios lançados às escondidas por Tersites a Agamêmnon.

As injúrias de Tersites ao potentado grego fundavam-se no fato de Agamêmnon ter usurpado a bela Briseida dos braços de Aquiles, como compensação por ter tido que devolver Criseida, que ele mesmo raptara da casa de Crises, sacerdote do deus Apolo, "Atrida, que te falta? A rodo os bronzes. / Tens contigo mulheres que, ao rendermos / Qualquer cidade, escolhes primeiro. / Que indas cobiças? Ouro que te oferte / Équite Frígio em remissão do filho, / Quer o eu traga em prisões, que outro Grego? / Ou moça que se mescle em teus amores / E apartadas retenhas? É miséria / Ser escândalo aos súditos".

A devolução de Criseida, conforme o adivinho Calcas, era a única alternativa de Agamêmnon em afastar o flagelo que havia dizimado inúmeros soldados e heróis gregos, enviado por Apolo. Como resultado dessa contenda, Aquiles insulta a Agamêmnon e se recusa a lutar ao lado dos gregos. Na realidade, Aquiles só não deu cabo de Agamêmnon em razão da intervenção da deusa Minerva, "A escrava arrebatou-lhe. Ah! Se o Pelides / Não remitisse a cólera e afrouxasse, / O teu descoco, Atrida, último fora".

No momento em que Tersites lançava tais disparates a Agamêmnon, é surpreendido pelo comandante Ulisses, que o repreende de maneira ostensiva, "Pare a cantiga, charlador Tersites, / Abarbar-te com reis tu só não queiras:/Escória dos sectários dos Atridas, / Na língua os teus balofa e audaz censuras? / Vil pela fuga opinas: duvidamos / Se é bem, se é mal, que efeito isso produza; / Mas porque vituperas Agamêmnon, / O maior potentado, nos é claro: / De heróis te pesa dádivas receba".

Além de revelar a inveja que Tersites tem dos heróis e dos bens que a eles são destinados como espólios de batalha, Ulisses faz-lhe duras ameaças, se encontrá-lo outra vez em irreverentes atitudes, "Guar-te que eu te inda veja em tais loucuras. / Fora mesmo a cabeça tenha Ulisses, / Nem pai do meu Telêmaco me chamem, / Se não te agarro e dispo-te os vestidos, / Capa, túnica e o mais que o pudor vela, / Se, da assembléia expulso e azurragado, Choramingando às naus te não me remeto".

Dito isso, Ulisses vergasta violentamente a Tersites, forçando-o a recolher-se em lágrimas no seu canto, sob o ressoar de estridentes gargalhadas, numa cena digna do mais mexicano pastelão, "Na espádua eis o fustiga: ele se encolhe / E lagrimeja à dor; sangrento as costas / Lhe incha o vergão do cetro; indo sentar-se, / Pávido e oblíquo olhando, enxuga as faces; / Do afogo em meio espraia-se a risada.".

Como arremate, Homero dá voz a um vulgo personagem, que a um seu par, faz, ao pé-de-orelha, a seguinte declaração sobre a atitude de Ulisses em relação a Tersites: "À fé, que o douto / Conselheiro sagaz, na guerra instruto, / Nunca entre Aqueus obrou com tanto acerto, / Como açaimando agora esse palreiro".

Veja-se que, sutilmente, àquele que provoca o riso deve ser destinado um bom castigo: o de fustigado até resignar-se no seu canto ao lado de um choro contido.

 

 

Referência

 

HOMERO. Ilíada. [trad. Manuel Odorico Mendes]. São Paulo: Martin Claret, 2004.

 

 

 

junho, 2015