©aero fennec
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Um galpão. Longo e comprido. Um anexo construído às pressas enquanto o hospital é reformado.

Vejo-o no leito 39. Mais magro. Bem mais magro. Abatido, pálido, barba encanecida e por fazer, cabelos ralos, desgrenhados, rosto macilento.

Aproximo meu rosto do dele com os olhos rasos d’água. Beijo sua testa. Ele abre os olhos e me vê, me reconhece, fecha-os com carinho e corresponde ao meu beijo.

Faço perguntas inúteis para preencher o silêncio: Dormiu? Está com dor? Comeu alguma coisa? Ele não fala, sua boca está colada por uma saliva há muito ressequida. Movimenta o dedo indicador para o não. Acena com a cabeça o sim.

Ele nem que falar. Ele está triste. Fico a olhar sempre para ele, evitando os olhares dos outros enfermos e de seus respectivos acompanhantes. O galpão abriga cinquenta leitos e, em cada um deles, um par de quase-homens e quase-mulheres.

Percebo de soslaio que o nosso reencontro é a mais nova novidade naquela rotina enfadonha de enfermeiras trajadas de branco, de gotejares pachorrentos nos frascos de soro.

Não resisto. Choro. Aliás, não choro, apenas encharco meus olhos com uma água quente que brota desde dentro de mim. Um choro sem murmúrio, sem soluço, um choro mudo, puro esgar.

A ultrassonografia marcada para às oito, só foi realizada às dez horas. Com a bexiga cheia, ele sente dores atrozes. Com a voz encharcada de secreção, ele gane de dor. Queixo-me ao enfermeiro que não se condói.

Involuntariamente, envergonhado, ele urina nas calças...

Precisamos agora enfrentar o mal humor da auxiliar do médico que vai fazer o ultrassom. Humilhados, saímos da sala de exames.

Aguardamos o enfermeiro que o levaria de volta de maca ao seu leito. Mas ele demora demais. Resolvo que eu mesmo vou pilotar aquela geringonça com ele a bordo. E assim o faço, não sem provocar pequenos esbarrões em objetos e pessoas.

Propus a ele que trocasse a bermuda e a camisa polo que já recendiam o cheiro forte de urina. A contragosto, ele concorda, os inúmeros óbices de um banho.

Pego-o pelo braço. Ele, a passos trôpegos, caminha devagar.

No banheiro, ajudo-o a tirar a camisa, a bermuda, a cueca.

Magérrimo, magérrimo... Nunca o tinha visto completamente nu e tão de perto, pele a pele, corpo a corpo, rosto a rosto.

Ele, envergonhado, desvia o seu olhar do meu, mirando os detalhes de sua mirrada barriga.

Quis mijar, e o fez com dolorosa calma.

Sentiu vontade de defecar, era diarreia. Um cheiro forte de merda inundou o apertado banheiro, a merda da vida no desvão da morte.

Ajudei-o a se limpar, desenrolando generosas dobras de papel higiênico.

Propus que se lavasse, ele concordou sem contestar, do fundo do poço só é possível sair levitando.

Abri o chuveiro e girei a válvula na opção inverno. Segurei sua mão esquerda com firmeza, enquanto fazia malabarismos com o frasco de soro. Ele tentava se lavar da melhor maneira possível, os pudores da higiene pessoal.

Enxuguei suas ossudas costas, sua bunda, e ele enxugou suas partes, sua flácida genitália, seu saco vazio.

Ajudei-o a vestir a cueca, a bermuda, a camisa polo, limpas.

De repente ele era uma criança indefesa em meus braços. Uma criança que precisa de todo do tipo de ajuda, para se vestir, para amarrar os cadarços.

Levei-o pelos braços de volta ao seu leito, o 39.

Sentou-se. Enxuguei seus chinelos. Enxuguei seus pés. Ajudei-o a deitar. Por uns instantes, ali, com roupas limpas e asseado, ele desfrutou de um certo alívio.

Mas pouco durou. A secreção na garganta voltou a incomodá-lo, junto com uma tosse seca, irritante, intermitente e sua paz foi novamente adiada.

 

 

 

março, 2015